sábado, 20 de fevereiro de 2010

A hora da religião emotiva feita para buscar a nós mesmos

Enzo Bianchi*
 "estamos longe de uma espiritualidade fiel ao evangelho".
 "Talvez - continua - aquilo que emerge da difusa “sede de espiritualidade” dos nossos dias seja um pedido de contemplação autenticamente cristão,
um desejo de conhecer e encontrar homens e mulheres habitados pelo Espírito,
 capazes de ver o mundo com os olhos de Deus".


Que sinal assume no nosso mundo ocidental de antiga matriz cristã o “retorno” da espiritualidade, que em mais de um lugar se pode ver? E o que pode significar isto em uma sociedade, por outro lado, cada vez mais secularizada, na qual parece prevalecer a afirmação de pertinência exterior a uma determinada tradição religiosa – em particular aquela cristã – desvinculada da intima adesão àquela crença e da coerência de comportamentos? “Fiéis” sempre mais infiéis.

Alguns filões me parecem emergir como catalisadores do re-emergir da espiritualidade. Sobretudo a difusão da religiosidade pela estrutura psicológica materna, fusional, emocional na qual a subjetividade do individuo faz vir a tona a finalidade: se tem então um Deus despersonalizado que termina por dilatar-se e diluir-se em um oceano de emotividade que tudo entende, um sincretismo que minimiza ou anula a diferença criando um tipo de “Vulgata” religiosa boa para todos. Este fenômeno, freqüentemente definido como “religions à la carte” (religiões à la carte), é já reconhecido por todos.

Mas assistimos também casualmente a deriva de seitas que, através de um forte envolvimento pessoal, uma intensidade emotiva e um rígido fechamento intra-comunitário, fornecem identidade certeira aos desorientados por este indiferentismo religioso: é uma deriva que conhece não somente a típica dimensão da gente “pura e dura”, muitas vezes, tradicionalistas procurando um tesouro perdido, mas também aquela mais atraente e sem temores, de comunidade a dimensão internacional na qual são privilegiados temas e comportamentos religiosos emotivos que fogem da história, mas favorecem o atual individualismo e a dimensão terapêutica da pessoa: é o caminho da “espiritualidade frágil”, alimentada de temas como a cura de si e da própria harmonia interior, a busca de segurança e alegria, o apaziguante entregar-se aos caminhos das emoções. Voltou a religião – podemos sintetizar – o sentido do sacro, ma Deus não! Nem mesmo a fé cristã vivida através da pertinência a uma igreja que não reprime e garante memória e continuidade.

Mais refinado e destinado a poucos é o percurso de quem re-propõe uma mística de alta qualidade, que se conecta a um filão de espiritualidade ocidental medieval, constelado de raras, mas importantes figuras. O fascínio deste caminho, porém desbota quando abandona o fértil terreno bíblico que o gerou e pega uma via mais filosófica e ideológica do que espiritual, por vezes até agnóstica, platônica no desprezo e na remoção da “carne” em prol do espírito. Sim, estamos longe de uma espiritualidade fiel ao evangelho que pede com urgência para vivermos a dimensão comunitária e para encontrarmos convergências com os homens na edificação da polis, que atende aos homens sempre presentes na história, que pega desta a reserva escatológica da qual nasce a esperança que, por sua vez, ou é repartida ou não é.

Acredito que, hoje, mais do que nunca, a espiritualidade cristã ganharia muito com uma redescoberta do valor das realidades terrenas “penúltimas” – como as definia Bonhoeffer – de uma renovada centralidade da Palavra de Deus que quis fazer-se “carne”, ou seja, realidade e fragilidade humana: uma fidelidade similar à terra se torna então espera, garantia e testemunho dos céus e da terra nova, anúncio credível de uma fé que, sustentando-se no amor, vai além da morte e a vence. Talvez aquilo que emerge da difusa “sede de espiritualidade” dos nossos dias seja um pedido de contemplação autenticamente cristão, um desejo de conhecer e encontrar homens e mulheres habitados pelo Espírito, capazes de ver o mundo com os olhos de Deus, de contemplar a realidade não como ela parece ser, mas como se apresenta na sua luz mais autêntica, aquele que se libera em relação ao Outro.

Emerge também um convite forte para redescobrir a dimensão da sapiência, do “gosto” pela presença de Deus contado na vida humana de Jesus de Nazaré: a espiritualidade então será chamada a manifestar-se cotidianamente na história para conceder-lhe novamente o sentido, a personificar em “lugares” precisos nos quais possa acontecer a transmissão de um patrimônio universal, a narrar as ações de Deus através de simples vidas marcadas pela relação pessoal com Ele e com a Sua palavra.

A espiritualidade cristã se libertará assim da fuga na utopia, no “não lugar” de êxtases paradisíacas, e dará prova de credibilidade e eficácia não na ocupação de espaços sociais e políticos, mas assumindo responsavelmente a construção da polis, através de histórias pessoais de santidade e lugares comunitários de liberdade. De fato, a autêntica busca de Deus – que no cristianismo nunca é separada da busca do homem – não pode deixar de ouvir aquilo que arde no coração do outro, das suas dúvidas e de suas lacerações: espiritualidade autêntica será então capacidade de discernir e cuidar de cada ser humano que traga em si, difusa ou contradita, mas sempre presente, a imagem de Deus.
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*Enzo Bianchi, monge leigo, prior da Comunidade de Bose, na Itália, reflete sobre o retorno da espiritualidade na contemporaneidade em artigo publicado no jornal La Repubblica, 13-02-2010. A tradução é de Alessandra Gusatto
Fonte: IHU online, 16/02/2010

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