quinta-feira, 29 de abril de 2010

E aí, vamos prender o Papa?

Paulo Ghiraldelli*


O Papa vai visitar a Inglaterra em setembro. Há quem diga que ele quer que Susan Boyle cante em sua presença, na sua visita ao reino protestante. O biólogo britânico Richard Dawkins e o filósofo político Christopher Hitchens parecem não se opor que Boyle cante, contanto que o Papa escute a bela voz atrás das grades.

Os protestantes ingleses não estão comemorando o ataque desses pensadores ao Papa, pois sabem bem que a metralhadora ateísta não poupa os que, na sua mira, seriam não colaboradores de Deus e, sim, asseclas do Mito. Dawkins e Hitchens são espalhafatosos e podem, mais uma vez, estar fazendo barulho para além do que realmente é factível. Todavia, eles não estão legalmente errados – eles dizem que advogados internacionais de Direitos Humanos podem conseguir a prisão do sacerdote por “crimes contra a humanidade”, e que o Papa não está protegido, pois a presença dele no Reino Unido não se caracteriza como “visita de um chefe de Estado”, uma vez que o Vaticano não é reconhecido como tal pela comunidade britânica.

Qual o crime do Papa? Os dois pensadores o acusam de ter protegido pessoas que são criminosos confessos. Sim! A referência é clara: fala-se aqui dos padres e bispos que cometeram abusos sexuais com crianças, em uma quantidade jamais vista, e que teriam sido deliberadamente acobertados pelo Papa Bento XVI, quando ele era ainda Cardeal, mas não pouco poderoso.

Pela conta de Dawkins e Hitchens, Susan Boyle não iria encontrar dificuldades de se deslocar até uma casa de detenção.

A acusação de Dawkins e Hitchens não tem somente uma faceta político-religiosa. Ela tem um lado filosófico. Mais ainda: ela serve para mostrar alguma coisa que, não raro, passa-nos despercebido, que é a re-aliança entre religiosos e pessoas escolarizadas que lidam com a ciência, cinco séculos depois do grande estranhamento entre esses dois campos, com o advento da modernidade. Do que eu falo? Ah, explico rapidamente.

O filósofo da Escola de Frankfurt Max Horkheimer, na primeira metade do século XX, escreveu vários ensaios falando de uma aparentemente estranha ligação entre cientistas da natureza e teólogos. O que ele dizia era mais ou menos o seguinte: enquanto o pensamento iluminista se tornou a ponta de lança contra o pensamento religioso, exatamente uma das componentes do iluminismo, as ciências naturais, que saiu na frente na indisposição contra a religião, é o elemento que, agora, se alia ao modo de pensar teológico ou mesmo religioso. Os cientistas se tornaram alheios à filosofia. Eles não querem ter uma compreensão racional do mundo. Eles se submetem a uma formação que os coloca como pesquisadores de partes da natureza e da linguagem matemática. São seduzidos facilmente pela idéia de que se tornaram profissionais do campo de produção da tecnologia. Na falta de um interesse decidido pela busca de uma compreensão filosófica do mundo, que seria mais racionalmente compatível com o estágio de desenvolvimento do que fazem no âmbito científico, caem vítimas de uma cosmologia que não é senão uma nova teologia, isso quando não aderem a misticismos fáceis, do tipo da prática de “pesar a alma” dos espíritas que saem pelas tabelas em laboratórios – algo do fim do século XIX, mas que anda solto por aí ainda hoje.

Para Horkheimer, o liberalismo havia até ajudado na fixação dessa nova aliança entre escolarizados da ciência e escolarizados da teologia. Dando condições de todos conviverem no âmbito do mercado e da sociedade civil com suas crenças teológicas, o liberalismo teria acabado por fazer imperar a regra que, popularmente, diz que “futebol, beleza de mulher e religião não se discute”. O ambiente da não discussão gerou médicos, fisiólogos, físicos, biólogos e químicos incapazes de saber quem foi Hegel ou Kant ou Hume, ou mesmo Galileu, e então, na santa ignorância, caíram sob o manto de qualquer santidade (e o trocadilho aqui é proposital).

Tudo isso que digo não são palavras de Horheimer, são minhas. Mas o que ele escreveu não foge disso. O recado é o mesmo: os intelectuais que sabem da história do iluminismo e que até participaram dela, se esqueceram do papel obscurantista da religião. Com isso, permitiram a uma geração de pessoas altamente escolarizadas começasse a se esquecer que a ciência era, antes de tudo, uma filosofia, ou seja, uma visão de mundo, e que exatamente assim destronou a religião no que esta tinha de não racional, de místico, de mágico e obscurantista.

Diante de um mundo que possui um Bin Laden andando por aí, é claro que vários de nós, filósofos, tendemos a agir de modo a não piorar as coisas. Assim, tentamos não reacender o debate sobre religião e modo de vida moderno. Uma boa parte dos filósofos está convencida que a fórmula de Locke, a da tolerância, é a melhor maneira de conversar com os diferentes e, então, dizer para eles que vamos ter de conviver, uma vez que precisamos da sociedade de mercado unindo todos nós. Somos liberais! Agora, é claro que nós sabemos que Bin Laden não acredita nisso. Ele, muito mais que qualquer comunista do passado, diz que nenhuma sociedade de mercado, nos tipos oferecidos pelo Ocidente, está em comum acordo com as leis de Deus. Todavia, não estamos dispostos a enfrentá-lo como enfrentamos, por exemplo, Hitler. Bin Laden é bem mais esperto que Hitler. Ele não se apresenta de peito aberto. E isso o torna mais perigoso que “o louco”.

Agora, esse nosso medo de Bin Laden, que nos faz sacar da Carta da Tolerância, não desautoriza Dawkins e Hitchens a continuar suas sanhas ateístas. Eles estão nos mostrando que, talvez, uma boa parte do Ocidente não esteja contra Bin Laden. Eles estão convencidos que os homens de ciência se esqueceram da luta filosófica que a ciência levou contra a mitologia religiosa que oprimia não só a vida social, mas a vida privada, individual. Eles acreditam – não sem dados nas mãos – que há muitas gente cuja escolarização não os deveria permitir que pensassem em termos fundamentalistas e, no entanto, continuam pensando. Essas pessoas não são do Terceiro Mundo somente, elas vivem nas democracias ricas e escolarizadas do Atlântico Norte.

Mutatis Mutandis Dawkins e Hitchens fazem eco à denúncia de Horkheimer: falta uma compreensão filosófica ao homem de ciência de hoje que, enfim, se tornou especializado demais e, assim, muito sensível ao apelo de compreensões gerais do mundo que são perigosamente mitológicas. Essas pessoas são aquelas que podem, mais cedo ou mais tarde, fabricar armas para colocar nas mãos de Bin Laden ou de qualquer ocidental que queira fazer sua guerra santa particular. Pois elas agem com inocentes úteis ou, também, como participantes de cosmovisões pouco racionais.

Dawkins e Hitchens não estão de todo errado quando dizem que a incultura da ciência pode ser vítima da extrema cultura super conservadora do Papa. A incultura dos homens de ciência pode servir aos interesses da alta cultura malvada do Vaticano e ambos, sem o saber, caírem de joelhos ao completo desprezo pela alta cultura vinda de Bin Laden. Não sei se Dawkins e Hitchens chegam a formular as coisas assim, mas sua luta ateísta tem essa faceta positiva e um tanto útil. Talvez eles estejam certos. Talvez tenhamos que usar a Carta da Tolerância em uma mão e a legislação que nos resta, a favor da civilização, na outra. Assim, que Susan Boyle seja tolerante e cante para o Papa, mas que a legislação internacional funcione e coloque o velho lobo Ratzinger, agora travestido de Bento XVI, na cadeia.

Os discursos de Dawkins e Hitchens têm ao menos esse objetivo útil, a de fazer pessoas como eu, extremamente condescendentes com os religiosos, a ficar de orelha em pé. Devo pensar – por que não? – que às vezes os religiosos do Ocidente, ao fomentar antes a magia que a religião, antes o fundamentalismo fanático que a fé enquanto algo de foro íntimo, estão pondo salsicha demais no Hot Dog de figuras como Bin Laden, gente que decisivamente não possui nenhum apreço por nada, nadinha que o Ocidente construiu até agora. Ou melhor, gente que tem apreço, sim, por algumas obras do Ocidente: suas armas, não sua penicilina.
__________________________________
*Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário