sexta-feira, 30 de abril de 2010

Deus chega às aulas de biologia

Escola adota teoria baseada na intervenção de
 uma inteligência superior na criação da vida,
opondo-se às ideias de Darwin

Hélio Gomes



Uma das maiores polêmicas a chacoalhar a sociedade e a comunidade científica dos Estados Unidos nos últimos anos desembarcou no Brasil. Ao longo da semana passada, um ciclo de debates realizado no Colégio Presbiteriano Mackenzie, um dos mais tradicionais da capital paulista, apresentou a teoria do design inteligente a centenas de estudantes. Criada nos Estados Unidos na metade dos anos 80, ela se opõe à teoria da evolução de Charles Darwin – amplamente aceita pela ciência desde a publicação do clássico “A Origem das Espécies” (1859) – e se baseia na ideia de que uma entidade superior seria a responsável pela criação de todas as formas de vida do Universo. Para os cientistas que defendem o conceito, tal força criativa é chamada de “designer inteligente”. Para os cristãos fundamentalistas americanos, ela é Deus.

A grande questão envolvendo o design inteligente (DI) é a sua introdução em algumas escolas americanas durante as aulas de biologia, e não nas de religião, que, a exemplo do Brasil, não fazem parte do currículo escolar no ensino público. Conceitos pseudocientíficos e ainda não aceitos pela maioria da academia, como a chamada complexidade irredutível – que sustenta que certos micro-organismos biológicos são intrincados demais para terem evoluído de formas mais simples de vida –, são usados por biólogos, químicos e filósofos da ciência integrantes do movimento DI em sala de aula como uma alternativa à teoria da evolução. Em 2005, os pais de 11 alunos de uma escola pública de Dover, no Estado da Pensilvânia, entraram na Justiça para tentar impedir o ensino do DI, alegando que, na verdade, ele seria um conceito criacionista e, portanto, religioso. Eles ganharam a disputa judicial e a teoria foi banida da disciplina na escola.

O evento realizado em São Paulo nos últimos dias trouxe ao Brasil dois dos mais célebres defensores do DI nos Estados Unidos. Stephen C. Meyer, doutor em história e em filosofia da ciência, é um dos criadores do movimento e um de seus mais atuantes portavozes. Autor de três livros, entre os quais o recente “Signature in the Cell” (Assinatura na Célula, inédito no Brasil), ele afirma que sua missão em terras brasileiras era simples: “Viemos para suscitar a discussão – nosso trabalho é científico, e não político ou educacional”, diz Meyer, um dos membros mais atuantes do Instituto Discovery, centro de pesquisas sem fins lucrativos ligado a setores conservadores da sociedade americana. “Como eu creio em Deus, acredito que ele é o designer inteligente. Mas existem cientistas ateus que aceitam a teoria de outras formas”, completa o pesquisador.


Não é o caso do biólogo americano Scott A. Minnich, também presente no ciclo de debates para apresentar os conceitos do DI aos estudantes brasileiros. “Sim, eu sou religioso”, afirma Minnich. Ele conta que já sofreu preconceito por fazer parte do movimento. “É assim que as coisas funcionam na ciência. Algumas pessoas tentaram convencer o presidente da universidade na qual leciono de que eu estava incluindo o DI nas minhas aulas de microbiologia, o que não era verdade”, diz o biólogo, que também participou das missões que buscaram indícios da produção de armas bioquímicas no Iraque em 2004.

A confusão gerada por uma teoria que se apropria de conceitos científicos para chegar a conclusões com forte viés religioso despertou a ira da ala ateísta. Entre as vozes mais ácidas contra o DI, destaca-se a do biólogo evolucionista britânico Richard Dawkins. Também chamado de “rottweiler de Darwin”, ele ganhou notoriedade graças ao livro “Deus, um Delírio” (lançado no Brasil em 2007 pela Cia das Letras), também transformado em documentário. “É pertinente ensinar controvérsias científicas às crianças”, disse Dawkins em entrevista ao jornal inglês “The Times”. “Só não podemos dizer: ‘Temos dois conceitos sobre o surgimento da vida – um é a teoria da evolução e o outro é o livro do Gênesis. Se abrirmos esse precedente, também teremos de ensinar a elas a crença nigeriana que diz que o mundo foi criado a partir do excremento de formigas”, provoca o biólogo.

Voltando ao cenário brasileiro, vale lembrar que o colégio Mackenzie é uma instituição particular, com origens americanas e de cunho religioso desde a sua fundação. Portanto, o ensino do DI nas aulas de biologia, que acontece desde 2008, é tão válido quanto as aulas de religião ministradas em instituições de ensino católicas. “Acreditamos que a fé influencia todos os aspectos da nossa vida, inclusive a ciência”, resume Davi Charles Gomes, chanceler em exercício do Mackenzie e pastor presbiteriano.





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Reportagem revista ISTO É online - N° Edição: 2112 30.Abr.2010

Culpa




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Reportagem da revista ISTO É online, N° Edição: 2112  - 30.Abr .2010

Como se faz a opinião pública

CARLOS HEITOR CONY*
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Ele era uma espécie de profeta retroativo,
que tudo previra,
tudo sabia e explicava

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A NECESSIDADE de encher espaços nos jornais, nas rádios e, sobretudo, nas televisões criou, ou melhor, ampliou o número de pessoas entrevistadas que prestam depoimentos ou testemunhos sobre determinados fatos, comentam situações, dão aquilo que, desde tempos imemoriais, chamamos de palpite.

Nos jornais e nas rádios, não se vê a cara do sujeito. Depreende-se apenas que ele está dizendo o que pensa ou acredita que pensa. Tolera-se assim seu depoimento ou seu testemunho sem avaliar o mérito da questão em si.

Na TV é diferente. A cara aparece em close, com suas rugas, as sobrancelhas crespas ou grisalhas, o olhar varado pela luz da verdade, a boca escolhendo as palavras definitivas que encerram a questão de forma inapelável.

Seja qual for o assunto, a convicção do depoente é sempre a mesma. Esperou-se tanto tempo, perderam-se tantas oportunidades, criaram-se tantos equívocos -e ali estava a solução de todos os problemas, o poço da verdade, captada em seu momento indestrutível.

Outro dia, num desses programas da madrugada, revi a figura do notável historiador, já falecido, que, até os 50 anos, era apenas médico no Rio Grande do Sul e, depois dos 50, se tornou especialista em tudo aquilo que aconteceu ou desaconteceu nos anos 20 e 30 do século passado. Era a sua especialidade, tornou-se o oráculo.

A tragédia de Hiddenburg, a Revolução de 30, a Guerra Civil na Espanha, o Campeonato Mundial de 38, Carmen Miranda indo para os Estados Unidos, o Estado Novo, todo o movimento integralista, a ascensão de Hitler, as bicicletas de Leônidas da Silva, os grandes sambas de Ary Barroso, as prisões de Prestes, tudo o que aconteceu naquelas duas décadas tinha nele não apenas o testemunho ocular da história, mas uma espécie de profeta retroativo, que tudo previra, tudo sabia e explicava.

Sua expressão era de desdém para com os fatos, tal como eles passaram para as outras gerações. Lia-se no seu rosto, mais do que em suas palavras, a velada queixa, "tantas coisas importantes e mal contadas, e eu aqui, dando sopa, e só agora se lembraram de ir para a única fonte da verdade!".

O pior veio depois. Substituindo o competente historiador na telinha, apareceu a minha cara falando sobre outro assunto, mas com a mesma expressão facial: a de dono absoluto da verdade. Sempre que posso evito dar este tipo de testemunho; quando querem saber alguma coisa de meus livros, evidente que topo, afinal eu os escrevi para isso mesmo, dar a minha visão de mundo através da ficção.

Mas geralmente os entrevistadores querem mais e querem tudo. Até sobre disco voador já fui perguntado. Respondi prontamente que não acreditava em tais entidades e achei que já tinha dito tudo o que me competia. Mas quiseram saber por que não acreditava e aí a coisa se complicou. Bem verdade que, se acreditassem, a coisa ficaria mais complicada, eu teria de provar a existência deles, mas afinal me perguntei: quem é o desafortunado que deseja saber o que eu penso sobre disco voador?

Acredita-se que a soma de todos os palpites, os testemunhos, os depoimentos, as confissões e os desabafos formem aquilo que os especialistas chamam de opinião pública. Há institutos que se dedicam exclusivamente a aferir essa opinião e, uns pelos outros, estão mais ou menos coerentes.

O mesmo não se dá com os cidadãos, geralmente técnicos disso ou daquilo, que abrem o verbo e explicam tudo ou tudo avaliam, sem muita necessidade de aprofundar os assuntos porque o tempo das entrevistas "infelizmente acabou". O entrevistador agradece ao entrevistado, que modestamente admite: "Quem agradece sou eu".

E vai para casa satisfeito consigo próprio, esfregou a sua verdade na cara da opinião pública, daí em diante terá o consolo de ter cumprido a ação heroica de ter proclamado a verdade; se as coisas não são boas para o mundo, para a sociedade, para o equilíbrio cósmico, a culpa não é mais dele.
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Fonte: Folha online, 30/04/2010

Um novo ciclo econômico no Brasil

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS*


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Não é possível continuar com essa farra do boi de consumismo
que é a marca mais importante
dos últimos cinco anos

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AMB ASSOCIADOS acaba de publicar um interessante estudo sobre o crescimento brasileiro. A variação do PIB -medida do lado da demanda- nos mostra que o Brasil viveu duas fases distintas nos últimos dez anos: de 2000 a 2005 e de 2006 a 2010. Considerada a década como um todo, o crescimento do PIB pode ser explicado em 70% pelo consumo das famílias, em 20% pelo consumo do governo e em 13% pela formação bruta de capital fixo. Para fechar esse quadro de demanda interna, as importações foram maiores do que as exportações em 3% do PIB.

Mas esse mesmo exercício para o período 2006/2010 mostra um quadro bem diferente. O consumo das famílias passa a explicar 85% do crescimento do PIB, com o consumo do governo caindo para 18% e os investimentos representando 16,4%. Para fechar a conta, as exportações líquidas negativas representaram 19,2% do PIB. Nos últimos cinco anos, o consumo interno total -governo mais famílias- ultrapassou o valor do PIB brasileiro. O pouco investimento realizado nestes cinco anos foi todo ele financiado com poupança externa. Em outras palavras, nos últimos cinco anos os brasileiros viveram o papel de cigarras, e não de formigas.

Mas o economista Sergio Vale, da MB, construiu uma projeção desses componentes de demanda para os primeiros cinco anos da nova década. Como premissa, considerou um crescimento real de 10% ao ano para o volume de investimentos em capital fixo no Brasil. Além disso, trouxe a participação do consumo das famílias no PIB para o número médio de 70% e reduziu o consumo do governo para 17% do PIB. Nessas hipóteses, o setor externo continuará sendo a variável de ajuste para fazer o consumo caber no PIB.

Os números obtidos por Sergio Vale, da MB, apenas quantificam o que alguns analistas vêm advertindo há algum tempo: não é possível continuar com essa farra do boi de consumismo que é a marca mais importante dos últimos cinco anos. Ter o consumo das famílias brasileiras representando 85% do crescimento PIB é uma irresponsabilidade que vai cobrar um preço elevadíssimo em futuro próximo. Mais ainda, ter a soma do consumo do governo e das famílias maior do que o PIB é uma situação insustentável no médio prazo.

Daí resulta o ponto mais assustador do exercício da MB: mesmo com uma redução do consumo das famílias e do governo e um aumento mínimo no investimento de capital fixo, a deterioração de nossa conta-corrente pode chegar a níveis perigosos. Uma bela sinuca de bico para o próximo presidente da República.

Quero terminar fazendo uma homenagem a meus filhos Marcello e Daniel. Depois de 12 anos no controle acionário da Link Investimentos, período em que ela alcançou a posição de maior corretora de valores independente no Brasil, eles e seus companheiros venderam a empresa para o banco suíço UBS. Acompanhei -como pai e conselheiro- toda a vida da Link, sofrendo juntos quando aloprados do PT resolveram acusá-los de utilização de informações privilegiadas fornecidas por mim -à época eu era ministro do governo FHC-, e agora, nos longos meses em que concretizaram a difícil decisão de vender a empresa.

Neste novo Brasil internacionalizado, é muito difícil um grupo brasileiro de médio porte e líder de mercado ficar independente. Acho que tomaram a decisão correta.
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*LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS , 67, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo Fernando Henrique Cardoso).
Fonte: Folha online, 30/04/2010

Em 'Bandidos', Hobsbawm analisa o banditismo social

Fabio Silvestre Cardoso*

RIO - Eric Hobsbawm tem uma tese. Para ser mais exato, uma visão de mundo. Disso sabe todo interessado em história que, nos últimos anos, tem acompanhado os lançamentos editoriais nessa área. E não só. Os planos de ensino dos cursos de história, ciências sociais e mesmo da área de comunicação social têm Hobsbawm como autor elementar, fundamental, sem o qual não é possível discutir a trajetória da humanidade com base em sua perspectiva, agora já clássica, a respeito do que ele classifica como Era das Revoluções, Era do Capital e Era dos Impérios. Sobre o século 20, a análise é categórica: ele foi breve. E toda essa leitura se fundamenta, entre outras, na ideia de que o capitalismo modificou, de maneira incontestável, a vida cotidiana, influenciando o modo de vida na esfera pública e privada, acirrando, assim, a luta de classes. Nesse sentido, é possível compreender o interesse do autor em propor uma análise histórica sobre o banditismo social, conforme se lê em Bandidos, obra que é relançada pela Paz e Terra.

Para estudar de que maneira se constitui o banditismo social, Hobsbawm começa por resgatar a origem da palavra bandido. O historiador ensina que o termo tem sua origem no italiano bandito, que, em síntese, significa banido. Não surpreende, reflete o autor, que boa parte dos proscritos tenha investido na gatunagem. o autor ainda investiga outras origens, como a dos bandoleros que viviam na Catalunha e também dos shiftas, da África, além de citar, brevemente, a relação dos bandidos com a queda frequente das dinastias na China. Em pé de igualdade a outros textos do historiador, este também se destaca pela capacidade de Hobsbawm tornar a análise interessante mesmo para o leitor que, a princípio, desconhece as minúcias do banditismo.

Essa abordagem tem um propósito direto, a saber: construir argumentos convincentes para que a ideia central seja irrefutável. E tal irrefutabilidade acontece de forma natural, pois Hobsbawm tece a narrativa de maneira a seduzir o interlocutor pela clareza de sua linha de raciocínio, a ponto de, em determinados casos, o leitor considerar natural a existência desse grupo social. Dessa maneira, segundo as palavras do autor, existe um elemento que sedimenta (e, por conseguinte, justifica) o banditismo, que é a defesa dos fracos contra os fortes. Hobsbawm é competente ao utilizar o argumento para arrematar sua tese acerca do banditismo. Uma vez feito isso, o caminho está traçado para o autor descrever, com os exemplos, como se dá a disputa entre os fracos e os fortes.

Tal linha de raciocínio ganha forma, corpo e força no segundo capítulo, quando Hobsbawm se propõe a especificar o significado do banditismo social. Para tanto, o autor não analisa apenas um tipo de bandido e, de início, rejeita o lugar-comum de qualificar todos os fora-da-lei como inimigos da ordem estabelecida e do Estado. Nas entrelinhas, há uma razão evidente para isso. De um lado, existe a necessidade de se estabelecer um recorte metodológico. De outro, e esse é o mais forte, o autor se esquiva de chancelar ações perpetradas por terroristas e entende o banditismo social “como um dos fenômenos sociais mais universais da história”. A razão de ser do bandido social baseia-se, conforme sugere a análise do historiador, na luta por justiça, sendo, por isso, visto como herói libertador por algumas camadas da sociedade camponesa. É dessa maneira que o bandido social se distancia do ladrão comum, que vê os mais simples como alvos fáceis. Para Hobsbawm, o bandido social não seria capaz de se apossar da colheita dos camponeses, porém não hesitaria em tomar para si a terra do senhor ou do Estado. Aqui, a análise do autor faz um estágio na seara da ideologia política – cabe menção ao padre Cícero e a Lampião. O historiador resgata o relato de que o primeiro teria concedido credenciais oficiais ao segundo.

Adiante, e sem abandonar a premissa ideológica, o historiador procura entender o ambiente que cerca a formação do bandido, isto é, quais são os elementos que forjam não apenas o caráter revolucionário, mas, sobretudo, a indignação capaz de torná-lo insurgente com o status quo. Nesse ponto, o autor não poderia ser mais claro ao salientar, já no início do capítulo, que “o banditismo é a liberdade, mas numa sociedade camponesa poucos podem ser livres”. Hobsbawm entende que o banditismo é, portanto, composto por indivíduos que estão à margem da sociedade rural organizada e, por esse motivo, são levados aos delitos. Novamente, a argumentação faz dessas premissas um dado natural da realidade, quando, em verdade, trata-se de uma sofisticada construção textual fundamentada nos preceitos teóricos da análise marxista.

Assim, mesmo que aceite Robin Hood apenas como mito, é certo que o autor defende essa imagem, emprestando-a para conceber a ideia do “bandido nobre”, como é o caso de Jesse James, que, segundo consta “jamais roubou pregadores, viúvas, órfãos ou ex-confederados. Além disso, diz-se dele ter sido batista devoto, que dava aulas numa escola de canto da igreja”. Talvez o grande acerto do historiador neste ensaio seja a hipótese de que, depois de morto, o “bom bandido” ganhe nova estatura moral, a ponto de ser cultuado, o que explica certa deificação em torno do mito. No caso, quem vai atribuir a qualificação ao personagem (se herói ou bandido), evidentemente, é a linhagem política de quem propõe a análise. Para além de factual, trata-se de uma leitura ideológica.

Para o bem ou para o mal, Bandidos é um livro que não trai as expectativas do leitor acostumado à perspectiva marxista de Eric Hobsbawm. Ao aprofundar o debate acerca dos integrados e marginalizados, o autor propõe uma interpretação que, em alguns momentos, torna-se bastante viável e até mesmo convincente. Todavia, uma análise menos apaixonada e, em certa medida, menos comprometida com certo esquema ideológico, colocaria os pingos nos is. Afinal, tomando como pedra fundamental a análise do historiador, seria possível justificar atos criminosos desde que estejam sujeitos ao alinhamento político – e nem sempre a história absolverá os criminosos.
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* Fabio Silvestre Cardoso é jornalista
Fonte: Jornal do Brasil online - Cad. Idéias & Livros  - 23/04/2010

Por que o mundo elogia Lula?

 Cristian Klein

A eleição de Lula como um dos líderes mais influentes do mundo, pela revista americana Time, publicada ontem, é mais uma demonstração de como o prestígio do presidente conseguiu ultrapassar as fronteiras. No refluxo da onda Obama, Lula virou o queridinho no cenário internacional: foi eleito o Homem do Ano em 2009 pela revista francesa Le Monde e pelo jornal espanhol El País; considerado o “político mais popular do mundo”, pela Newsweek; premiado como Estadista Global, pelo Fórum Econômico Mundial, de Davos, entre outros títulos e homenagens recentes. O próprio presidente americano Barack Obama, ao perceber que o frisson em torno de sua figura já não era o mesmo, reconheceu a influência de Lula ao chamá-lo de “o cara”.

Mas o que faz Lula ter tanto moral mundo afora? Afinal, nada garante que a alta popularidade interna se converta também em prestígio externo, ainda mais a do presidente de um país fora do circuito das nações mais desenvolvidas. A primeira razão, ao que parece, tem a ver com o que já foi mencionado acima: o fim da onda Obama. O cenário internacional, do mesmo modo que o de cada país individualmente, precisa de um ator em evidência, para onde todos voltam sua atenção, criando uma imagem de herói ou vilão. Presidentes dos Estados Unidos são ocupantes naturais desse posto. Durante oito anos, George W. Bush foi o protagonista neste palco, como um vilão militarista, que despertou o antiamericanismo por todo canto. O que Bush representou de ruim, Obama simbolizou de bom. Veio como seu antagonista. Mas falar bem de um político, durante tanto tempo, é muito mais difícil do que falar mal. Houve um cansaço, pela superexposição de Obama durante a campanha e pelo inevitável confronto com a realidade. Na complicada arte de governar – ainda mais em meio à maior crise econômica desde 1929 – Obama perdeu popularidade e apoio até entre correligionários de seu partido.

A segunda razão, ligada à anterior, tem a ver com um certo desencanto e desconfiança em relação à própria hegemonia americana. A grave crise financeira, que se espalhou pelo mundo e ainda traz repercussões para a economia de muitos países, teve origem nos Estados Unidos. Foi uma crise que implicou na crítica contra os postulados do mercado livre, da desregulação, do capital sem amarras, que o sistema americano representa tão bem. A América deixou de ser modelo. Assim como o mundo desenvolvido, tomado pelos efeitos da crise. Para onde as atenções se voltaram? Para um país onde o impacto da crise econômica não se sentia tão fortemente e para seu presidente, que soube aproveitar o momento para bater no sistema financeiro e se fazer de consciência crítica internacional. “A crise foi causada por comportamentos irracionais de gente branca de olhos azuis, que antes pareciam saber de tudo, e, agora, demonstram não saber de nada”, disparou Lula, em março do ano passado, ao lado do primeiro-ministro britânico, Gordon Brown. Lula tornou-se influente apesar de (ou justamente por) seu discurso divergente ao da comunidade internacional. Sua defesa do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, quando todos o recriminam, leva Lula para o centro de um debate mundial. É a voz dissonante, mas moderada. O comportamento estranho, incômodo não é rechaçado. Pelo contrário, encontra respaldo. E aí entra a terceira razão para que o presidente se eleve como uma figura respeitável, em vez de inconveniente: sua trajetória.

A biografia de Lula, o operário pobre que virou presidente da República, é por demais improvável, interessante e emblemática do potencial de um indivíduo (o selfmade man) e, ao mesmo tempo, da força da democracia, da classe trabalhadora, da sociedade etc. O perfil da Time escrito pelo cineasta Michael Moore é um exemplo desse encantamento pela biografia de Lula. O diretor não escreve uma linha sobre a influência do presidente no cenário internacional, equivoca-se ao mencionar o programa Fome Zero, no lugar do Bolsa Família, mas baseia quase todo o seu texto no simbolismo do personagem. A história de Lula representaria uma resposta aos ricos e à sua insensibilidade social e uma lição aos Estados Unidos, que ironicamente estariam caminhando para o Terceiro Mundo, enquanto o Brasil tenta alcançar o Primeiro. Quem diria que o Lula-lá, daqui, fosse viajar tão longe.
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Fonte: Jornal do Brasil online, 29/04/2010

Desafios éticos para a medicina do século 21

Roberto Luiz d'Avila*


RIO - A medicina surgiu nos tempos imemoriais, no início da civilização humana, em sua forma rudimentar, desprovida de qualquer benefício terapêutico outro, a não ser o exercício da solidariedade. Quando os primeiros humanos coletores enfrentaram as savanas, convivendo em agrupamentos, diante da natureza inóspita em sua luta pela sobrevivência, sofreram agravos externos ou adoeceram, e um outro ser humano postou-se ao seu lado, no sentido de cuidá-lo ou, por permanecer ao seu lado, em seu momento de dor, naquele momento surgiu a medicina, como símbolo da solidariedade humana.

Milhares de anos se passaram até os dias de hoje, e daqueles momentos vividos no passado não restam nem escritos. Pouco sabemos da medicina praticada na Mesopotâmia há 8 mil anos ou no Egito há 4 mil anos. Sabemos um pouco mais na Grécia de 2.500 anos passados, porque Hipócrates nos deixou pródiga literatura, que foi atribuída a ele e reunida no Corpus hipocratticum, incluindo seu juramento, repetido até os dias de hoje nas formaturas dos novos médicos. Passamos pela fase mística e religiosa, quando atuamos como xamãs ou sacerdotes, até chegarmos à fase científica ao fim do século 19, com Claude Bernard, onde aprendemos, pelo método científico, a objetivar o que era absolutamente subjetivo.

Nos dias de hoje, as novas tecnologias científicas incorporadas ao arsenal propedêutico e terapêutico permitem o prolongamento indefinido da vida, que na verdade resulta no prolongamento indefinido do morrer, utilizando-se recursos desproporcionais, como também a clonagem de órgãos, as terapias com intervenção no genoma humano, a possibilidade de ultrapassarmos a barreira dos 150 anos, cura para a maioria das doenças infecto-contagiosas pela vacinação e as previsões da cura do câncer e da Aids nos próximos 10 anos.

Entretanto, continua válido o aforismo francês do século 15, traduzido do latim medieval, segundo o professor catedrático Joffre de Rezende, da Faculdade de Medicina da Universidade de Goiás: “Guérir quelquefois, soulager souvent, consoler toujours” ou “Medicus quandoque sanat, saepe lenit et semper solatium est”, o que significa “O medico às vezes cura, muitas vezes alivia e sempre é um consolo”. Do ponto de vista ético e jurídico, efetivamente, o médico não tem compromisso com a cura mas com o cuidado, ou seja, o seu compromisso não é de fins, mas de meios.

Diante das mudanças sociais ocorridas nos últimos 20 anos em nosso país – pois tivemos uma nova Constituição, um novo Sistema Público de Saúde (lei do SUS) e uma legislação específica para as Operadoras de Planos de Saúde (suplementar), além das novas tecnologias empregadas na medicina, especialmente na área da imagem e da genética humana – tornou-se necessário repensar na atualização do Código de Ética Médica. Especialmente porque houve uma profunda mudança da moralidade vigente, incluindo a moralidade médica, diante dos novos desafios. Entendendo que a ética é uma ciência reflexiva sobre a moralidade de nossas ações e a moral varia no tempo e no espaço e, geralmente, é apresentada de forma codificada, após ser consensuada, para ser aplicada por persuasão ou coerção, quando houver infração aos deveres de conduta.

Iniciou-se, há três anos, a discussão sobre a revisão do Código de Ética, e uma Comissão Nacional de Revisão do Código preparou as Conferências Nacionais de Ética Médica, escolhendo como símbolo o mito romano de Janus, o deus com duas faces opostas, cada uma delas olhando para o passado e o futuro. Iniciou assim a necessária reflexão ética sobre a moralidade médica contemporânea, à luz da ética das virtudes (aristotélica), a ética dos deveres (kantiana) e a ética da responsabilidade (utilitarista).

Após a fase inicial, foram recebidas mais de 2.500 sugestões de mudanças, oriundas dos médicos e da sociedade civil organizada, e um esquema básico foi proposto para o novo Código (revisto, atualizado e ampliado), que seria composto por três partes: a primeira com os princípios fundamentais (a máxima moralia); a segunda com os direitos (diceologia) e a terceira com os deveres de conduta (deontologia - a mínima moralia), esta última com os artigos com condutas minimamente exigíveis dos médicos sob pena de receberem uma sanção quando infringidos.

Houve uma grande preocupação com a abrangência do Código, prevalecendo o entendimento que os administradores em saúde – tanto gestores da saúde pública ou da suplementar, desde que médicos – deveriam ser alcançados, pois seria inadmissível aceitarmos que normas administrativas prejudicassem a boa relação médico-paciente ou que os custos da assistência assumissem importância maior do que a qualidade da mesma.

Além disso, foram contempladas as questões referentes às novas tecnologias, como a reprodução assistida e a terapia gênica, evitando-se qualquer interferência malévola em gerações futuras. Mais ainda, forte componente bioético foi introduzido no capítulo dos princípios fundamentais, voltado para um reforço na autonomia e beneficência aos pacientes e, também, nas questões ambientais. A introdução dos cuidados paliativos para pacientes em fase terminal de doenças crônico-degenerativas foi avanço contra a obstinação terapêutica com o uso de recursos desproporcionais, desencorajando a distanásia.e garantindo uma morte com dignidade.

Forte ênfase foi dada ao conflito de interesses envolvendo médicos e a indústria farmacêutica e a de equipamentos médico-hospitalares, afastando definitivamente a possibilidade de mercantilismo na profissão médica.

Por fim, tanto os pesquisadores como os professores, médicos, também foram responsabilizados em seus compromissos com a sociedade e com a própria profissão. Assim o ensino medico foi contemplado e é a grande preocupação do Conselho Federal de Medicina, no momento, quando criou, recentemente, a Comissão Nacional de Ensino Medico e pretende envolver, por meio de convênio, a Academia Nacional de Medicina e as academias estaduais de medicina com os conselhos regionais em um grande projeto de ensino de Humanidade visando melhorar a formação moral e intelectual dos novos médicos. Para tal, a a Associação Brasileira de Ensino Médico e os coordenadores dos 180 cursos de medicina, existentes no país, já foram convidados para um grande debate nacional sobre o tema. A Academia Nacional de Medicina está convocada para contribuir, pois, como disse o grande médico catalão do século 19 José Letamendi, “aquele que só medicina sabe, nem medicina sabe”.
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*Roberto Luiz d'Avila é presidente do Conselho Federal de Medicina.
Conferência ministrada ontem na Academia Nacional de Medicina, em sessão ordinária, sob a presidência do acadêmico Pietro Novellino
Fonte: Jornal do Brasil online - 30/04/2010

Grito da terra, clamor dos povos

Frei Betto*
Os gregos antigos já haviam percebido: Gaia, a Terra, é um organismo vivo. E dela somos frutos, gerados em 13,7 bilhões de anos de evolução. Porém, nos últimos 200 anos, não soubemos cuidar dela e a transformamos em mercadoria, da qual se procura obter o máximo de lucro.

Hoje, a Terra perdeu 30% de sua capacidade de autorregeneração. Somente por meio da intervenção humana ela poderá ser recuperada. Nada indica, contudo, que os governantes das nações mais ricas estejam conscientes disso. Tanto que sabotaram a Conferência Ecológica de Copenhague, em dezembro de 2009.

A Terra, que deve possuir alguma forma de inteligência, decidiu expressar seu grito de dor através do vulcão da Islândia, exalando a fumaça tóxica que impediu o tráfego aéreo na Europa Ocidental, causando prejuízo de US$ 1,7 bilhão.

Em reação ao fracasso de Copenhague, Evo Morales, presidente da Bolívia, convocou, para 19 a 23 de abril, a Conferência Mundial dos Povos sobre a Mudança Climática e os Direitos da Mãe Terra. Esperavam-se 2 mil pessoas. Chegaram 30 mil, provenientes de 129 países. O sistema hoteleiro da cidade entrou em colapso, muitos tiveram de se abrigar em quartéis.

A Bolívia é um caso singular no cenário mundial. Com 9 milhões de habitantes, é o único país plurinacional, pluricultural e pluriespiritual governado por indígenas. Aymaras e quéchuas têm com a natureza uma relação de alteridade e complementaridade. Olham-na como Pachamama, a Mãe Terra, e o Pai Cosmo.

Líderes indígenas e de movimentos sociais, especialistas em meio ambiente e dirigentes políticos, ao expressar o clamor dos povos, concluíram que a vida no planeta não tem salvação se perseverar essa mentalidade produtivista-consumista que degrada a natureza. Inútil falar em mudança do clima se não houver mudança de sistema. O capitalismo é ontologicamente incompatível com o equilíbrio ecológico.

Todas as conferências no evento enfatizaram a importância do aprender com os povos indígenas, originários, o sumak kawsay, expressão quéchua que significa “vida em plenitude”. É preciso criar “outros mundos possíveis” onde se possa viver, não motivado pelo mito do progresso infindável, e sim com plena felicidade, em comunhão consigo, com os semelhantes, com a natureza e com Deus.

Hoje, todas as formas de vida no planeta estão ameaçadas, inclusive a humana (2/3 da população mundial sobrevivem abaixo da linha da pobreza) e a própria Terra. Evitar a antecipação do apocalipse exige questionar os mitos da modernidade — como mercado, desenvolvimento, Estado uninacional — todos baseados na razão instrumental.

A conferência de Cochabamba decidiu pela criação de um Tribunal Internacional de Justiça Climática, capaz de penalizar governos e empresas vilões, responsáveis pela catástrofe ambiental. Cresce em todo o mundo o número de migrantes por razões climáticas. É preciso, pois, conhecer e combater as causas estruturais do aquecimento global.

Urge desmercantilizar a vida, a água, as florestas, e respeitar os direitos da Mãe Terra, libertando-a da insaciável cobiça do deus mercado e das razões de Estado (como é o caso da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu).

Os povos originários sempre foram encarados por nós, cara-pálidas, como inimigos do progresso. Ora, é a nossa concepção de desenvolvimento que se opõe a eles, e ignora a sabedoria de quem faz do necessário o suficiente e jamais impede a reprodução das espécies vivas. Temos muito a aprender com aqueles que possuem outros paradigmas, outras formas de conhecimento, respeitam a diversidade de cosmovisões, sabem integrar o humano e a natureza, e praticam a ética da solidariedade.

Cochabamba é, agora, a capital ecológica mundial. Sugeri ao presidente Evo Morales reeditar a conferência, a exemplo do Fórum Social Mundial, porém mantendo-a sempre na Bolívia, onde se desenrola um processo social e político genuíno, singular, em condições de sinalizar alternativas à atual crise da civilização hegemônica. O próximo evento ficou marcado para 2011.

Pena que o governo brasileiro não tenha dado a devida importância ao evento, nem enviado qualquer representante. A exceção foi o deputado federal Chico Alencar (PSol-RJ), que representou a Câmara dos Deputados.
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*Escritor, é autor, em parceria com Marcelo Barros, de O amor fecunda o Universo — ecologia e espiritualidade (Agir), entre outros livros

www.freibetto.org
Fonte: Correio Braziliense online, 30/04/2010

Com o criador, a criatura

Plínio de Campos Whitaker*


Oportuno, no 1 de maio, Dia do Trabalho, refletir sobre o pensamento de Rui Barbosa, quando afirma que também ao homem é dado criar, com o trabalho, a obra da criação. Não é impertinente ler, nas palavras do Águia de Haia, tese de que cabe ao ser humano a paradoxal incumbência de recriar a própria natureza, imprimindo nela retoques finais, sempre portadores da sensibilidade e engenho humanos.

Conforme está na Escritura sacra, a vocação ao trabalho nasce com o homem: “Crescei, multiplicai-vos, enchei a terra e dominai-a” (Gn 1, 28) e, nessas condições, não há como ignorar suas transcendentes dimensões.

O trabalho realizado sob as mais variadas circunstâncias, desde aqueles que requerem equipamentos e trajes sofisticados àqueles cujos executantes, manuseando instrumentos primitivos, protegem-se com rudes vestimentas, insere-se entre as atividades humanas essenciais. Existe em nós congênita necessidade de produzir algo, a que Plínio Moço (Epistulae 3. 7) referiu como aquilo com que marcamos passagem pela vida, já que, diz ele, “os deuses não nos concedem viver longo tempo...”. Aproveitamo-nos da perspicácia da inteligência, da habilidade das mãos para concretizar tão nobre ideal, o que, de modo algum, pode se confundir com o imediatismo doentio, filho menor das doutrinas orientadoras do capitalismo mundial, o “fazer dinheiro”.

Não nos dedicamos ao trabalho com o apenas objetivo de amontoar bens, como não nos atrai imergir em suor amargo preciosos anos de vida, tão somente para que pessoas — a nós próprios, quem sabe — ou organizações se locupletem. Antes, sentimo-nos gratificados quando, por meio de uma atividade produtiva, contribuímos ao desenvolvimento de virtudes humanas. Trabalhando, enriquecemo-nos e tornamos mais rica a sociedade que nos acolhe. Não é sem motivo, aliás, o empenho com que instituições científicas têm insistido no sucesso da laborterapia, já presente na Antiguidade e, hoje, ferramenta eficazmente utilizada na recuperação de toxicômanos e na ressocialização de presos, entre outras aplicações.

Embora os índices de desemprego no País sejam às vezes decrescentes, há ainda muita gente bem qualificada profissionalmente e que aguarda oportunidade no mercado de trabalho. É que interesses mesquinhos cegam empresários, fazendo-os vis manipuladores da energia do trabalho, capazes de preferir lucratividade fácil dos próprios recursos, mas improdutiva, à produtividade saudável do investimento industrial. Quando não, mesmo reconhecendo-se o mérito de se abrir o mundo profissional aos recém-formados, é desleal sistemática preferência por jovens, camuflando estratégia iníqua para reduzir, ao máximo, despesas com mão-de-obra.

Quando encarado em perspectivas sadias, tanto por patrões quanto por empregados — para usar distinção tradicional — o trabalho de cada dia deixa de gerar desentendimentos que têm impedido o progresso dos povos; bem compreendido, é fator de crescimento da pessoa e da sociedade, fonte da paz, somente possível no mundo sempre melhor — de cuja criação todos somos convidados a participar !
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*Plínio de Campos Whitaker é professor aposentado da PUC-Campinas
Fonte: Correio Popular online, 30/04/2010

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Renato Janine Ribeiro conta o que queria saber aos 21


\"Vejo brigas entre PT e PSDB,
às vezes mais pelos meios do que pelos fins,
mais pela vaidade do que pelos valores\",
diz professor

 
 Aos 21 anos, o professor de Ética e Filosofia Política na USP Renato Janine Ribeiro conta que lia muito e achava que podia consertar o mundo. Hoje já não acha possível a curto prazo. À seção "Coisas que eu queria saber...", o professor fala de ditadura, estudo e política. Confira a seguir:

"Em 1971 eu estava no 4º ano de Filosofia na USP, numa faculdade expulsa, pelo Comando de Caça aos Comunistas, da Rua Maria Antonia para a Cidade Universitária. Nunca fui militante, mas tinha ido às passeatas contra a ditadura em 1968, com 18 anos, e às assembleias. Em 1969, tudo acabou. Dos 15 professores do meu departamento, cinco tinham ido embora, havia dois cassados, dois exilados, um estudando fora. Tanto pesadelo deixava pouco lugar para sonhos, mas eu tinha muitos. Lia os marxistas, em especial Althusser, hoje esquecido. Lia Machado de Assis. Queria ser professor na USP, o que acabou acontecendo, anos depois.

Em 1968, tinha completado o curso da Aliança Francesa em 1º lugar no País, e ganhei uma bolsa na França, adiada até a minha formatura, por eu ser muito jovem. Passar quatro anos sabendo que ia para Paris era bom, mas parecia tornar tudo provisório. A bolsa era de nove meses. Fiquei três anos e meio. Até pouco tempo atrás, ainda dividia minha vida entre antes e depois da França!

Queria saber sobre o ser humano. Lia sociologia, história, psicanálise, teoria política, acreditando que o mundo podia se consertar. Não acho mais que isso seja viável em curto prazo. Há pouco tempo, tive a sensação de que talvez não veja um Brasil sem corrupção, sem injustiça. Esses flagelos diminuíram muito, mas até acabarem vai-se exigir muito, sobretudo que as pessoas parem de brigar, como vejo entre PT e PSDB, às vezes mais pelos meios do que pelos fins, mais pela vaidade do que pelos valores.

Hoje creio que sei bastante do que queria aprender. O que gostaria não é tanto que o mundo saiba mais, mas que consigamos agir do jeito que consideramos certo. Sabemos que a vaidade e a ganância não são boas. Mas por que continuam tão poderosas? Sabemos o que não traz a felicidade. Por que, então, continuamos fazendo o que não a traz?"
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Fonte: Estadão online, 27/04/2010

Uma tradição

L. F. VERISSIMO*
Quando Catarina, czarina de todas as Rússias, convidou o enciclopedista francês Denis Diderot para ser uma espécie de filósofo em residência no palácio Hermitage, em São Petersburgo, estava seguindo uma tradição que começara anos antes com o convite da rainha Cristina da Suécia a René Descartes para ir dar uma sacudida intelectual no seu reino. Anos mais tarde, Frederico o Grande, da Prússia, também quis ter o seu francês e mandou buscar Voltaire para ser seu interlocutor e consultor literário e legitimar sua pretensão a rei-filósofo, um legítimo produto do Iluminismo.

Descartes, com sua ideia doida de que o homem inventara Deus com a razão que Deus lhe dera, foi hostilizado pelos pensadores locais como já tinha sido combatido pela Igreja na França. Escreveu de Estocolmo para um amigo: “Me parece que aqui as ideias congelam, exatamente como a água”. Foi o frio da Suécia que o matou, embora se desconfie que os médicos da corte, inspirados pelo ciúme que ele provocava, tenham ajudado um resfriado a se tornar mortal.

Denis Diderot ficou dois anos em São Petersburgo. Seu relacionamento com a czarina e sua corte foi no mínimo pacífica e a separação foi amigável. A visita de Voltaire ao palácio de verão de Sans Souci, perto de Berlim, se estendeu para três anos e foi feliz enquanto durou – ou até Voltaire ser preso a mando do rei quando tentava voltar para casa, acusado de quebra de contrato e corrupção e de ter roubado alguns dos seus poemas eróticos, provavelmente a acusação que mais doeu. Mas é curioso como os três (entre outros, como Rousseau, Condorcet, D’Alembert, que também levaram conselhos franceses a poderosos de outras terras) foram adotados por monarquias absolutas justamente por serem notórios hereges, cuja crítica à ortodoxia religiosa implicava, por tabela, uma crítica a todo poder absolutista, e cujas ideias mais tarde dariam origem às revoluções republicanas. (É de Diderot a frase “A humanidade só será livre no dia em que o último déspota for enforcado com as tripas do último padre”).

Talvez os monarcas intuíssem que mostras de inquietação intelectual e credenciais progressistas os salvariam da onda racionalista que se aproximava, ou talvez apenas quisessem intelectuais iconoclastas aos seus pés, como animais domados. Mas qual era a razão dos intelectuais para aceitarem os convites? Na época, não se recusava um bom patrono, ainda mais um patrono com verbas reais, mas mesmo assim... Já era, então, a questão, que atravessaria a História, da relação dos intelectuais com o poder e do poder com os intelectuais. Onde terminam a fascinação e a vaidade e começa a cumplicidade, onde termina a admiração e começa a cooptação.
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*Escritor. Cronista.
Fonte: ZH online, 30/04/2010

A Ecologia das relações

 Eunice Fernandes de Oliveira Hilsdorf Brito*
 A preocupação com o meio ambiente chegou para ficar. Já não há mais quem desconheça por completo o assunto e nos sabemos donos de parcela da responsabilidade por tudo o que acontece ao nosso redor.

É grande o número de pessoas que, em suas rotinas, já adotou novos costumes. Mudanças simples porém, significativas. O verde está na moda. Mas será que a palavra ecologia tem apenas essa cor? Por mais que esse tom sempre nos venha à cabeça quando pensamos na palavra, ecologia é mais do que isso. É, antes, a forma como lidamos com esse verde, tanto individualmente, quanto como parte da sociedade, do todo humano. Vale lembrar que a palavra ecologia vem do grego “oikos”, que significa casa, e “logos”, estudo. É o estudo da grande casa humana, de tudo o que há nela e de todos os seus ocupantes!

Por isso, podemos dizer que existe uma “ecologia” das relações humanas com a qual igualmente devemos nos preocupar. Nossa relação com o planeta terá a harmonia necessária para sua preservação apenas se, antes, como células desse grande corpo-terra, nós viermos a estabelecer uma coesão humana. Devemos adquirir tal consciência porque, então, passaremos a nos preocupar não só com o planeta que deixaremos aos nossos filhos, mas também com os filhos que entregaremos ao planeta.

Em “O Homem e Suas Viagens”, Carlos Drummond de Andrade pergunta: estará o homem equipado para a dificílima viagem de si a si mesmo, descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas a perene e insuspeitada alegria de “con-viver”? Essa é a incrível viagem. A viagem do conhecimento de si mesmo. Qual a importância das palavras do poeta? A viagem de si para si, ao contrário de acarretar o isolamento ou alheamento, nos permite enxergar em nosso interior todas as virtudes e defeitos da espécie humana. Assim, convivemos com os outros sem a necessidade do julgamento, porque nos reconheceremos reciprocamente. Nos tornamos mais compreensivos e podemos criar uma verdadeira comunhão com nossos semelhantes. A simbiose entre universo e seres humanos passa necessariamente pelo encontrar a si mesmo.

Quando pensamos na atual dinâmica da sociedade humana, na evolução que permite ao homem um domínio cada vez mais amplo dos processos de materialização de seus desejos, o alerta de Drummond mostra toda sua força. Sem uma base social forte, uma verdadeira “ecologia das pessoas”, todas nossas conquistas sempre estarão ameaçadas por reviravoltas que serão provocadas por nós mesmos, por movimentos de parcelas do agrupamento humano que foram excluídas, que se sentem insatisfeitas porque foram postas à margem.

Uma das mais perceptíveis facetas desse desenvolvimento é a do campo da tecnologia da informação. A internet, exemplo máximo, amplifica e espalha, em tempo real, as mais novas conquistas em todas as áreas do conhecimento. Permite, por exemplo, o contato direto com as diferenças culturais que nos marcam. A “floresta humana” não tem fim e, agora, bate à nossa porta; os horizontes se alcançam a toques de computador. Mas para que a multiplicidade de situações da vida não nos oprima, não nos deixe perdidos (o que provoca a intolerância, o desejo pela anulação das diferenças, impedindo a verdadeira interação), devemos empreender a viagem de que fala Drummond.

Mais uma vez: o auto-conhecimento não implica em isolamento. Pelo contrário, permite a identificação, a consciência do todo, de fazermos parte de uma mesma espécie. E, assim, com todas as ferramentas que hoje temos à disposição, poderemos criar uma rede ao mesmo tempo global e local. E são redes que se fazem presente em todos os lugares e situações. Em uma empresa, por exemplo, o primeiro passo para estabelecer a unidade entre os elementos individuais é identificar os idiomas que são falados. Montar um mapa. O que existe em comum entre esses indivíduos? Quais são os valores reconhecidos? Qual é a missão pela qual todos se sentem responsáveis? Claro que sempre haverá a diferença (ela é a condição primeira), mas deve-se encontrar a identidade, o fecho de valores sintetizado por uma imagem pela qual todos estão a serviço.

Contudo, a experiência da análise da dinâmica empresarial tradicional demonstra a existência de uma frágil união entre seus membros. Uma união formal, imposta de fora para dentro, que não é orgânica. Em geral, a única preocupação é que cada um saiba “qual é seu lugar” e, ainda que assim se possa identificar a perspectiva horizontal de uma empresa, com seu capital, tecnologia, competências e habilidades, não se constrói uma verdadeira identidade, um propósito, a razão da existência, valores e visão da organização. Porque apenas dessa maneira se estabelecerá uma unidade natural onde cada semente germinará espontaneamente, em benefício de si mesma e de todos. É assim que funciona no meio ambiente e, aprendendo com a natureza, é também como devemos forjar a “ecologia das pessoas”.

Não é trabalho mágico. Milênios foram necessários para que se formassem as florestas, para que pequenas flores e grandes árvores convivessem em harmonia. Pôr em prática seu próprio conhecimento não pode ser a única missão de um novo empregado. A ele não se deve apresentar apenas seus objetivos individuais, mas, mais do que isso, mostrar-lhe qual será seu papel dentro da cultura de valores da empresa e como isso se dará em relação à contribuição das outras pessoas. É disso que se trata a “ecologia das relações”, a “ecologia das pessoas”: de uma reorganização necessária (e plenamente possível) dos espaços de nossas vizinhanças, cidades, empresas, etc… Assim, nossa grande “casa” será cuidada por inteiro, sem que reste qualquer cantinho esquecido!
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*Eunice Fernandes de Oliveira Hilsdorf Brito é diretora-fundadora da Semilla Consultoria e Desenvolvimento de Recursos Humanos (http://www.semilla.com.br/).
Fonte: Mercado ético online, 30/04/2010

Diversidade: bio e cult

Redação da Página 22


Será que é mais difícil perceber a importância da variedade de culturas do que a de espécies? A biodiversidade foi objeto de convenção internacional já em 1992, mas a Convenção sobre a Diversidade Cultural só deu as caras treze anos depois. Apesar disso, os dois assuntos têm muita coisa em comum. Veja, por exemplo, o destaque que se dá è promoção da paz em ambos os textos:

“A preservação e o uso duráveis da diversidade biológica reforçarão as relações amigáveis entre os Estados e contribuirão com a paz da humanidade” - Convenção sobre a Diversidade Biológica, 1992, assinada por 150 países

“O respeito à diversidade das culturas, à tolerância, ao diálogo e à cooperação, em um clima de confiança e entendimento mútuos, está entre as melhores garantias da paz e da segurança internacionais” - Convenção sobre a Diversidade Cultural, 2005, assinada por 148 países.

O paralelismo não pára por aí. As duas diversidades também são vulneráveis à extinção. Se um saber ou fazer cultural desaparece, não tem mais volta. Do mesmo jeito que um bicho ou uma planta.

Além disso, ambas são ameaçadas por interesses econômicos. A gente já cansou de falar por aqui como a economia florestal é crucial para a conservação da Amazônia, por exemplo. Pois é também no esforço de promover valor e competitividade de mercado que se garante sobrevida à variedade cultural.

Nada disso saiu da nossa cabeça, infelizmente, mas do livro Economia da cultura e desenvolvimento sustentável (Editora Manole - 2007) de Ana Carla Fonseca Reis, a maior autoridade em economia criativa no Brasil. O livro serviu de base para uma das reportagens na próxima edição de Página 22, que começa a circular na semana que vem.

“É ao restituir à diversidade um sentido também econômico que conseguimos lutar contra sua destruição, já que a lógica e o bom senso parecem não operar quando desacompanhados de sustentação financeira”, diz a autora.

Quem não tiver acesso ao livro pode conferir mais sobre esse assunto no artigo aberto Diversidade Cultural e Biodiversidade, da mesma autora.

Interdependência

Numa perspectiva, digamos, mais utilitarista, o sentido de preservar as diversidades nos campos biológico e cultural é manter as opções em aberto para a humanidade. É dispor de um arsenal sem fim de instrumentos e saberes para os desafios do futuro. Como propõe Amartya Sen, liberdade mesmo é liberdade de escolha.

Essa é uma das justificativas elencadas no relatório Cultural Diversity and Biodiversity for Sustainable Development, produzido pela Unesco em 2002. Ali se afirma que ambos os territórios “guardam a chave para se assegurar resiliência tanto nos sistemas sociais quanto nos sistemas ecológicos”.

Outra sacada é que a própria cultura tem origem não só nas interações entre pessoas, mas entre pessoas e seus meios. Daí a tendência, identificada no relatório da Unesco, a que lugares mais biodiversos tenham também maior diversidade lingüística. Se pensar no Brasil, não lembre só da língua oficial, mas também dos dialetos indígenas. (Leia mais na coluna de Regina Scharf, Letra morta, na edição 39)

Essa percepção levou a União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN), em 2006, a propor um plano de conservação para os locais sagrados de culturas antigas espalhadas pelo mundo.

Por fim, um último ponto em comum, talvez o mais legal. Uma espécie só sobrevive em contato com outras, por isso a biodiversidade se esvai em unidades isoladas. Daí a ideia dos corredores ecológicos ou a preocupação também com a manutenção do entorno de área protegidas. Pois o mesmo se passa no campo da cultura. O bom é misturar.

Como disse Claude Lévi-Strauss: “A diversidade é menos uma função do isolamento dos grupos do que das relações que os unem”.
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Redação da Página 22
Fonte: Mercado ético online, 29/04/2010

Uma introdução ao transhumanismo

Tentando construir um novo tipo de pessoa

E. Christian Brugger

 WASHINGTON DC, quarta-feira, 28 de abril de 2010 (ZENIT.org).-As ideias do jovem movimento internacional conhecido como "transhumanismo" está começando a caracterizar o pensamento de um número cada vez maior de médicos e bioéticos. Acredito que nossos leitores poderiam tirar proveito de uma breve introdução a elas.

O transhumanismo é, na realidade, um conjunto de ideias que se desenvolveram em resposta ao rápido avanço da biotecnologia nos últimos vinte anos (ou seja, que a tecnologia é capaz de aspirar à manipulação das condições físicas, mentais e emocionais dos seres humanos). A medicina convencional tradicionalmente tem tido o propósito de superar os transtornos que afligem a condição humana: hemorragias, cauterizações, amputações, fornecimento de medicamentos, operações e transferências para climas mais secos, todos com a finalidade de facilitar a saúde e lutar contra a doença e a degeneração, ou seja, o propósito era curar (isto é, era basicamente terapêutico).

A tecnologia está tornando possíveis intervenções que, além de uma finalidade terapêutica, estão destinadas ao reforço das capacidades humanas saudáveis. Há uma gradual, mas constante ampliação dos ideais médicos, desde o simples cuidado médico até a cura e melhora. Todos nós estamos muito familiarizados com as "drogas que melhoram o rendimento" no esporte profissional. Contudo, a biotecnologia promete criar formas possíveis de melhoria que vão muito além do aumento muscular.

A terapia genética germinal, por exemplo, desde seu início, tem como objetivo modificar geneticamente as "células germinais" humanas (ou seja, o esperma e os óvulos), com a finalidade de introduzir características desejáveis no âmbito intelectual, físico e emocional, e excluir as indesejáveis. Visto que as modificações acontecem nas células na linha "germinal", as características são herdadas e transmitidas às gerações posteriores. Medicamentos para melhorar a função mental, como Ritalina e Adderall, são cada vez mais utilizados por pessoas saudáveis a fim de melhorar as capacidades cognitivas. Um estudo demonstrou que cerca de 7% dos estudantes universitários dos EUA usam os estimulantes de prescrição com fins de melhora. Esse número parece só aumentar.

A pesquisa está avançando rapidamente com tecnologias de ponta, tais como a interface cérebro-computador direto (BCI), os implantes de micromecânica, nanotecnologia, prótese de retina, neuromuscular e cortical, e os chamados "chips de telepatia". Embora cada uma dessas tecnologias possa desempenhar um papel na transformação das vidas dos pacientes com deficiência para que possam se comunicar melhor, manipular equipamentos, ver, caminhar, mover suas extremidades e se recuperar de doenças degenerativas, o transhumanismo os vê como possíveis instrumentos para a transformação da natureza humana. A versão de 2002 da Declaração Transhumanista estabelece: "A humanidade vai mudar radicalmente no futuro através da tecnologia. Prevemos a viabilidade de redesenhar a condição humana, incluindo parâmetros tais como a inevitabilidade do envelhecimento, limitações dos intelectos humanos e artificiais, psicologia não escolhida, sofrimento e nosso confinamento no planeta Terra".

Sua proposta mais radical é a superação da morte. Embora o objetivo pareça como fantasia, há cientistas e filósofos influentes comprometidos nisso. O pertinente cientista e inventor transhumanista, Dr. Ray Kurzweil, diz que durante a maior parte da história humana a morte era tolerada porque não havia nada que se pudesse fazer a respeito. Mas está se aproximando rapidamente o momento em que vamos ser capazes de isolar os genes e as proteínas que causam a degeneração de nossas células e reprogramá-las. O pressuposto da inevitabilidade da morte já não é crível e deve ser removido. Michael West, presidente de uma das maiores empresas de biotecnologia nos EUA, Advanced Cell Technology, concorda, argumentando que "o amor e a compaixão por nosso próximo, em última instância, nos levarão à conclusão de que temos de fazer de todo o possível para eliminar o envelhecimento e a morte".

Embora eu acredite que a maioria das pessoas no mundo ocidental não compartilha as ideias mais radicais do transhumanismo, a aceitação da preocupação pela autonomia humana que está subjacente à filosofia transhumanista é praticamente pela autonomia secular e da bioética nos dias de hoje. Os testamentos vitais que consagram o direito das pessoas de rejeitar o tratamento para prolongar a vida, mesmo se não estiverem morrendo, está se tornando algo comum nos hospitais e nos formulários de consentimento. Oregon, Washington e Montana legalizaram o suicídio medicamente assistido, alegando como cilindro retórico o argumento que se garante o direito à autonomia de uma pessoa a exercer a livre determinação não somente sobre sua vida, mas também sobre sua morte. Se a autonomia se estender a estas realidades, então certamente garantirá a liberdade para melhorar nossas capacidades.

Receio que atualmente o único que previne a afirmação em grande escala do imperativo transhumanista é um fator de "desgosto emocional", que, podemos ter certeza, diminuirá gradualmente em virtude da insistência suave e implacável da opinião leiga. Ao fazer isso, nossa nacionalidade, isolada por esse conceito de autonomia extrema, se encontrará sem defesa diante do imperativo tecnológico, que diz: se podemos planejar nosso filho perfeito, se podemos ser mais inteligentes, fortes e bonitos, se podemos prolongar indefinidamente a vida humana, então devemos fazê-lo. Se os embriões são sacrificados por meio do processo de experimentação para a perfeição dessa tecnologia, ou se as desigualdades sociais são introduzidas para benefício de uns em detrimento de outros, este será o preço do progresso!

A instrução do Vaticano sobre bioética de 2008, Dignitas Personae, fala sobre o uso da bioética para "introduzir alterações com o suposto objetivo de melhorar e fortalecer o patrimônio genético" e adverte fortemente contra a "mentalidade eugênica" que tal manipulação promove. Tais atitudes estigmatizarão as características hereditárias da imperfeição, gerando preconceitos com relação às pessoas que a possuem, dando prioridade àquelas que possuem qualidades supostamente desejáveis.

A instrução conclui dizendo: "Também temos que notar que, na tentativa de criar um novo tipo de ser humano, pode-se reconhecer um elemento ideológico em que o homem tenta ocupar o lugar de seu Criador" (n. 27).

Os esforços por manipular a natureza humana, desta forma "[...] acabariam prejudicando o bem comum" (n. 27).
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Fonte: Zenit, 29/04/2010

E aí, vamos prender o Papa?

Paulo Ghiraldelli*


O Papa vai visitar a Inglaterra em setembro. Há quem diga que ele quer que Susan Boyle cante em sua presença, na sua visita ao reino protestante. O biólogo britânico Richard Dawkins e o filósofo político Christopher Hitchens parecem não se opor que Boyle cante, contanto que o Papa escute a bela voz atrás das grades.

Os protestantes ingleses não estão comemorando o ataque desses pensadores ao Papa, pois sabem bem que a metralhadora ateísta não poupa os que, na sua mira, seriam não colaboradores de Deus e, sim, asseclas do Mito. Dawkins e Hitchens são espalhafatosos e podem, mais uma vez, estar fazendo barulho para além do que realmente é factível. Todavia, eles não estão legalmente errados – eles dizem que advogados internacionais de Direitos Humanos podem conseguir a prisão do sacerdote por “crimes contra a humanidade”, e que o Papa não está protegido, pois a presença dele no Reino Unido não se caracteriza como “visita de um chefe de Estado”, uma vez que o Vaticano não é reconhecido como tal pela comunidade britânica.

Qual o crime do Papa? Os dois pensadores o acusam de ter protegido pessoas que são criminosos confessos. Sim! A referência é clara: fala-se aqui dos padres e bispos que cometeram abusos sexuais com crianças, em uma quantidade jamais vista, e que teriam sido deliberadamente acobertados pelo Papa Bento XVI, quando ele era ainda Cardeal, mas não pouco poderoso.

Pela conta de Dawkins e Hitchens, Susan Boyle não iria encontrar dificuldades de se deslocar até uma casa de detenção.

A acusação de Dawkins e Hitchens não tem somente uma faceta político-religiosa. Ela tem um lado filosófico. Mais ainda: ela serve para mostrar alguma coisa que, não raro, passa-nos despercebido, que é a re-aliança entre religiosos e pessoas escolarizadas que lidam com a ciência, cinco séculos depois do grande estranhamento entre esses dois campos, com o advento da modernidade. Do que eu falo? Ah, explico rapidamente.

O filósofo da Escola de Frankfurt Max Horkheimer, na primeira metade do século XX, escreveu vários ensaios falando de uma aparentemente estranha ligação entre cientistas da natureza e teólogos. O que ele dizia era mais ou menos o seguinte: enquanto o pensamento iluminista se tornou a ponta de lança contra o pensamento religioso, exatamente uma das componentes do iluminismo, as ciências naturais, que saiu na frente na indisposição contra a religião, é o elemento que, agora, se alia ao modo de pensar teológico ou mesmo religioso. Os cientistas se tornaram alheios à filosofia. Eles não querem ter uma compreensão racional do mundo. Eles se submetem a uma formação que os coloca como pesquisadores de partes da natureza e da linguagem matemática. São seduzidos facilmente pela idéia de que se tornaram profissionais do campo de produção da tecnologia. Na falta de um interesse decidido pela busca de uma compreensão filosófica do mundo, que seria mais racionalmente compatível com o estágio de desenvolvimento do que fazem no âmbito científico, caem vítimas de uma cosmologia que não é senão uma nova teologia, isso quando não aderem a misticismos fáceis, do tipo da prática de “pesar a alma” dos espíritas que saem pelas tabelas em laboratórios – algo do fim do século XIX, mas que anda solto por aí ainda hoje.

Para Horkheimer, o liberalismo havia até ajudado na fixação dessa nova aliança entre escolarizados da ciência e escolarizados da teologia. Dando condições de todos conviverem no âmbito do mercado e da sociedade civil com suas crenças teológicas, o liberalismo teria acabado por fazer imperar a regra que, popularmente, diz que “futebol, beleza de mulher e religião não se discute”. O ambiente da não discussão gerou médicos, fisiólogos, físicos, biólogos e químicos incapazes de saber quem foi Hegel ou Kant ou Hume, ou mesmo Galileu, e então, na santa ignorância, caíram sob o manto de qualquer santidade (e o trocadilho aqui é proposital).

Tudo isso que digo não são palavras de Horheimer, são minhas. Mas o que ele escreveu não foge disso. O recado é o mesmo: os intelectuais que sabem da história do iluminismo e que até participaram dela, se esqueceram do papel obscurantista da religião. Com isso, permitiram a uma geração de pessoas altamente escolarizadas começasse a se esquecer que a ciência era, antes de tudo, uma filosofia, ou seja, uma visão de mundo, e que exatamente assim destronou a religião no que esta tinha de não racional, de místico, de mágico e obscurantista.

Diante de um mundo que possui um Bin Laden andando por aí, é claro que vários de nós, filósofos, tendemos a agir de modo a não piorar as coisas. Assim, tentamos não reacender o debate sobre religião e modo de vida moderno. Uma boa parte dos filósofos está convencida que a fórmula de Locke, a da tolerância, é a melhor maneira de conversar com os diferentes e, então, dizer para eles que vamos ter de conviver, uma vez que precisamos da sociedade de mercado unindo todos nós. Somos liberais! Agora, é claro que nós sabemos que Bin Laden não acredita nisso. Ele, muito mais que qualquer comunista do passado, diz que nenhuma sociedade de mercado, nos tipos oferecidos pelo Ocidente, está em comum acordo com as leis de Deus. Todavia, não estamos dispostos a enfrentá-lo como enfrentamos, por exemplo, Hitler. Bin Laden é bem mais esperto que Hitler. Ele não se apresenta de peito aberto. E isso o torna mais perigoso que “o louco”.

Agora, esse nosso medo de Bin Laden, que nos faz sacar da Carta da Tolerância, não desautoriza Dawkins e Hitchens a continuar suas sanhas ateístas. Eles estão nos mostrando que, talvez, uma boa parte do Ocidente não esteja contra Bin Laden. Eles estão convencidos que os homens de ciência se esqueceram da luta filosófica que a ciência levou contra a mitologia religiosa que oprimia não só a vida social, mas a vida privada, individual. Eles acreditam – não sem dados nas mãos – que há muitas gente cuja escolarização não os deveria permitir que pensassem em termos fundamentalistas e, no entanto, continuam pensando. Essas pessoas não são do Terceiro Mundo somente, elas vivem nas democracias ricas e escolarizadas do Atlântico Norte.

Mutatis Mutandis Dawkins e Hitchens fazem eco à denúncia de Horkheimer: falta uma compreensão filosófica ao homem de ciência de hoje que, enfim, se tornou especializado demais e, assim, muito sensível ao apelo de compreensões gerais do mundo que são perigosamente mitológicas. Essas pessoas são aquelas que podem, mais cedo ou mais tarde, fabricar armas para colocar nas mãos de Bin Laden ou de qualquer ocidental que queira fazer sua guerra santa particular. Pois elas agem com inocentes úteis ou, também, como participantes de cosmovisões pouco racionais.

Dawkins e Hitchens não estão de todo errado quando dizem que a incultura da ciência pode ser vítima da extrema cultura super conservadora do Papa. A incultura dos homens de ciência pode servir aos interesses da alta cultura malvada do Vaticano e ambos, sem o saber, caírem de joelhos ao completo desprezo pela alta cultura vinda de Bin Laden. Não sei se Dawkins e Hitchens chegam a formular as coisas assim, mas sua luta ateísta tem essa faceta positiva e um tanto útil. Talvez eles estejam certos. Talvez tenhamos que usar a Carta da Tolerância em uma mão e a legislação que nos resta, a favor da civilização, na outra. Assim, que Susan Boyle seja tolerante e cante para o Papa, mas que a legislação internacional funcione e coloque o velho lobo Ratzinger, agora travestido de Bento XVI, na cadeia.

Os discursos de Dawkins e Hitchens têm ao menos esse objetivo útil, a de fazer pessoas como eu, extremamente condescendentes com os religiosos, a ficar de orelha em pé. Devo pensar – por que não? – que às vezes os religiosos do Ocidente, ao fomentar antes a magia que a religião, antes o fundamentalismo fanático que a fé enquanto algo de foro íntimo, estão pondo salsicha demais no Hot Dog de figuras como Bin Laden, gente que decisivamente não possui nenhum apreço por nada, nadinha que o Ocidente construiu até agora. Ou melhor, gente que tem apreço, sim, por algumas obras do Ocidente: suas armas, não sua penicilina.
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*Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Política e ressentimento

J. B. Libanio *

O ressentimento azeda a política pelos dois lados de quem se ressente e de quem age por ressentimento. Ele fere de fora e de dentro. Alguém não tem clareza sobre seu eu e uma palavra vinda a esmo o machuca. A falta de autoconhecimento peca pelo lado da vaidade que estende o eu para além da verdade. Alguém se imagina mais do que de fato é. Qualquer toque da verdade, fere-o.

A tradição cristã conhece a virtude da humildade. Ela serviu, infelizmente, muitas vezes, de ocasião de chacota. Em vez de transparência, ela prestou-se para ocultar inferioridade, mediocridade. Nada disso se chama humildade. A sua base primeira vem da consciência de sermos dom no singular de Alguém maior do que nós. E os dons no plural irradiam-se dessa fonte original. E quanto mais eles inundarem outros de bem, mais revelam a origem primeira.

A humildade não diminui a dignidade de ninguém. Pelo contrário, firma a pessoa na certeza de que possui um dom inalienável e que nenhuma palavra tola de fora afeta. Defende-nos do ressentimento. Ela equilibra os dois polos da verdade. Nem vaidade, nem vergonha. Dignidade.

Os gregos conheceram na política o exercício das virtudes. Parece que entre nós tal afirmação soa cafona. Falar de virtude para um político tem sabor de sermão moralista de padre. E, no entanto, sem virtude(s) não existe política digna desse nome. A defesa contra o ressentimento não vem da psicologia nem da arrogância pessoal, mas da consciência de que todos vivemos sob o olhar bondoso e criador de um Deus amor.

O ressentimento envenena ainda mais a política quando ele move à ação. Lamentavelmente parte da publicidade tem agido de um lado e de outro movida pelo ressentimento. Um mínimo de inteligência crítica percebe o azedume escondido em manchetes e frases. Ela aposta na ingenuidade e incultura das pessoas. Se lhes prezasse a dignidade aproximaria mais da realidade, da verdade, da honestidade dos juízos, abdicando-se do ressentimento amargo.

A verdade liberta. Não a da matemática ou da física, mas a que brota do seio mesmo de Deus. Verdade significa coerência com o projeto criador de Deus que viu que tudo que criara era bom. Esquecemos essa bondade radical da criação e ainda maior da recriação em Cristo, para perder-nos nas lamas do pecado, na expulsão do paraíso. Olvidamos a promessa de que um descendente da mulher esmagará a cabeça da serpente. Ele já veio e já a esmagou.

E nesses dias passados celebramos a vitória da vida sobre a morte. Se a visão cristã informasse mais o quadro da política caminharíamos por estradas pavimentadas pela justiça, pela honestidade, pelo reconhecimento do bem. Onde houver uma migalha de beleza, de bondade e de verdade, seja nas próprias hostes como nas dos adversários, aí se semeia a esperança. E, por outro lado, a corrupção, o suborno, o abuso dos meios de convencimento retratram a noite de nossa maldade. Que a luz vença as trevas!
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* Padre jesuíta, escritor e teólogo. Ensina na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), em Belo Horizonte, e é vice-pároco em Vespasiano
http://www.jblibanio.com.br/
Fonte: Adital, 27/04/2010