quarta-feira, 21 de abril de 2010

Freud e o papado

Voltaire Schilling*
“[passei] grande parte de minha vida a destruir minhas próprias ilusões
e as da humanidade.”
Sigmund Freud em carta a Romain Rolland

Quando ginasiano, Sigmund Freud extasiou-se com a história de Aníbal Barca, o general cartaginês que, ainda que não conquistasse Roma na sua campanha da Itália, em 218 a.C., fizera a grande urbe tremer de medo. Como judeu vivendo no império católico dos Habsburgos, sentiu-se um tanto quanto compensado em saber que, pelo menos uma vez, aquela cidade que depois abrigaria a sede do cristianismo fora acuada por um semita (os cartagineses descendiam dos fenícios e, como ele, Freud, filhos de Sem).

Dedicou então a maior parte da sua vida de sábio e cientista a desconstruir a estrutura moral em que se baseava o poder do papado e da religião. Para ele, a missa, por exemplo, nada mais era do que uma simulação civilizada de um ato de canibalismo (a comunidade engole pedaços de carne [a hóstia] e bebe o sangue [vinho] do pai morto), e o pecado senão que um recurso para reprimir os instintos e pulsões naturais dos seres humanos.

Toda gênese da religião girava ao redor do conflito entre pai e filho: Abrão recebe a incumbência de sacrificar seu filho Isaac; Zeus mata Cronos, que por sua vez desfizera-se do seu pai Urano, castrando-o; Jesus, crucificado, sente-se abandonado pelo Deus-pai que o deixou padecer no lenho; o totem tribal, centro das aglomerações selvagens, é uma recordação dos filhos que mataram o pai que, ao monopolizar as fêmeas, os excluía etc.

A obra de Freud, seguindo a tradição iconoclástica da modernidade, ampliou enormemente a compreensão do fenômeno da fé e procurou superar as críticas anteriores que entendiam as crenças como obra da ignorância e do fanatismo (acusação dos iluministas), da alienação (o “ópio do povo” de Marx), ou vestígio de épocas superadas (da “era mitológica” de Comte e dos positivistas).

Tinha consciência crescente de que a psicanálise, seu invento exclusivo, provocaria um sério estrago no aparato das crenças ocidentais. Entre outras razões, por ele também ter destruído o conceito cristão da pureza infantil, sendo um dos primeiros a denunciar os estragos que a pedofilia provocava no desenvolvimento de um ser humano.

Todo este alarde que se faz hoje em relação ao abuso sexual de menores decorre da teoria freudiana de que a criança molestada é a precursora do adulto neurótico e infeliz (quando não, ao crescer, se transforma num outro predador sexual). O pedófilo não apenas é um violador ocasional, ele destrói uma vida.

Freud fez dos impulsos sexuais e dos sonhos eróticos algo pertinente a qualquer homem ou mulher e não obra do demônio emboscado ou abrigado na alma humana. Por mais hediondos que parecessem, resultavam da repressão moral e religiosa que os indivíduos de ambos os sexos sofriam na comunidade em que nasciam e viviam. Tudo comuníssimo e humano.

Assim, um por um, os dogmas religiosos e morais que formavam os indivíduos no Ocidente foram sendo desfeitos pela difusão da psicanálise. Como se fora um esquadrão armado do general Aníbal Barca ressurgido, são os argumentos de Freud que ora, mais do que nunca, cercam e embaraçam a Cúria Romana, colocando-a na defensiva devido às sucessivas denúncias de práticas pedófilas por parte dos seus sacerdotes.
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*HISTORIADOR
Fonte: ZH online, 21/04/2010

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