quarta-feira, 17 de março de 2010

Violência e ternura

MARCELO COELHO

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Um fenômeno nas histórias de Glauco é tudo interromper-se
numa brutal surpresa

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PEÇO LICENÇA para transcrever trechos de um artigo sobre Glauco que publiquei na Folha em 1987. Nem tudo no texto era tão sombrio como as passagens que seleciono agora, mas não há como fazer diferente.

Glauco é conhecido pelas perninhas de seus personagens. Personagens não é bem o termo; mas as perninhas, invariavelmente, brotam, quatro ou cinco, de um só corpo básico, delimitado por dois riscos paralelos, num minúsculo e constante afã de movimento, indicando ao mesmo tempo a rapidez de alguém que se desloca e o fato de estar parado no lugar.

Diversas atividades -fumar, comer um sanduíche, administrar-se uma injeção- se tornam simultâneas: é como se víssemos os quadros de um desenho animado superpostos. Esta concentração do tempo ocasiona, no quadrinho seguinte de cada tira, um fenômeno frequente nas histórias de Glauco, que é o de tudo se quebrar, interromper-se numa brutal surpresa.

Os cortes, as abreviações dos fatos, são os mais violentos possíveis. Sem nenhuma preparação, exceto o insuportável frenesi anterior, determinada figura humana se transforma em gorila ou cão raivoso.

Não há meio termo. A violência surge no seu extremo exagero. A vítima não recebe os habituais pastelões em pleno rosto: atiram-lhe um ferro de passar roupa. À menor adversidade, alguém reage sacando o revólver de um bolso inexistente. O superego não se impõe com as armas da densidade, da vigilância.

Vive de acessos irracionais, de descontroles; é um segundo id. (...) Característico do traço de Glauco é o fato de não haver um contorno completo para a figura. O corpo é feito de alguns riscos. O interior da personagem é contido por uma linha sumária de caneta.

Mas é incorreto falar em "interior", em "contenção" neste caso, porque não há nada a conter; é simplesmente o vazio de um boneco que se separa fragilmente de um cenário também vazio.

Predomina o branco no desenho. Não há dentro e fora, apenas um esquema onde cada um se situa precariamente. Por isso é fácil a metamorfose de um cidadão pacato em lobo, em assassino ou vedete; a matéria não lhe oferece resistência. Já chamaram o ser humano de "poço de inquietude": o animal que, sozinho, é mais inquieto do que toda a criação.

Ao corre-corre das figuras de Glauco, parece contrapor-se o desejo de alguma coisa. O objeto preferencial da sensualidade é aquela boneca de plástico pertencente a Geraldão: imóvel, de braços abertos, sem vida -porque a vida é essa atividade inquieta, incansável e vazia de quem não se satisfaz com coisa alguma.

(...) Os homens, dizia Pascal, "têm um instinto secreto, que os leva a procurar divertimentos e satisfações exteriores, nascido do ressentimento de suas contínuas misérias; e têm outro instinto secreto, resto da grandeza de nossa primeira natureza, que os faz conhecer que a felicidade só está, de fato, no repouso, e não no tumulto; e, desses dois instintos contrários, forma-se neles um instinto confuso, que os leva a procurar o repouso pela agitação".

Nas histórias de Glauco, a agitação não leva a nenhum consolo; tudo se interrompe porque conhece uma explosão violenta. A explosão da boneca inflável, o arremesso do ferro de passar roupa, a máscara monstruosa da cólera revelam a impossibilidade que se caracterizava nos primeiros quadrinhos da história.

A vidinha que Geraldão ia levando no começo da história parece até ser feliz, como é feliz a agitação de seus pequenos membros; sua inconsistência não é a de um louco, de um alienado, mas a de uma criança.

A absoluta pureza de alma -a quase ausência de alma- que se expressa em seus movimentos é rompida não por uma força interior, por uma tensão acumulada, mas por um ato de distanciamento do desenhista, um impulso de verdade que parte do autor da história.

Se a temática das tirinhas é escabrosa, nem por isso deixa de haver uma imensa delicadeza, uma imensa ternura em tudo aquilo. Só quem se sente ferido pela mais vaga violência do cotidiano, pela mais simples das frustrações que experimentamos todos os dias, poderia representá-la de um modo tão absoluto, revelá-la tal como realmente é, transfigurada na brutalidade extrema do desfecho.
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Fonte:Folha online, 17/03/2010
 coelhofsp@uol.com.br

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