domingo, 11 de abril de 2010

Eu vou lá pra rezar

Rubem Alves*

Seguindo o meu hábito, fui caminhar na Fazenda Santa Elisa. Normalmente são caminhadas solitárias. Gosto que seja assim porque na solidão a gente está livre da obrigação de conversar. A tagarelice dos humanos pode ser irritante. Silenciados os homens pode-se então gozar o canto dos pássaros — é bom ouvir o canto e saber o nome do pássaro cantor: “É um João-de-barro, é um canário da terra...” Os meninos da minha infância sabiam os nomes naturalmente, sem que ninguém os ensinasse porque os pássaros eram parte da sua vida.
É preciso que as vozes sejam silenciadas para se ouvir o vento sussurrando nas orelhas, e o ruído da percussão, os pés esmagando as folhas secas de outono espalhadas pelo chão. Assim o silêncio se enche de poesia: “Só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido”, escreveu o Alberto Caeiro. Se a fazenda sentisse e pensasse acho que ela gostaria que os homens a sentissem como uma namorada: caminhar por seus caminhos é como acariciar o corpo da amada...
É assim que caminho, pensando os pensamentos... — mas eu não deveria pensar coisa alguma; deveria mesmo era estar só sentindo; porque “pensar é estar doente dos olhos”. Um pensamento é um intruso que atrapalha a pureza daquilo que os olhos vêem. Como se o azul puro do céu se enchesse de nuvens — disse o Heládio Brito que as nuvens são os pensamentos do rio — estragando o gozo puro da visão com a pré-ocupação de que se tem de fazer.
Hora de praticar a arte de ver... Não entendo as razões que levam as pessoas a fechar os olhos para rezar. Como se o ver fosse distração do Tentador... “O meu olhar é nítido como um girassol”, escreveu Alberto Caeiro.

“Tenho o costume de andar pelas estradas olhando para a direita e para a esquerda, e de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento é aquilo que nunca antes eu tinha visto, e eu sei dar por isso muito bem. Sei ter o pasmo essencial que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo...”

Alberto Caeiro poderia ter escrito essas palavras depois de caminhar pelos caminhos da Fazenda Santa Elisa, mas só depois, porque enquanto caminhava ele não pensava em nada; ele era só olhos.
O que não posso imaginar é Alberto Caeiro caminhando sem ver, os caminhos da fazenda sendo usados como se fossem uma academia de ginástica para exercitar pernas, coração e pulmões. Que é o que normalmente fazem os corredores: não caminham para sentir; caminham para se exercitar. Alberto Caeiro diria que a única função das caminhadas seria levar os sentidos a passear, especialmente os olhos. “Eu sou do tamanho do que vejo”, disse ele. “Nas cidades a vida é mais pequena... Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave, empurrando nosso olhar para longe de todo céu, tornando-nos mais pobres porque a nossa única riqueza é ver”.
Pensei então em preparar um pequeno guia que seria oferecido aos corredores e caminhantes que usam a fazenda como academia de ginástica, mostrando-lhes as coisas que deveriam ser vistas enquanto correm ou caminham.
Logo depois de atravessar o gramado, uma fileira de palmeiras, no centro da avenida por onde se entra, todas elas com enormes cachos de cocos verdes, cada um do tamanho de um ovo de galinha — de longe dir-se-ia tratar-se de cachos de uvas num pais de gigantes. Ao fim da avenida das palmeiras está um gramado imenso, que termina com duas árvores arredondadas - de longe eu apostaria que eram mangueiras – mas não são mangueiras, são pés de lixia, ao lado de um pé de seriguela e um pé de jatobá. Foi ali que plantei, com um punhado de crianças e o auxílio dos cuidadores da fazenda, um caquizeiro, símbolo do triunfo da vida contra a morte. Mas essa estória eu já contei...
Ao fim da avenida das palmeiras, virando-se à esquerda, estão palmeiras esguias, troncos marcados por anéis. Em tudo parecidas com as palmeiras comuns. Mas há uma diferença: elas crescem ao pares, como se fossem namoradas. Há algumas solitárias... Talvez sejam viúvas... Um pouquinho adiante, do lado direito, uma árvore de copa grande, arredondada, “sapucaia” ou “cumbuca de macaco”. Linda. Ela passa por fases em que muda de forma e cor durante o ano. Depois de ficar despetalada, revigora-se tomando uma cor verde que, aos poucos, vai se transformando na cor vermelho-vinho, para, em seguida, tornar-se uma árvore com as folhas meio que douradas. Ao lado dela a rara paineira branca, árvore que plantei com o nome de “Carlos Rodrigues Brandão”, amigo querido, no meu cemitério de árvores em Pocinhos do Rio Verde.
Se, ao final da avenida das palmeiras, ao invés de virar à esquerda você virar à direita você chegará ao departamento de hortaliças. Preste atenção: logo na entrada você encontrará o pé da flor cujo nome popular é trombeteira, nome científico “brugmancia suaveolens”. Há as brancas e as rosas, de um fortíssimo poder alucinógeno. É essa planta que explica por que as bruxas voam em vassouras... Também já escrevi sobre isso...
E há as avenidas, catedrais de bambus — plantados por um pai que amava a sua filha... E há também a árvore de treze troncos... E a jaqueira, próxima das plantas de jardins...
Se eu fosse diretor e tivesse poder mandava colocar na entrada da Fazenda Santa Elisa esses versos da Adélia:

“Eu sempre sonho que uma coisa gera,
Nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.”
Eu vou lá é pra rezar...”
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 11/04/2010

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