terça-feira, 23 de março de 2010

Uma lição de humildade

Moacyr Scliar*

Graças à Academia Brasileira de Letras estou usando um leitor óptico. Trata-se de um modelo relativamente modesto, diferente do Kindle, por exemplo, por meio do qual pode-se receber milhares de textos. Mas, mesmo modesto, esse leitor óptico permite o acesso a dezenas de obras-primas da literatura brasileira e da literatura universal: Machado está ali, e José de Alencar, e Euclides, e Mark Twain… Trata-se de um equipamento relativamente fácil de usar. Permite, inclusive, aumentar o tamanho das letras, tornando a leitura mais confortável. Fica de imediato a impressão de que o leitor óptico veio para ficar, como aconteceu com o livro impresso nos tempos de Gutemberg. Mas uma série de perguntas perturbadoras nos ocorrem, a começar por uma crucial: trata-se apenas de uma variante do livro tal como o conhecemos ou é uma revolução no hábito da leitura?
Por enquanto é cedo para dizer, mas de imediato dúvidas surgem. Qual será, nessa tecnologia, o papel das livrarias, das bibliotecas — das editoras? Alguém já deve estar pensando que a comunicação do texto agora é coisa direta: do produtor para o consumidor. O escritor termina um romance, clica no “envia”, e pronto, ali está a obra no leitor óptico das pessoas que figuram em sua lista. Mas essa possibilidade é perturbadora, exatamente porque pressupõe a eliminação de uma série de etapas clássicas. Afinal, a edição não significava apenas embalar o texto para a venda: era um processo que envolvia o exame e a discussão do próprio texto, o planejamento gráfico, e a elaboração de uma capa. Tudo isso pode permanecer, obviamente, mas em caráter virtual — e já falaremos sobre o que significa esse caráter virtual.
O mesmo se pode dizer da livraria. Que não é apenas um lugar de venda de um produto. A livraria é um centro de referência: ali estão os livros, expostos, permitindo a comparação. E a livraria é um centro de convivência. Não por outra razão muitas delas têm poltronas e um café, onde o alimento para o corpo complementa a nutrição espiritual, e onde se pode encontrar outros leitores e trocar ideias com eles.
Mais que isso, muita gente já falou sobre o significado sensorial e simbólico do livro, um objeto que pode ser tocado, folheado, cheirado, degustado, na última Feira do Livro de Porto Alegre, um programa patrocinado pela Caixa Econômica Federal distribuía textos impressos em papel comestível. Isso mesmo, comestível. Nada posso dizer sobre o gosto, porque não experimentei (ainda que um dos textos fosse de minha autoria, ou justamente por isso: podia ser um texto de mau gosto) nem sobre o valor calórico. Mas que a experiência permitia uma assimilação real da literatura, ah, isso permitia.
Existe finalmente um outro aspecto perturbador no texto. Apertamos um botão e ali está Machado; apertamos o mesmo botão, e Machado já não está. “Now you see it, now you don’t”, como dizem os mágicos nos Estados Unidos. Agora você vê, agora você não mais vê. Nada demais, vocês dirão, essa é uma regra da vida: as coisas passam, as coisas são fugazes. Verdade. Mas, em relação ao texto impresso, a gente sempre teve a ilusão da persistência, da perenidade. O livro, na nossa prateleira, era uma presença reasseguradora: estou aqui, à tua espera, quando precisares de mim é só vir até aqui. O mesmo acontece com o livro virtual? Mais ou menos. Porque o livro virtual só existe… virtualmente. Aperta-se o botão e as letras somem. No caso do escritor, é um tremendo golpe no ego, esse ego que a modernidade se encarregou de afirmar ao lançar as condições para o individualismo burguês. E não deixa de ser irônico o fato de que o leitor óptico a que me refiro, foi fornecido pela ABL, cujo lema é Ad imortalitatem. Onde está a imortalidade, no mundo virtual?
Mas vamos olhar a coisa pelo seu lado róseo, otimista. Afinal, o leitor óptico dá prosseguimento ao processo de democratização iniciado pelo livro de Gutemberg. E, para o escritor, é uma lição de humildade. Não se trata do “lembra que és pó, e que ao pó retornarás”, mas é quase: lembras que és virtual, e que ao virtual retornarás. Machado, que nunca esqueceu sua origem humilde, gostaria disso. E seria o primeiro a acessar sua obra no leitor óptico da ABL.
______________________
*Médico. Escritor. Colunista.
Fonte: Correio Braziliense online 23/03/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário