segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Haiti: teste para a humanidade

Leonardo Boff*

O desastre que se abateu sobre o Haiti, arrasando Porto Príncipe e matando milhares de pessoas e privando o povo das estruturas mínimas para a sobrevivência, representa um teste para a humanidade.

Segundo os prognósticos dos que acompanham sistematicamente o estado da Terra, não demorará muito, e seremos confrontados com vários Haitis, com milhões e milhões de refugiados climáticos, provocados por eventos extremos que poderão ocasionar uma verdadeira devastação ecológica e dizimar incontáveis vidas humanas. O Haiti pode ser um sinal do anjo exterminador que passa, sinistro, ceifando vidas.

É neste contexto que duas virtudes, ligadas à essência do humano, deverão ganhar especial relevância: a hospitalidade e a solidariedade.

A hospitalidade, já o viu o filósofo Kant, é um direito e um dever de todos, pois todos somos habitantes, melhor, filhos e filhas da mesma Terra. Temos o direito de circular por ela, de receber e de oferecer hospitalidade.

Estarão as nações dispostas a atender a este direito básico àquelas multidões que já não poderão viver em suas regiões superaquecidas, sem água e sem colheitas? O instinto de sobrevivência não respeita os limites dos estados-nações. Os bárbaros de outrora derrubaram impérios e os novos “bárbaros” de hoje não farão outra coisa, caso não sejam exterminados pelos ecofascistas que usurparam a Terra para si. Paro por aqui, porque os cenários prováveis e não impossíveis são dantescosA segunda virtude é a solidariedade.

Ela é inerente à essência social do ser humano. Já os clássicos do estudo da solidariedade como Renouvier, Durkheim, Bourgeois e Sorel enfatizaram o fato de que uma sociedade não existe sem a solidariedade de uns para com os outros. Ela supõe uma consciência coletiva e o sentimento de pertença entre todos. Todos aceitam naturalmente viver juntos para juntos realizarem a política que é a busca comum do bem comum.

Devemos submeter à crítica o conceito da modernidade que parte da absoluta autonomia do sujeito na solidão de sua liberdade.

Diz-se: cada um deve fazer o seu sem precisar dos outros.

Para os seres humanos assim solitários poderem viver juntos precisam, de fato, de um contrato social, excogitado por Rousseau, Locke eKant. Mas esse individualismo é ilusório e falso. Há que se reconhecer o fato real e irrenunciável de que o ser humano é sempre um ser de relação, um-ser-com-os-outros, sempre enredado numa trama de conexões de toda ordem. Nunca está só. O contrato social não funda a sociedade mas apenas a ordena juridicamente.

Ademais, a solidariedade possui um transfundo cosmológico.

Todos os seres, desde os topquarks e especialmente os organismos vivos, são seres de relação, e ninguém vive fora da rede de inter-retro-conexões.

Por isso, todos os seres são reciprocamente solidários. Um ajuda o outro a sobreviver – é o sentido da biodiversidade – e não necessariamente são vítimas da seleção natural. Ao nível humano, ao invés da seleção natural, por causa da solidariedade, interpomos o cuidado, especialmente para com mais vul-neráveis. Assim não sucumbem aos interesses excludentes de grupos ou de um tipo de cultura feroz que coloca a ambição acima da vida e da dignidade.

Chegamos a um ponto da história no qual todos nos descobrimos entrelaçados na única geossociedade.

Sem a solidariedade de todos com todos e também com a Mãe Terra não haverá futuro para ninguém. As desgraças de um povo são nossas desgraças, suas lágrimas são nossas lágrimas, seus avanços são nossos avanços. Seus sonhos são nossos sonhos.

Bem dizia Che Guevara: “A solidariedade é a ternura dos povos”. Essa ternura temos que exercê-la para com nossos irmãos e irmãs do Haiti que estão agonizando.
_________________________________
*Teólogo
Fonte: Jornal do Brasil online, Segunda-feira, 15 de Fevereiro de 2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário