sábado, 20 de fevereiro de 2010

Nélida Piñon - Entrevista

"BRASÍLIA É UM CELEIRO DE MEDIOCRIDADES"

A escritora brasileira diz que a classe política só se preocupa com o mercado e esquece de pensar um projeto para o País

CRÍTICA

Para Nélida, o baixo índice de leitura é uma das fragilidades do Brasil

É com jeito afável e sorriso acolhedor que Nélida Piñon, 72 anos, critica, reclama, reivindica. Autora de 20 livros e primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (1996 a 1997), ela não se acomoda aos louros que conseguiu e se mostra inquieta. A mais recente das homenagens foi o prêmio Casa de Las Américas – instituição cubana que apoia e premia escritores latinos –, anunciado há três semanas, pela obra “Aprendiz de Homero”. Na entrevista concedida na sala de seu apartamento, com vista para a Lagoa Rodrigo de Freitas, zona sul do Rio de Janeiro, ela pouco fala da premiação. Seu assunto predileto é o cenário cultural do País, que considera empobrecido pela massificação e pela deficiente formação educacional do brasileiro. Apesar disso, a escritora se mostra esperançosa. “Tudo é reversível.

"A criação brasileira está imersa no esquecimento, por conta do rock.
As letras são de uma indigência extraordinária"

O humano é um ser de transformação”, diz. Durante a conversa, vez ou outra Nélida troca a língua portuguesa pela espanhola. Um resquício de sua origem hispânica e do contato constante com os autores daquele país, em especial com os da região da Galícia. Nesta entrevista à ISTOÉ, Nélida descreve o Brasil por meio da arte e da educação – ou da sua falta. Para ela, uma das “fragilidades” do País é o baixo índice de leitura e aponta flagrantes de “colonialismo” para explicar a preferência nacional por escritores estrangeiros.

Istoé - Qual a importância dos prêmios literários?
Nélida Piñon - Eles ajudam a obra do escritor e ajudam a classe literária. Tenho a sensação de que a vida longa, o empenho, os estudos, o acúmulo de tarefas que foram cumpridas com dignidade e empenho intelectual, tudo isso foi de algum modo reconhecido. Nós, autores, não temos o reconhecimento que merecemos no mundo e aqui no Brasil precisaríamos de uma grande revisão. O público brasileiro ainda tem traços de colonialismo.

Istoé - Onde esse colonialismo se manifesta?
Nélida Piñon - Basta ver a lista dos mais vendidos. De um modo geral, um ou dois nomes brasileiros, geralmente um grande número de autores estrangeiros. O escritor de fora chega ao Brasil com altas credenciais, algo que não se transfere para um bom autor brasileiro.

Istoé - Por que há sempre mais escritores estrangeiros nas listas de livros mais vendidos no BrasilNélida Piñon - O público talvez não queira se ver na sua literatura. Além disso, há a atração pelo desconhecido, pelos nomes internacionais. O que está ocorrendo no mundo é uma massificação tão intensa que não abre brecha para as exceções, para os textos refinados e não pasteurizados. Não se aceita a singularidade.

Istoé - Esse processo é reversível?
Nélida Piñon - Certamente. Esses ditames são revogáveis. Hoje alguém pode ter um comportamento intransigente quanto a um universo que poderia ser considerado anacrônico, e, de repente, através de um fenômeno sociológico, a juventude pode se voltar de forma apaixonada para sua história. Pode haver uma reversão.

Istoé - Essa reviravolta viria dos jovens?
Nélida Piñon - Os jovens são massacrados por um tipo de arte repetitiva. Há muito tempo a criação brasileira está imersa no esquecimento, por conta do rock, do pop. As letras das músicas são de uma pobreza, de uma indigência extraordinária. Dificilmente surge um grande letrista. A arte brasileira tem voos extraordinários. Não defendo que nos fechemos. Sou uma mulher que tem paixão pelos gregos, pelos clássicos. Todos os grandes autores da civilização ocidental me aperfeiçoaram, mas não afugentaram minha índole pátria. Nunca dei as costas à realidade brasileira.

Istoé - Isso faz o público ficar embrutecido?
Nélida Piñon - O que está em pauta é uma existência acelerada, sem tempo para refletir. Não é só no Brasil, isso se alastra pelos outros países. Só que eles têm uma infraestrutura cultural muito sólida, grandes universidades, grandes bibliotecas, grandes museus, estão mais preparados para levantar muros e permitir que a banalidade se expresse, mas não derrube as muralhas de Jericó. O Brasil tem muitas fragilidades culturais, é um país onde a leitura é uma raridade.

Istoé - Mas há avanços. Reduzimos o analfabetismo, por exemplo.
Nélida Piñon - Isso é muito relativo porque as pessoas não entendem o que leem. A leitura induz a processar o conceito. Se ao ler você não entende o que alguém está dizendo e se não exerce a crítica diante do que lhe está sendo dado, não apreende e passa a ser apenas um escravo da informação.

Istoé - Qual é a solução para esse pro¬blema?
Nélida Piñon - Eu enfatizo a educação. E uma educação que não queira manter a infância pobre no gueto. Porque há uma tendência, em nome de uma falsa valorização da origem da criança, de dar somente o que já seja do meio dela. Não. Esses pequenos, seja qual for a origem, devem ser tratados como aristocratas. A educação dessa criança brasileira, “pobrinha”, que já sofre terríveis transtornos sociais, deve criar condições para ela ser tratada como se fosse de classe média alta.

Istoé - Como a sra. avalia as condições atuais da educação brasileira?
Nélida Piñon - Hoje, muitos alunos vão para a escola e saem sem saber nada. É também preciso dar condições de higiene, comida... Se uma criança mora num barraco com oito pessoas e sem essas condições, não vai estudar. Vai apenas sobreviver.

Istoé - A classe política brasileira dá a esse tema a importância devida?
Nélida Piñon - Brasília é um celeiro de mediocridades, não há uma reflexão sobre o Brasil. Nos discursos dos políticos, em geral, não se percebe um projeto brasileiro. A vida política nacional está deficitária em talentos, lhe falta dimensão moral e intelectual. Como brasileira, não posso perdoar uma coisa dessas num país que teve grandes oradores e excepcionais intérpretes do Brasil, como Machado de Assis e Heitor Villa-Lobos, gente que buscou conhecer nossa identidade.

Istoé - A sra. acredita que o quadro político está tão ruim assim?
Nélida Piñon - O projeto qual é? Para onde nós vamos? O que queremos? Só se fala em mercado. Dinheiro é essencial e tenho o maior respeito, porque o dinheiro leva o pão para a mesa. Mas é preciso que me deem pão e circo. E quero também um projeto brasileiro. O que vamos fazer com a educação do Brasil? Nós tivemos grandes educadores. O que aconteceu com as propostas desses homens?

Istoé - O que a sra. acha do livro eletrônico, o Kindle?
Nélida Piñon - Só vi um de longe, que era de um amigo que estava hospitalizado. Ele disse que gostou, porque se não fosse aquele objeto teria que levar para o hospital uma quantidade enorme de livros. Não aprendi a usar, dizem que o presidente da Academia Brasileira de Letras vai presentear os acadêmicos com um desses. Eu receberei com enorme gosto. Não quero me fechar às experiências que possam ser interessantes.

Istoé - O hábito de leitura está ameaçado pela internet?
Nélida Piñon - Nos Estados Unidos algumas editoras estão propondo a seus autores que liberem seus livros sem qualquer cobrança como meio de vender a imagem do escritor. São tempos de transformação, não sei o que vai acontecer. Mas sei que a literatura de categoria vai sobreviver. Mesmo que estejamos debaixo das catacumbas. Também acho que se a humanidade optar pela barbárie e determinar que a literatura ou a grande música e a pintura não são mais necessárias, assim será.

Istoé - O paradigma atual é comercial?
Nélida Piñon - Um dos maiores riscos do escritor de hoje não é não ter leitor ou não vender livros. Pior que isso é alienar a sua inteligência e a sua criação, renunciar à sua soberania estética para seguir as diretrizes e imposições do mercado.

Istoé - Isso tem acontecido frequentemente?
Nélida Piñon - Uma vez tive uma conversa num jantar com o Gore Vidal (escritor americano) sobre esse assunto. Eu disse a ele que chegaria o momento em que não se faria mais o monólogo final da Molly, no “Ulisses”, de James Joyce (um texto longo, sem vírgula). Porque hoje todo mundo sabe que uma vírgula pode valer muitos dólares – ou seja, o texto curto, que não dá trabalho para ser lido. Então o escritor põe a vírgula. Um outro sabe o que deve pôr no livro para interessar aos leitores e vai escrever de modo que os editores comprem o seu livro. É assim que está.

Istoé - Qual deveria ser a posição do escritor diante das regras do mercado?
Nélida Piñon - É preciso ter aquela inocência associada à paixão literária. Não importa o que você faça, o que vai valer é a sua decisão. Mesmo que depois você não desperte o interesse do editor. Mas assim exerce a soberania até às últimas consequências. Isso proporciona uma liberdade extraordinária para o artista. Nenhum prêmio substitui esse espírito de liberdade, de não temer o mercado, não temer o leitor descuidado e não temer as livrarias que não querem mais expor o seu livro.

Istoé - A sra. concorda com quem diz que ler, seja lá o que for, é sempre bom?
Nélida Piñon - Já disse muito isso. O mercado, no entanto, usa tais artimanhas e leitor não passa para a etapa seguinte. Fica naquela fase dos livros insignificantes, medíocres, que não o comprometem com seu destino humano. Mas, de uma maneira geral, ler é uma experiência magnífica.

Istoé - Por que a ficção foi relegada a segundo plano?
Nélida Piñon - Isso também é uma etapa, não vejo como uma estação terminal. Há décadas anunciam a morte do romance, a morte da criação, a morte da invenção. Mas os grandes escritores continuam publicando e os jovens de talento também. A ficção é um paradigma. A grande ficção educa, é pedagógica.

Istoé - A biografia é um dos gêneros de maior sucesso. O que acha?Nélida Piñon - Uma biografia é interessante, mas não fala dos grandes sentimentos que presidem a trajetória humana, os antagonismos destes sentimentos. Não se descobre a sociedade através de uma biografia, porque é só um indivíduo. A literatura é um arquétipo. Não se pode entender a França sem Honoré de Balzac. Para se entender quem somos, deve-se ler “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes. William Shakespeare estabelece pautas morais, até metafísicas. Nada no mundo nos dá isso. Leia-se o romance “Guerra e Paz”, do escritor russo Leon Tolstoi, e se compreenderá tudo o que Napoleão Bonaparte não soube entender. A realidade está sujeita a uma interpretação, a uma versão privada.
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Fonte: Revista Isto É online, 19/02/2010
Reportagem: Francisco Alves Filho

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