domingo, 28 de fevereiro de 2010

Sonhos de uma teoria final

Marcelo Gleiser*

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Está na hora de nós aceitarmos limites sobre o que se pode conhecer do Cosmo

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Em 1992, o vencedor do Nobel de física, Steven Weinberg, publicou um livro com o título da coluna de hoje. Nele, Weinberg expressou a visão de que, por trás da aparente diversidade do mundo natural, existe uma união que pode ser revelada por meio das leis da física. Segundo Weinberg, todas as manifestações do mundo material podem ser expressas através de leis quantitativas que derivam de uma teoria que explica tudo o que existe, a Teoria Final. Seria o triunfo definitivo do reducionismo.

A ideia não é nada nova. Suas origens são bem mais antigas do que a própria ciência ou mesmo a filosofia ocidental. Em religiões monoteístas, o mundo e seus habitantes são criação de um Deus. Se tudo vem de Deus, tudo tem a mesma origem. Essa unidade aparece mesmo em crenças onde não existe uma divindade central, como o conceito de Brahma no politeísmo hindu, ou na figura do Buda, no budismo. Com o desenvolvimento das rotas de comércio entre a Ásia e a Europa no século 6º a. C., essas ideias influenciaram os primeiros filósofos da Grécia Antiga, os pré-socráticos.

Tales, o primeiro deles, instituiu a ideia de que tudo o que existe no mundo é feito de um único tipo de matéria, propondo assim uma unificação material. "Tudo é água", disse ele, sugerindo que as diversas expressões da matéria revelam-se nas propriedades da água, sempre transitória.

Esse monismo, a noção de que a diversidade aparente das coisas é ilusória e de que existe uma unidade fundamental, é o conceito-chave da busca pelo "campo unificado", a expressão moderna da Teoria Final.

Na física, teorias unificadas se referem apenas aos constituintes fundamentais da matéria, as chamadas partículas elementares, como o elétron, os quarks (integrantes dos prótons e nêutrons) e suas interações.

Seria ingênuo supor que um conhecimento das partículas de matéria e das forças que elas exercem umas sobre as outras poderia dizer algo sobre o clima terrestre, o funcionamento do cérebro ou a duplicação de DNA. Essas questões têm de ser abordadas através de outros métodos, expressos através de leis muito diferentes que regem esses domínios específicos.

Mas, mesmo dentro do seu limite de atuação, será que a noção de que podemos chegar a uma teoria final da matéria e de suas propriedades faz sentido? Tudo o que sabemos hoje sobre as partículas e suas forças está no Modelo Padrão: existem 12 tipos de partículas de matéria e quatro forças entre elas: gravidade, eletromagnetismo e forças nucleares forte e fraca.

Uma teoria unificada da matéria demonstraria que essas forças são, na verdade, manifestação de uma só. Essa unificação só apareceria em altíssimas energias, muito além do que podemos testar com experimentos atuais. Vamos supor que uma teoria unificada dessas forças exista, quem sabe uma versão futura da teoria das supercordas. Eu diria que mesmo essa teoria jamais poderia ser considerada uma teoria final. E por quê?

Porque sabemos apenas aquilo que podemos medir. Todo o conhecimento científico que temos do mundo natural depende dos nossos instrumentos de observação. Mesmo que esses instrumentos avancem em sua precisão, jamais poderão ter precisão perfeita. Existem barreiras tecnológicas e mesmo conceituais para isso. Sendo assim, jamais poderemos conhecer a totalidade dos fenômenos materiais para nos certificar de que nossa teoria cobre tudo o que existe. Estamos cercados de uma escuridão perene, que demarca o limite do que sabemos sobre o mundo. Uma teoria final significaria um conhecimento absoluto, o que é uma impossibilidade. É hora de aceitarmos nossas limitações.
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*MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
Fonte: Folha online, 28/02/2010

Economia e Vida ( IV ): a boa intenção e o sistema

Jung Mo Sung *
No artigo anterior eu afirmei que, diante do sistema econômico e social em que vivemos, a conversão pessoal é necessária, mas não suficiente. Também é preciso a conversão do mundo. O problema é que a "conversão do mundo" ou de "sistemas econômicos, sociais e políticos" requer lógicas muito diferentes das conversões ou transformações pessoais. Eu quero dedicar este artigo e os próximos sobre esse assunto.

Em primeiro lugar, é preciso ter claro que a conversão do mundo não deve ser entendida como a conversão de todas as pessoas que habitam o mundo. Ainda hoje, há muitas pessoas, grupos e Igrejas que pensam que levar o evangelho ao mundo ou proclamar a conversão ao mundo significa buscar a conversão pessoal de todas as pessoas. Isto é, pensam que o mundo nada mais é que a soma de todas as pessoas; que a sociedade é resultado da soma de todas das ações e atitudes de todas as pessoas. Assim sendo, a mudança das pessoas e de suas ações levaria a mudança no mundo.

Na verdade, o mundo e os sistemas econômicos e sociais são muito mais do que a soma das ações dos indivíduos. O conceito de "sistema" pressupõe que há algo além das ações individuais ou de grupos, que a vontade e ações bem intencionadas de indivíduos ou de agentes coletivos não são suficientes para produzir resultados desejados. Mesmo que esse indivíduo ou grupo tenha muito poder.

Esse tipo de equívoco é mais comum do que se imagina. Por exemplo, muitas das críticas feitas ao governo Lula, por parte da chamada "esquerda", cristã ou não, pressupõe que ele não rompeu com o capitalismo ou não fez reformas sociais e políticas profundas por simples falta de vontade política. Como se a vontade política de um indivíduo ou grupo poderoso fosse suficiente para produzir os resultados sociais e políticos desejados.

Nós começamos a desconfiar ou reconhecer que existe algo que se chama "sistema" exatamente quando as nossas ações não produzem os efeitos desejados. As ações humanas são humanas na medida em que elas são intencionais, isto é, não são resultados meramente de impulsos determinados pelo nosso código genético. Todas ações produzem conseqüências. No caso das ações humanas intencionais produzem dois tipos de efeitos: os efeitos que estão de acordo com as intenções que moveram a ação (efeitos intencionais) e os que não estão de acordo (efeitos não-intencionais, que podem ser bons ou maus). No primeiro momento, pensamos que os efeitos não-intencionais são resultados da má execução da ação. Se o aperfeiçoamento da ação fizer desaparecer os efeitos não-intencionais, está provado que não há nada entre o sujeito da ação e os resultados esperados. Nesse caso, bastaria converter a pessoa e/ou aperfeiçoar a técnica da ação para obter as mudanças desejadas.

Mas, se mesmo o aperfeiçoamento da técnica da ação não evitar os efeitos não-intencionais, começamos a perceber que entre a ação e os resultados existe algo que interfere no processo. Esse algo tem a ver com o sistema. Começamos a perceber que as nossas ações se dão no interior de algum sistema. Um exemplo muito comum se dá quando, em uma conversação, as pessoas entendem equivocadamente o que queremos dizer. Nesses casos costumamos dizemos: "não foi isso que eu quis dizer!" A nossa intenção era comunicar uma mensagem bem intencionada que foi entendida de forma diferente da intenção e provocou, talvez, um mal-estar ou algo pior (um efeito não-intencional). No caso aqui, algo do sistema cultural e/ou do sistema de crenças e de pensamento das pessoas envolvidas interferiu na conversação e nos seus resultados.

Isto significa que não basta convencer todas as pessoas que precisamos de uma economia socialmente mais justa e ecologicamente sustentável. Também não é suficiente fazer as pessoas passarem do convencimento para mudanças nas suas ações e hábitos cotidianos. É claro que essas mudanças são necessárias e importantes, mas não são suficientes. Em uma sociedade escravagista, por ex., mesmo que todas as pessoas se convençam do mal da escravidão e os senhores passem a tratar melhor os seus escravos, o sistema permanece escravocrata. Se o sistema produtivo (economia) continua escravocrata e sem mão-de-obra livre, não há como um fazendeiro de boa intenção continuar sendo dono de fazenda e ao mesmo tempo libertar todos os escravos. Se ele efetivar a sua boa intenção, o resultado é que ele se tornará um ex-fazendeiro produtor.

Muito dos discursos em favor de um "outro mundo possível" centram fundamentalmente na tarefa de convencer as pessoas dessas necessidades. Mas, ao esquecerem ou não darem ênfase suficiente na necessidade paralela de mudança sistêmica, esses discursos acabam se tornando discursos moralistas, discursos que apelam somente para a consciência moral das pessoas. No campo dos problemas econômicos e sociais, boas intenções e consciência ética são importantes, mas não suficientes se não houver ações políticas que geram transformações no sistema sócio-econômico-político. (No próximo artigo, o sistema econômico e a divisão social do trabalho.)
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* Professor de pós-graduação em Ciências da Religião .Autor entre outros de "Sujeito e sociedades complexas", Ed. Vozes.
Fonte: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=45504

Educação para uma economia do amor

Diante de um tema tão complexo como o escolhido para a Campanha da Fraternidade Ecumênica deste ano, podemos nos perguntar: mudar é possível? De que forma? Para nos ajudar a refletir e pensar alternativas para uma economia de vida, como propõe a CFE, conversamos com o economista Marcos Arruda, um dos colaboradores do Texto Base desta Campanha. Marcos acaba de lançar um livro pelo selo Idéias e Letras, da Editora Santuário, no qual propõe como caminho um economia voltada para o amor, inspirada pelo altruísmo, pela compaixão e pelo desejo do bem comum. Ao primeiro olhar pode soar utópico, mas nesta conversa veremos que são pequenos gestos de cada um de nós que tornarão nossa sociedade menos financeira e mais solidária.

Revista de Aparecida: O que é economia? Existem tipos de economia?
Marcos Arruda: O sentido original dessa palavra economia é "gestão da casa". "Oikos" em grego é casa e "nomos" é gestão. A ideia original era todo o trabalho de gerir as casas para que seus habitantes tivessem melhor qualidade de vida. Ao longo da história foram aparecendo outras atividades, como o comércio, as finanças, que foram dando à produção, ao trabalho de produzir bens e serviços, uma direção que já não era de atender às necessidades, mas em primeiro lugar, fazer lucro. E na medida em que o lucro entrou em cena a economia foi sendo distorcida e virou o que ela é hoje: a atividade do fazer dinheiro e acumular riqueza material, é a atividade de consumir cada vez mais sem limite nenhum, nem limite do que se é capaz de consumir, nem respeito ao limite da natureza, da terra, da cidade, nem de nada.

RdA: O tema da CF/2010 é um tanto quanto complicado. Economia e Vida é um tema quem vem em boa hora?
Marcos: Por um lado o mundo está ainda vivendo os efeitos de uma crise, resultado dessa febril busca de lucro que deu tanta ênfase ao lado das finanças e que esqueceu de ligar as finanças à produção das necessidades humanas. Chamamos isso de "financeirização" da economia. E o problema é o seguinte, na medida em que apareceu a crise os governantes, ao invés de irem aos fatores que geraram a crise, que é, sobretudo, a especulação, ficaram na superfície do problema. Assim, a crise vai voltar, mais cedo ou mais tarde e justamente agora a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e o CONIC (Conselho Nacional das Igrejas Cristãs), num movimento ecumênico, decidem fazer a Campanha da Fraternidade em torno do tema economia e vida. É um tema riquíssimo, da maior oportunidade e que nós temos que trabalhar muito para fazer o melhor dessa Campanha, em termos de educação, de levar a consciência à população e acordar todo mundo para a importância, a urgência, de cada um mudar seu estilo de vida, sobretudo, quem tem muito, e quem tem o suficiente e gasta demais, consome demais, produz lixo demais, desperdiça recursos preciosos da natureza. Cabe a cada um de nós fazer essa mudança na nossa vida para colocar a lógica do suficiente no lugar da lógica do esbanjamento, do excesso, da guia, da voracidade e da ganância.

"A ideia de introduzir o amor na economia
vai ser uma revolução para o mundo
por que não se trata
 só do amor ao outro".

RdA: De que modo se pode falar disso dentro da Igreja, e para Igreja enquanto povo. Como colocar essa necessidade de mudança na cabeça das pessoas?
Marcos: A gente precisa ganhar consciência de que cada gesto, desde que a gente acorda pela manhã, de abrir a torneira, quanta água a gente está gastando ou deixando de gastar, o consumo da gente, o lixo, se a gente seleciona para a reciclagem, quanto a gente busca economizar nas nossas compras para não comprar o excesso, coisas que fazem mal à saúde, a consicência de ser capaz de gerir a nossa própria saúde tendo uma alimentação sadia, equilibrando a vida sedentária com o exercício físico... tudo isso faz parte dessa economia de solidariedade, de cooperação. No meu livro eu tento chocar as pessoas com um conceito de economia do amor, uma economia que está inspirada pelo altruísmo, pela compaixão, pelo desejo do bem do outro e não só o meu. Isso é uma evolução. A ideia de introduzir o amor na economia vai ser uma revolução para o mundo por que não se trata só do amor na economia vai ser uma revolução para o mundo por que não se trata só do amor ao outro, às pessoas, à sociedade, mas amor à vida, à natureza, e adequar a economia para ser harmônica com a natureza e não agressiva contra a natureza. Isso é possível, já está acontecendo, o movimento de economia solidária tem se expandido pelo mundo. Nós temos hoje milhões de pessoas que estão trabalhando em cooperativas onde não há um dono. Todo mundo que trabalha ter direito de ser dono, todo mundo que comunga do mesmo espírito de partilha e de atendimento à necessidade de cada um e de todos, tem direito à propriedade e à gestão do empreendimento onde trabalha.


"Cabe a cada um de nós fazer
a mudança na nossa vida
para colocar
a lógica do suficiente
no lugar
da lógica do esbanjamento"


RdA: Por que o dinheiro encanta tanto e corrompe tanto? É possível pensar em dinheiro como algo bom? como?
Marcos: O dinheiro tem na sociedade o mesmo papel que o sangur tem no nosso organismo. O dinheiro tem como finalidade levar o poder de compra a todas as células que compõem a sociedade. Então, se o dinheiro fica concentrado na mão de poucos é como se o sangue ficasse concentrado em algum órgão, e parasse de circular. E a nossa sociedade, que é um grande organismo, tem essa doença gravíssimo, um sistema financeiro no qual o dinheiro fica concentrado na mão de poucos e o sistema circulatório não funciona direito, então uma grande parte das células dessa sociedade está mal nutrida do poder de compra para ter uma vida decente e os que têm criam um sistema de propaganda para convencer todo mundo, através de novelas, de histórias, de televisão, tentando convencer que, se você trabalhar muito também pode ter tudo aquilo, o que é mentira, porque nunca poderemos produzir para todo mundo aquilo que os ricos consomem porque não há suficientes recursos na terra para tanto consumo e nem lugar para jogar tanto lixo. Por isso a necessidade que existe é que os países mais desenvolvidos reduzam sua produção e seu consumo, descrescer. Não há outro caminho. Para se ter uma ideia, os 20% mais ricos do mundo consomem 86% daquilo que é consumido no mundo. E para os países menos desenvolvidos é importante que o que for preciso para seu desenvolvimento seja dentro dos limites da natureza e das gerações futuras.
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Fonte: Revista de Aparecida, nº95 - fevereiro 2010, pg. 6 e 7

Charge/domingo

Fonte: Portal vermelho, 28/02/2010 - Aroeira

J.D. Salinger: o pecado de ser invisível


Escrito há duas décadas, somente agora este texto de Tomás Eloy Martínez  (foto) veio a público, após a morte de ambos

Tomás Eloy Martínez*



Jerome David Salinger (1919- 2010) jamais imaginou, nem mesmo no terreno mágico das suas ficções, o perverso poder da correspondência. Talvez por rejeitar outros meios de comunicação (entrevistas, festas sociais, conferências), ele usou descuidadamente do recurso epistolar que acabaria por destruir seu precioso anonimato de 30 anos.

Na busca do equilíbrio absoluto, distante das maldições da civilização moderna, encerrado numa cabana de Cornish, em New Hampshire, com sua mulher Claire Douglas, sem luz elétrica nem água corrente, em certa manhã de 1984 o escritor acordou e cumpriu religiosamente um ritual rotineiro: descobrir as cartas escondidas na caixa do correio.

Um envelope despertou sua curiosidade, mas ele não abriu imediatamente. Preferiu, antes, tomar sua xícara de café.

Salinger, enfim, abriu aquela carta, que o desviava do seu retiro voluntário em Cornish, e descobriu as pretensões do remetente, Ian Hamilton. Crítico literário e biógrafo profissional, esse interlocutor desconhecido pretendia contar sua vida e obra num livro. Para isso, precisava que Salinger respondesse a várias perguntas, ou num encontro pessoal ou por meio de um questionário por escrito.

"Os poucos dados esquemáticos que foram publicados sobre sua vida", justificou o escritor britânico Ian Hamilton, na vã tentativa de convencer Salinger, "às vezes são contraditórios e talvez tenha chegado o momento de colocarmos os pingos nos "is"." Salinger nunca respondeu e, não querendo acumular lixo no seu escritório, destruiu a carta. Contudo, o duro trabalho para proteger sua privacidade começava a se desfazer.

O que todos sabem é que J. D. Salinger saboreou a fama por uns poucos dias na juventude (na agitada vida noturna de Greenwich Village, em Nova York) e achou-a amarga. Daí em diante surgiram rumores. O escritor evitou metodicamente diálogos literários com a imprensa, encontros sociais e acadêmicos e aparições em locais públicos da moda. De tempos em tempos, se deparava com uma realidade tangível, com o surgimento de algum relato que perturbava o sonho dos adolescentes.

PRESUNTO

Depois de se formar numa academia militar na Pensilvânia e fracassar nos estudos, seu pai, esquecendo as decisões democráticas, o leva para a Polônia onde ele deve descobrir os segredos da indústria do presunto.

Poucos poderão imaginar Salinger na neve de Bydgoszcz matando porcos. Mas ele também não achou confortável aquele ofício e regressou aos Estados Unidos, para continuar sendo um fracasso na universidade, antes de seguir adiante, em 1945.

Convocado para a frente de batalha, Salinger teve depressões e surtos de desespero. Seu único confidente era Ernest Hemingway, a quem comentou, por carta, que tinha ido parar com sua tristeza num hospital em Nuremberg. Uma angústia enraivecida, provocada pelo fervor patriótico daqueles momentos, deixou-o prostrado na cama, sem cura.

Dispensado do Exército, Salinger toma uma decisão precipitada: viajar a Paris. Os arroubos de loucura não o deixam em paz. Casa-se com uma francesa que não ama e, oito meses mais tarde, pede o divórcio e retorna aos Estados Unidos.

O ano de 1951 foi inesquecível para Salinger. O Apanhador no Campo de Centeio (The Catcher in the Rye) é publicado e ele confirma sua suspeita: aquelas páginas encerravam o que muitos jovens desejavam ler sobre o obscuro e incompreensível mundo da adolescência. As edições se esgotaram. O escritor captou a linguagem coloquial dos anos 50 usando-a literalmente na elaboração do livro, sem poses culturais, e o devolveu transmutado em verdades para a rebeldia juvenil em seu país.

Hemingway leu com enorme prazer esta obra inicial. Salinger, mais tarde, se animaria a imortalizar o encontro com seu mentor por meio de algumas frases literárias que distorcem a sua alardeada modéstia: "Num abrir e fechar de olhos, Papá deixou aparecer a sua Luger, fez voar a cabeça de uma galinha e disse: "Deus meu, que talento.""

Se esses elementos não bastam para colocar Salinger no banco de qualquer biógrafo, não há outro recurso senão assinalar seu voluntário afastamento do mundo. Depois da publicação de O Apanhador no Campo de Centeio, ele cai nos braços do misticismo hindu e volta a se casar, desta vez com uma jovem de 19 anos, Claire Douglas, com quem compartilha o ambiente bucólico do campo em New Hampshire, como um "amish" que odeia os avanços técnicos da humanidade.

Qualquer uma dessas circunstâncias poderia despertar a curiosidade desses senhores acostumados a meter o nariz na vida alheia. Se Salinger tivesse procurado aparecer na mídia todos os dias, seu descanso definitivo em Cornish talvez tivesse permanecido virgem. Claro, os intrometidos, do mesmo modo que os arrecadadores de impostos, nascem com um instinto peculiar de achar que as aparências sempre enganam.

Hamilton sabia de antemão que Salinger não responderia à sua carta, mesmo deixando claro que não era um fã enlouquecido de uma revista de fofocas. Ele não estava interessado numa biografia tradicional. Sua intenção se assemelhava mais a uma busca da curva, onde os fracassos e triunfos do projeto seriam igualmente importantes.

E ele também queria saber o que ocorria quando se aplicavam os sistemas biográficos ortodoxos a um personagem que fugia de qualquer notoriedade.

Sem a ajuda do escritor, Ian Hamilton envia uma dezena de cartas a todos os Salingers que encontra no catálogo telefônico de Manhattan.

Quer informações sobre a origem do sobrenome e a relação que essas pessoas podem ter com o escritor. As respostas foram decepcionantes: algumas forneciam dados vagos sobre a genealogia ou desconheciam o nome Holden Caulfield, o narrador e protagonista de O Apanhador no Campo de Centeio.

Mais interessante é a carta de Salinger. Contrariado, porque uma irmã e o filho, ambos residindo em Nova York, tinham recebido o questionário, ele protesta, irado, contra esse cerco à sua vida privada.

Ian Hamilton toma uma decisão: não vai mais incomodar o autor nem sua família. Durante cinco anos, entra e sai de universidades e escolas públicas. Perambula por bibliotecas e livrarias. Necessitava ouvir serenamente a voz, na primeira pessoa, do biografado: soava nervosa, por causa de dúvidas, ou inspirada numa grande segurança? Era pedante ou distante pela sua humildade? Uma das primeiras descobertas surgiu nas cartas enviadas a Whit Burnett, diretor da revista Story (onde Salinger tinha publicado alguns textos). Ali o tom era inverossímil, dominado por uma adulação afetada e presunção de autopromoção. Por intermédio dessas cartas, descobriu-se que o sonho de Salinger, aos 21 anos, era de que uma das publicações de vanguarda dos Estados Unidos, a The New Yorker, aceitasse seus trabalhos. Mas a grande surpresa viria meses depois: o editor londrino Hamish Hamilton (nenhum parentesco) entrega a Ian 30 cartas de Salinger, escritas entre 1951 e 1960.

MANUSCRITO

Em 30 de julho de 1985, o livro In Search of J. D. Salinger: A Writing Life (1935-65) (Em Busca de J. D. Salinger: Uma Vida de Escritor) chega ao seu final. Ian Hamilton envia o manuscrito à Random House. A editora aceita a investigação, dá um cheque de adiantamento pelos direitos de autor e põe em funcionamento a máquina comercial: é fixada uma data para o lançamento do livro, preparado um exemplar para os críticos, desenhada a capa e tirada uma foto do autor. Na Inglaterra, a editora Heinmann compra os direitos e o jornal The Observer decide publicar o texto em capítulos.

Nesta altura, tudo corre bem. Exceto as exigências profissionais de Hamilton. Ele tinha descoberto com certa tristeza que não era esse o livro que ele aspirava. E foi tomado por um enorme respeito e nervosismo. Queria provar a Salinger que não era um oportunista. Mas possuía mais dados do escritor do que qualquer outra biografia ao longo da sua vida. As cartas que obteve permitiram captar o tom de Salinger, sua presença real.

O colapso surgiu com a carta de um escritório de advocacia (Kaye, Collier & Booze) de Nova York, enviada à editora Random House, à Heinmann e ao The Observer. Por ela, os advogados comunicavam que Salinger tinha lido as provas do livro e que não toleraria, sob nenhum aspecto, a publicação de um trabalho que utilizara sua correspondência pessoal. Se essa situação não fosse alterada, ele entraria com uma ação judicial.

Ian Hamilton viajou de Londres para os Estados Unidos sem nem mesmo mudar de roupa e cortou um grande número de citações diretas no livro, restando no final não mais do que dez palavras de cada carta. Os termos originais das correspondências foram eliminados, substituídos por outros, criados pelo crítico. E um novo manuscrito foi enviado para exame do escritor ofendido. O remédio acabou sendo mais nocivo do que a enfermidade inicial.

Salinger apelou à Suprema Corte de Justiça, que lhe deu razão. O original foi destruído definitivamente por Ian Hamilton, que concentrou suas energias e talento num outro livro, In Search of J. D. Salinger (Em Busca de J. D. Salinger), no qual relata o confronto com o segredo mais bem guardado das letras americanas. O texto exala ódio por todos os poros. "Deseja ser um santo, mas o problema dele é o de quem tem um caráter oposto à santidade."

Excêntrico e impenetrável, Salinger, aos 69 anos, recorreu aos tribunais, e chegou a depor durante seis horas, a conversa mais longa que manteve até então com pessoas estranhas. Desse depoimento existe uma cópia legal à disposição do público.

Em setembro de 1988, 100 trabalhos sobre o escritor se acumulavam na imprensa dos Estados Unidos. Material suficiente para se fazer conjecturas, levantar hipóteses: toda Nova York possuía uma fotocópia do livro destruído de Hamilton e por US$ 10 qualquer curioso podia entrar no U.S. Copyright Office, em Washington, para examinar as cartas que deram origem à disputa.

O que não foi dito até agora é a razão secreta que impeliu Hamilton, notável biógrafo do poeta americano Robert Lowell, a se lançar nessa aventura. Suas palavras são eloquentes. "Embora pareça ridículo afirmar isto, o que mais me instigou foi a paixão, que tomou conta de mim aos 16 anos e nunca cheguei a superar."

Naquela época, ele tinha lido O Apanhador no Campo de Centeio. Uma leitura sem alento, em que descobriu o efeito sagrado da literatura.

Jamais sonhou, naquele estado de graça, que muitos anos depois acabaria ligado ao nome desse Deus - J. D. Salinger - como seu inimigo implacável.
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*Tomás Eloy Martínez é autor de Romance de Perón, Santa Evita, O Voo da Rainha, que conquistou na Espanha o prêmio Alfaguara de romance, e de O Cantor de Tango. Foi indicado para o primeiro Man Booker, prêmio internacional bianual dedicado ao conjunto da obra de um autor. Seus livros foram traduzidos para mais de 30 idiomas. Foi diretor do programa de Estudos Latino-americanos na Universidade de Rutgers e realizava frequentes viagens como escritor e jornalista. Morreu em 31 de janeiro de 2010, em Buenos Aires, aos 75 anos
Tradução: Terezinha Martino
Fonte: Estadão online, 28/02/2010

Colômbia, o grande eleitor

José Saraiva Sombra*

As farpas trocadas entre os presidentes colombiano e venezuelano na recente Cúpula de Cancún reforçam a ideia de ser Hugo Chávez o maior eleitor de Álvaro Uribe. Às vésperas de duas grandes eleições nacionais na Colômbia, uma legislativa em março e outra presidencial em maio, Uribe — mesmo sem aprovação formal da Corte Constitucional de referendo que o confirmaria, ou não, candidato oficial pelo Partido Social da Unidade Nacional — é o grande favorito para a quadra governamental de 2010 a 2014.

O atual presidente contabiliza mais de 70% de aprovação popular e já abocanha metade dos votos do colégio eleitoral de 30 milhões de colombianos aptos para o pleito de maio. A fragmentação política que presidiu a eleição presidencial de 2006, quando marcharam cinco candidatos contra Uribe, tende a se repetir em 2010. Mas nenhum deles, mesmo o prefeito de Medellín, alcança o primeiro dígito, pelo menos até o momento. Poucos votos possuem os demais potenciais contendores. A oposição está dispersa e sem projeto alternativo.

Por que Hugo Chávez é tão importante para as eleições colombianas? Três fatores merecem ser alinhados. A alta popularidade do presidente Uribe — ao lado de Bachelet e Lula na América do Sul, mesmo que sustentada pela manu militare e lógica do medo — é fato inconteste. Tal reconhecimento popular emana, em parte, de imagem positiva da autoestima e do combate patriótico reconhecido no governante de Bogotá contra o intruso externo de Caracas que interfere na soberania política da nação colombiana. Chávez prejudica, com suas bravatas, a grande fronteira humana e comercial entre os dois países, que prefere seguir seus negócios e cooperação familiar.

Uribe, bom aluno das escolas liberais anglo-saxônicas, mas filho de pai assassinado pela guerrilha colombiana, dosa o pêndulo da fleuma com o cálculo discursivo do nacionalismo latino-americano. Mexe com o velho imaginário das frustrações herdadas, nos Estados modernos da América do Sul, das dissensões fratricidas das guerras na época das independências da Espanha. Sabe, ao contrário de Chávez, domesticar o discurso e não ameaçar guerra contra a Venezuela.

O segundo fator é ululante. Há reconhecimento doméstico, nas mais diversas camadas sociais, intelectuais e políticas na Colômbia, dos aspectos positivos do programa de segurança democrática mantido por Uribe. Para os colombianos é preferível a estabilidade precária de Uribe e a retomada da vida cotidiana, bem como o crescimento econômico, às incertezas dos planos das Farc e suas conexões bolivarianas, sem falar na inércia do modelo econômico estatizante e petroleiro imposto por Chávez aos compatriotas.

Ainda que não tão democrática, a segurança oferecida pela mão forte de Uribe demonstra que os modelos de construção política na América do Sul são mais diversificados no início do novo século do que se previra. Não há um projeto comum à região, embora o Brasil e alguns outros países se empenhem em formar uma grande área de diferenciação política e estratégica em relação às novas geometrias globais, elevação da Ásia e novas polarizações entre os grandes da ordem pós-guerra fria.

Em terceiro lugar, no plano ideológico, Uribe demonstra ao mundo que a frente política da América do Sul que promove não é a da corrente andina da refundação da nação. A nação já existe, o que falta é a modernização conservadora, inclusão social com segurança democrática, o fim da guerrilha e dos quistos desatualizados do mundo político contemporâneo e da economia formal.

Os anseios da opinião pública colombiana, mesmo que fracionada em diferentes correntes, algumas até críticas dos acordos de cooperação militar com os Estados Unidos, coincidem com o projeto de Uribe. Chávez, na ânsia de empurrar os colombianos contra Uribe, empurra a Colômbia contra as provocações importunas do presidente venezuelano, ajudando a pavimentar a continuação de Uribe no comando do Estado sul-americano mais abandonado pelos seus vizinhos em hora difícil. Os fatos, em suma, vão dando alguma razão aos caminhos de Uribe, menos tortuosos que os de seu grande eleitor em Caracas.
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*PhD pela Universidade de Bimingham, Inglaterra, professor titular do Instituto de Relações Internacionais da UnB e pesquisador 1 do CNPq.
Fonte: Correio Braziliense online, 28/02/2010

O tempo de Serra

Marcos Coimbra*

Daqui a algumas semanas, Serra terá que renunciar a seu cargo. Ou seja, vai passar os próximos seis meses enfrentando a dura tarefa de ser candidato, sem nenhum anteparo. Será que ganhou alguma coisa não o sendo desde dezembro? Será que vai ganhar algo esperando que março termine?

Quando os historiadores do futuro forem analisar as eleições presidenciais de 2010, um dos capítulos mais interessantes será o que trata do sentido de tempo do governador José Serra. Até lá, é possível que alguém já o tenha decifrado. Para quem vive o presente, no entanto, é um mistério.

Os simpatizantes mais entusiasmados de sua candidatura dizem que o compreendem. Mas são só eles. Mesmo muitos de seus correligionários têm dificuldade de entender seu comportamento na altura em que estamos.

Para quem, como ele, liderava as pesquisas desde 2007, o certo era agir do modo que agia. Embora fosse óbvio que pretendia se candidatar, não havia razão para assumi-lo tão prematuramente. Se o fizesse, tudo que dissesse, qualquer coisa que acontecesse no seu governo, cresceria de tamanho, sempre de maneira negativa. E o pior é que, em troca, a visibilidade não lhe traria qualquer benefício, por já ser bem conhecido da opinião pública nacional. Sequer a velha “falem bem ou mal, mas falem de mim” o atraía, por conseguinte.

Quando Aécio resolveu questionar a inexorabilidade da candidatura, mais ainda se justificava uma postura de cautela. Se havia dois nomes em disputa, ambos em condições de representar o PSDB na eleição, nenhum podia posar de candidato oficial. Aliás, nenhum o era.

Isso foi bom para Serra, pois permitiu que mantivesse a candidatura quieta em seu canto, protegida dos riscos da exposição antecipada. Era tão bom que muita gente chegou a pensar que estava mancomunado com Aécio, que fingia ser candidato apenas para servir de biombo para seu companheiro.

De dezembro para cá, as coisas mudaram. Quando tomou a decisão de retirar seu nome da disputa pela indicação tucana, Aécio mostrou que a candidatura não era um simples jogo de cena, uma manobra articulada com Serra. Mas ele foi além ao anunciá-la, deixando claro que aceitava a decisão de seu partido, de não escolher entre as duas opções que estavam postas. Assim fazendo, de ficar com Serra.

No cenário que vivemos desde o início do ano, é difícil entender os motivos que levam o governador de São Paulo a insistir na cautela. Dentro do PSDB, ninguém mais discute quem vai ser o candidato. No conjunto das oposições, ela só gera impaciência. Quanto ao governo, tanta prudência em nada inibe as movimentações (se não provoca o oposto) e deixa o terreno livre para o crescimento de Dilma.

Do que será que Serra imagina que se poupa ao retardar o que qualquer outro político já estaria fazendo? Apenas por hipótese, se, por exemplo, tivesse acontecido o inverso no PSDB, ele deixando a vaga para Aécio, não teríamos hoje o governador de Minas em plena campanha? Ou alguém imagina que Aécio estaria recolhido em cuidadoso silêncio? Quem tem responsabilidade de governo não pode se dedicar em tempo integral à política, mas muito se pode fazer sem ultrapassar os limites que se deve respeitar nesses casos.

Seja na discussão de um programa alternativo à proposta de continuidade que caracteriza a candidatura de Dilma, seja na procura de entendimentos políticos e com a sociedade civil, junto a movimentos sociais, segmentos organizados, grupos de interesse, há muito a fazer na construção de uma candidatura das oposições. Nada se ganha deixando tudo para depois, para uma “hora certa” que ninguém sabe qual é.

Daqui a algumas semanas, Serra terá que renunciar a seu cargo. Ou seja, vai passar os próximos seis meses enfrentando a dura tarefa de ser candidato, sem nenhum anteparo. Será que ganhou alguma coisa não o sendo desde dezembro? Será que vai ganhar algo esperando que março termine?

Por enquanto, sua cautela só tem uma consequência: manter uma dúvida sempre no ar, sobre se vai mesmo ser candidato ou não. Uma incerteza que, a crer na imprensa de São Paulo, contagia seu partido. Não foi em um dos principais jornais do estado que lemos, outro dia, que o PSDB faz “tentativa para tornar irreversível a candidatura de Serra”? Contra quem é preciso fazer essa “tentativa”? Se não é contra o PSDB e os partidos de oposição, nem contra o PT e o governo (que nada têm a ver com isso), contra quem seria? Contra o próprio Serra?
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*Sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi

marcoscoimbra.df@dabr.com.br
Fonte: Correio Braziliense online, 28/02/2010

Cães viram gente...

Cães têm personal dog, joias e até convites para eventos sociais
RIO - Diz a sabedoria popular que o cachorro é o melhor amigo do homem. Para algumas famílias, porém, esta relação vai muito além. Nos últimos anos – principalmente na alta sociedade carioca –, o cão vem se tornando parte integrante de vários lares, levando vidas semelhante às de seus donos. Os bichinhos possuem tanta importância que seus donos não pensam na hora de economizar na hora de cuidar de seus “filhos”.

– Já que as ruas da nossa cidade são muito sujas, decidi comprar uma esteira para a nossa cachorrinha caminhar por cerca de 15 minutos por dia – diz o cerimonialista Ricardo Stambowsky, uma das personalidades mais conhecidas da alta sociedade carioca.

Há seis anos, ele e sua esposa, Suely, trouxeram para a casa a pequena Chloé, uma cadela da raça daschund. Em pouco tempo, a cachorra virou o xodó da família, recebendo todos os tipos de mimos.

– Decidi ter uma cadela da raça dela ao ver uma daschund na casa de uns amigos em Nova York. Quando voltamos ao Brasil, decidimos comprar uma e posso dizer que ela mudou a vida de nossa família ao chegar aqui – afirma a socialite Suely Stambowsky.

Por ser membro de uma família tradicional, Chloé só veste roupas de etiqueta e possui uma casinha personalizada, onde repousa durante o dia.

– Esta casinha foi um presente do nosso amigo decorador Leonardo Araújo. Ela gosta muito de ficar lá, mas à noite ela dorme com a gente na cama – revela Ricardo.

Todas as quintas-feiras, Chloé tem aulas com um adestrador, que a ensina a fazer posições específicas e a distinguir suas dezenas de brinquedos.

– A Chloé não se dá muito com cachorros, pois ela pensa que é gente. Ela só se dá bem com as cachorras da minha prima – revela Suely, que diz que a cadela participa dos eventos sociais em sua residência.

Outra canina das mais famosas do Rio é a cadela da raça pug, Perepepê, da socialite Vera Loyola. Com 9 anos, ela é a única “filha canina” da empresária, já que sua outra xodó, a cadela Pepezinha faleceu em 2002. Perepepê – que sofre atualmente de diabetes – ficou famosa ao “doar” um colar de ouro (18 quilates) ao programa Fome Zero no início do governo Lula, em 2003.

– Gosto dos animais, pois acho eles uma companhia maravilhosa. A Perepepê é como se fosse minha filha – afirma Vera, que lamenta que sua cadela tenha de tomar doses diárias de insulina e retirar sangue da orelha para tratar da diabetes.

Cães têm acesso à mais variada gama de serviços

A grande devoção da população brasileira pelos cachorros fez crescer a oferta de serviços para quem tem o animal em casa. Antes resumidos a adestramento e medicina veterinária, os serviços hoje contam com atividades antes restritas a humanos, como hidromassagem, psicologia, dermatologia, acupuntura e ultrassonografia.

Um destes templos caninos é a clínica veterinária e pet shop Animália, no Itanhangá. De propriedade dos empresários Frances Marie Tims e Renato Campelo Costa, a clínica costuma atrair muitos famosos, que levam seus cãezinhos ao local para usufruírem dos benefícios.

– Tratamos dos cães do Miguel Falabella, Suzana Vieira, Nívea Maria e Reginaldo Faria, além de vários outros famosos. Recebemos gente de todas as partes da cidade, inclusive de fora do Rio – comenta Frances Marie, que comemora o seu sucesso no negócio. – Criamos a empresa há 15 anos e, de lá para cá, a coisa mudou muito, pois passamos a ter de ofertar mais serviços, pois a concorrência aumentou. Hoje o cliente procura algo mais especializado para o seu animal.

Na Zona Sul, também há uma grande oferta de serviços para cães de estimação. Uma delas é a Clínica Veterinária Pet Shop Boy, no Leblon, que, diferentemente na Animália, possui um estilo mais tradicional de atendimento.

– Aqui só fazemos consulta veterinária e banhos. As consultas custam R$ 85. Os banhos variam entre R$ 22 e R$ 70 – afirma o dono da Pet Shop Boy, Marcelo Waksman.

Nada se compara, entretanto, à criatividade da ex-dublê Mônadda Kiin, que criou, há dois anos, o serviço de personal dog. Com preços que variam entre R$ 250 e R$ 350 por mês, ela ensina noções básicas aos animais em uma hora diária – de segunda a sexta – de passeios pela Zona Sul.

– Como tenho facilidade para ensinar, ensino coisas básicas aos cachorros, como não urinar em locais inadequados. Faço ainda simulações do dia a dia para que o animal desenvolva dons que ele esteja pré-disposto a desenvolver – diz Mônadda, que atende atualmente 20 cães.

– Todo cérebro quer sempre aprender, seja humano ou animal – explica.

Rio terá parque temático para cachorros até o fim do ano

A Prefeitura do Rio pretende instalar, até o final deste ano, 15 parques específicos para cachorros, nos moldes do existente na Lagoa Rodrigo de Freitas, na altura do Corte do Cantagalo. Os logadouros terão brinquedos específicos, pontos de água e porta fezes com sacos plásticos biodegradáveis. Até o fim do ano, será inaugurado também um parque temático canino, na Barra da Tijuca. A iniciativa é do diretor de projetos especiais da Secretaria de Defesa dos Animais, Marco Antônio “Totó”. O parque será particular.

– Há uns 20 ou 30 anos, o cachorro vivia no quintal de casa. Hoje, é necessário mais opções, pois o mercado mudou e os donos dos bichos estão mais exigentes – explica Totó.

O parque temático – que ganhará até uma praia artificial – terá 22 mil metros quadrados e poderá receber até 400 cães simultaneamente. Os preços das diárias serão R$ 30 para cachorros médios e grandes e R$ 20 para animais pequenos. Os proprietários que quiserem acompanhar seus bichos terão de pagar R$ 5.

– Teremos ainda pista de agility (hipismo canino), adestramento, day care, ofurô, salão de festas para aniversário de cães, stands de exposições e lançamentos do mercado, passeio rústico, áreas de lazer e piquenique – enumera o empresário.

Democratização dos parques

Segundo Totó, uma comissão formada por membros da Secretaria Municipal do Meio Ambiente têm percorrido praças em diversas localidades do Rio, com o intuito de democratizar as áreas de lazer para cães.

– Uma coisa é certa: teremos parques para cachorros em todas as regiões da cidade, pois os caninos são os melhores amigos dos homens de todas as classes. Esta é uma demanda crescente, sem dúvida.
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Reportagem de Flávio Dilascio, Jornal do Brasil

Fonte: Jornal do Brasil online - 27/02/2010

Mais que um professor

EDUARDO SHINYASHIKI*
Educação é a base para o desenvolvimento de qualquer nação, dessa forma, o professor torna-se peça chave na formação do ser social, é ele quem vai guiar a produção do conhecimento e o futuro profissional e acadêmico de cada criança.

No entanto, uma recente notícia sobre professores alarmou pais e estudantes. A Secretaria da Educação de São Paulo anunciou que usará professores reprovados em exames para ministrar aulas no ensino básico. O sindicato do setor anunciou ainda que esses professores irão para as periferias da capital, onde o desempenho dos alunos é abaixo da média nacional. Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério do Trabalho e Emprego, 80% dos professores ativos no Brasil participam da educação básica, ou seja, Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio.

Para solucionar esse problema, é preciso primeiro ter presente que o professor é muito mais que um transmissor de conhecimentos. É ele também que irá estimular a criança a ter características exigidas pelo mercado de trabalho. Em uma de minhas palestras, em específico a realizada na Unesco, para educadores, lembro-me que iniciei a reflexão com a seguinte pergunta: “quais as qualidades exigidas a um cidadão em uma entrevista para emprego?“. Muitos falaram, ao mesmo tempo, vários atributos. Liderança, comunicação, trabalhar em equipe, iniciativa, criatividade, flexibilidade, entre outras. Foram inúmeras as características citadas pelos participantes da palestra e todas elas se encaixam no perfil selecionado pelas empresas. Respondi, então, a eles com uma segunda pergunta: “Nós, como educadores, estamos colocando dentro da sala de aula estas qualidades? Foi quando disse a todos: “Se não estivermos fazendo isto como uma prática dentro da sala de aula, nós estaremos engrossando a fila dos desempregados”. Pois é exatamente esse questionamento que o docente pode fazer a si mesmo.

O papel do educador dentro e fora da sala de aula é de extrema importância para os alunos. O professor é um dos principais líderes da vida de uma criança, é ele que, juntamente com os pais, vai influenciar diretamente no desenvolvimento delas. Ele irá conduzir os alunos rumo ao conhecimento e à sabedoria. A escola é o primeiro ambiente que a criança encontra fora da família, e o mestre será uma das pontes mais importantes de transição da infância para a vida adulta. Nesse sentido, o docente deverá ser um bom exemplo e passar a sua melhor característica para os alunos, agindo como um cidadão ético e responsável, ciente de sua missão de transmitir valores para um futuro profissional.

As rápidas mudanças podem afetar alguns setores da sociedade e a educação não está exclusa deste cenário. Assim, o professor deve enfrentar grandes desafios em sua profissão, além de se especializar para comunicar o conhecimento, ele precisa estar atento em transmitir mais que isso, é preciso mostrar aos pequenos que motivação e qualidades devem crescer dentro nós e nunca se perder em meio aos problemas da vida.

Os grandes professores que se permitem ensinar e transmitir o amor e a dedicação nos marcam de forma positiva, deixam resultados perenes e transmitem de forma inequívoca valores e ideais, promovendo uma verdadeira transformação na vida de cada pessoa.
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*Eduardo Shinyashiki é consultor, palestrante e diretor da Sociedade Crê Ser Treinamentos
Fonte: Correio Popular online, 28/02/2010

A volta

Rubens Alves*
01/05/64: essa é a data carimbada no meu passaporte. Num céu puro e sem nuvens o avião da Branniff sobrevoava as paisagens lunares dos Andes, flutuando imóvel, ronronando à moda de um gato. A neve branca dos picos fazia contraponto com o cinzento das montanhas nuas. Na terra nem um verde que sugerisse vida... Procurava sinais da presença humana mas não os encontrava. Olhando para baixo com olhar perdido eu imaginava que deveria haver camponeses andando por trilhas solitárias. Eu tinha inveja deles a despeito da solidão. Eles não tinham medo. Eu tinha.

Voltava para casa depois de nove meses de ausência. Nove meses de saudade. Nove meses é tempo para o esquecimento fazer o seu trabalho de cura da saudade. Depois de nove meses já não mais se choram os mortos. Pois quando voltei meu filho menor, de 2 anos — eu fantasiei que ele viria correndo para mim de braços abertos... — não me reconheceu. Olhou-me, um estranho, e teve medo. Recusou-se a vir comigo. Agarrou-se no colo do tio, sem reconhecer aquele ser estranho que usava chapéu que lhe estendia os braços...

A palavra “retorno” traz consigo sempre uma sugestão de felicidade. Pensei em “retorno” e nalgum lugar da minha memória o Nelson Freire começou a tocar ao piano a Sonata do Adeus, de Beethoven. Quis certificar-me. Levantei-me e fui até a mala onde guardo as partituras que toquei num passado distante. Não sei porque as guardo. Para mim são inúteis. Mais que inúteis: elas doem. Elas são como cartas de amor de uma namorada que me abandonou. Eu jamais as toco. Perdi a pouca competência que tive e que me permitia tocá-las. Nas poucas vezes em que voltei a elas só tive sofrimento. Agora mesmo, mesmo sabendo qual seria o resultado, tentei tocar a sonata em dó maior de Scarlatti — um assombro de leveza quando Horowitz a toca — e foi um desastre. Bach, Scarlatti, Mozart, Chopin, Debussy: o certo seria dá-las para um conservatório.

Por que não as dou? Acho que não dou porque houve um tempo em que pensei que elas me amavam e que se eu ficasse assentado debaixo da sua janela por cem dias elas me deixariam entrar. Como na estória oriental. A mulher amada lhe prometera que se ele se assentasse por cem dias debaixo da sua janela ela lhe abriria a porta e eles se abraçariam. Aos noventa e nove dias, entretanto, ele experimentou o “satori” — ficou iluminado, viu como nunca tinha visto: pegou o seu banquinho e foi-se pra nunca mais voltar..

Foi assim que aconteceu comigo. Assentei-me e esperei. Percebi que mesmo que me abrissem a porta eu seria incapaz de tocá-las. Eu sofria de impotência musical... Resta-me guardá-las como memórias de um amor que foi, da mesma forma como um amante abandonado guarda numa gaveta as cartas de um amor desfeito amarradas com fita. Minhas partituras são a minha correspondência amorosa que não consegui levar à frente...

A minha casa está cheia de objetos inúteis como as minhas partituras. Eu não os jogo fora porque são moradas de memórias. Um empresário conhecido contratou uma firma especializada para decorar seu enorme e rico apartamento. Lá está ele, decorado com caros objetos de arte. Mas eles não falam. São objetos sem memória. Não têm estórias para contar. Muita beleza é sem assunto. Acontece o mesmo com as pessoas. Minha mãe me contava a estória de uma princesinha que, ao falar, de sua boca saltavam sapos e cobras...

O primeiro movimento da sonata se inicia com três acordes descendentes vagarosos e tristes, como se fosse um lamento:

Sol-mi fá-si mi-sol

E sobre os acordes alguém escreveu — não sei quem foi,, poderá ter sido o compositor — as sílabas

“Le” “be” “wohl”

Como se não devesse pairar dúvidas sobre o que eles, os acordes, estavam dizendo na sua tristeza: “Lebewohl”. Adeus.

O segundo movimento, um “andante espressivo” em que o piano desenha o triste perfil da “ausência”.

E o terceiro, “vivacissimamente”, “retorno”, quando os amantes se reencontram e se abraçam. O universo inteiro se enche de alegria. Quando os amantes de abraçam o universo está em ordem. Não há o que esperar.

Até um mês antes eu vivera a alegria do “retorno”. A volta seria um momento de felicidade

Mas aí o “vivacissimamente” se desfez numa série de acordes dissonantes.... Foi após uma das minhas excursões downtown para ajudar a passar o tempo. Eu já havia terminado todas as minhas obrigações acadêmicas, cursos e tese. Podia me dar ao luxo de vagabundear para matar o tempo. “Matar o tempo” era o que eu mais queria, pois era apenas o tempo que me separava das pessoas que eu amava. Assentado no vagão do metrô olhei sem interesse para um homem assentado à minha frente. Não vi o seu rosto que o jornal cobria. Mas vi a manchete que lhe era indiferente. Era mais que provável que o seu jornal estivesse aberto na página dos esportes. Os homens respiram e comem esportes. Mas aquela manchete indiferente ao homem que lia o jornal transformou o meu sangue em gelo líquido. Na primeira página, manchete, estava escrito: “Revolution in Brazil”. Era a tarde do dia 1º de abril do ano de 1964. O mundo com seus 10 mil jardins coloridos repentinamente ficou cinza e se encheu de lobos. Talvez o meu retorno ao Brasil significasse prisão.
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 28/02/2010

sábado, 27 de fevereiro de 2010

"O acesso ao luxo nos torna egoístas"

A conclusão é de um professor de Harvard que
estudou nossas reações a símbolos de status e riqueza

Antes de procurar entender a influência do luxo sobre as decisões que tomamos, o professor Roy Chua* estudou as diferenças de liderança e gestão no ambiente empresarial dos Estados Unidos e da China. Foi quando percebeu que uma reunião feita numa sala modesta pode levar a conclusões distintas daquelas a que o mesmo grupo de pessoas chegaria se estivesse rodeado de telões de plasma e pisando sobre mármore. “Talvez limitar os excessos e luxos corporativos possa ser um passo à frente para que os executivos se comportem de forma mais responsável”, afirma.

ÉPOCA – Quais foram as principais revelações das três experiências que exploraram a ligação entre os produtos que simbolizam o luxo e as atitudes egoístas?
Roy Chua – Pudemos comprovar que o mero contato com artigos de luxo afeta as decisões. Quem convive com carros esportivos, relógios caros e roupas de grife toma mais decisões em interesse próprio. Não é necessário ter os objetos. Trabalhar em um ambiente rodeado por eles mexe com a cognição. Uma reunião de negócios em uma sala modesta pode chegar a conclusões totalmente distintas de uma realizada em um escritório com piso de mármore e telões de plasma.

ÉPOCA – Qual é o método usado no estudo para chegar a essa conclusão?
Chua – Entrevistamos quase 800 estudantes universitários, divididos em dois grupos. Na primeira experiência, exibíamos para um grupo fotos e vídeos de produtos luxuosos como relógios Cartier, sapatos Ferragamo, carros superesportivos. Em outro grupo, exibíamos apenas imagens de produtos baratos e de segunda mão. Em seguida, dávamos aos dois grupos um questionário com decisões que deveriam tomar. Percebemos que as pessoas no grupo exposto a imagens luxuosas tomavam mais decisões em seu interesse próprio.

ÉPOCA – Como isso foi comprovado?
Chua – Para responder ao questionário, as pessoas precisavam tomar decisões. Algumas poderiam até prejudicar outras pessoas, mas aumentariam, ainda que de forma pouco ética, o lucro das empresas. Perguntamos se a pessoa colocaria no mercado um carro com possíveis problemas mecânicos, lançaria um software com falhas ou um jogo de videogame que induzisse à violência. Quatro em cinco pessoas do grupo exposto às imagens de itens luxusos optaram pelo lançamento desses produtos. No grupo exposto a itens baratos, a maioria sempre decidiu por não lançar nada que fosse prejudicial. No segundo experimento, camuflamos algumas palavras num emaranhado de letras. Elas tinham sentidos opostos, como “gentil” e “rude”. Ao pedir para que as pessoas identificassem essas palavras, a maioria dos expostos ao luxo escolheu as palavras negativas. No terceiro experimento, usamos duas situações: uma em que a pessoa deveria contribuir para resolver um problema público, outra em que poderia se beneficiar de dinheiro público. O grupo exposto a artigos de luxo deu menos e pegou mais do que o outro grupo. Essas descobertas iluminam as dinâmicas psicológicas de alguns comportamentos.

ÉPOCA – Que tipos de comportamento?
Chua – Talvez possamos explicar o modo de agir de alguns executivos antes e durante a recente crise financeira mundial. Houve um número grande de pessoas que viviam e conviviam com o luxo e que, ao perceber os sinais da magnitude da crise, tomaram decisões egoístas – a despeito do sofrimento que poderiam causar aos outros. Ainda hoje, passado um ano da crise e apesar de toda a indignação pública e a exigência de uma regulamentação eficaz do mercado financeiro, a mentalidade de muitos não mudou. Banqueiros continuam planejando bônus astronômicos para si próprios.
"Uma reunião de negócios numa sala com piso de mármore chega
a decisões diferentes de uma reunião igual numa sala modesta"
ÉPOCA – Mas esse comportamento pode ser explicado pelo simples acesso aos bens de luxo?
Chua – Não é mera coincidência. A experiência demonstra um padrão de comportamento. Não estamos dizendo que o luxo induz necessariamente um comportamento maldoso em relação ao próximo. Apenas que ele aumenta, e muito, a indiferença quanto ao bem-estar dos outros. Quando rodeadas de luxo, as pessoas tendem a focar suas decisões naquilo que é melhor para elas e para suas empresas.

ÉPOCA – Qual é o mecanismo que faz o luxo aumentar o egoísmo?
Chua – Nós ainda estamos tentando entender. Há vários mecanismos envolvidos. A exposição a bens luxuosos pode ativar uma “norma social” que obriga a pessoa a perseguir seus interesses – pessoais, profissionais, ou ambos – acima de tudo. Mesmo que isso tenha de ser feito à custa de outras pessoas. É provável que essa norma social afete o julgamento e a tomada de decisão dessas pessoas. Além disso, é bem provável que a exposição ao luxo ative e aumente o desejo, fazendo com que elas priorizem seus lucros, e não sua responsabilidade social.

ÉPOCA – Isso quer dizer que o ambiente estimula a ganância?
Chua – A explicação preferida de muitos para essa ganância é um descompasso moral, uma lacuna ética. Isso levaria essas pessoas a pensar apenas em si mesmas, a ponto de prejudicar os outros. Nosso estudo oferece outra perspectiva: esse ambiente de fausto e ostentação dificulta decisões mais preocupadas com os outros. As decisões aparentemente imorais provêm menos de uma real intenção de prejudicar os outros do que de uma autoabsolvição de pequenos delitos morais: lançarei este produto com reais riscos ao ambiente pelo bem do lucro da empresa. Talvez limitar os excessos e luxos corporativos possa de fato ser um passo à frente para que os executivos se comportem de forma mais responsável.

ÉPOCA – O simples desejo de consumir o luxo pode mudar as pessoas?
Chua – O estudo não tentou responder a essa pergunta. Queríamos descobrir qual é a consequência psicológica nas pessoas do contato com o luxo. Há inúmeros estudos que comprovam que as pessoas procuram esses bens para preencher desejos pessoais. Ou seja: a noção de luxo envolve mais prazer pessoal do que necessidade, funcionalidade ou ostentação. Não estava claro como o luxo influencia o modo como as pessoas pensam e agem. Nossa pesquisa preenche essa lacuna ao mostrar que o luxo está ligado ao interesse pessoal, e pensar em luxo ativa relações mentais que afetam as decisões em detrimento dos outros.

ÉPOCA – A ambição é uma das características de muitos bem-sucedidos. As conquistas materiais tornam as pessoas mais individualistas?
Chua – Sem dúvida. Pesquisas anteriores comprovaram que quando expostas ao dinheiro as pessoas se comportam de modo autossuficiente. Preferem manter uma distância social e evitam pedir ajuda. E mostram que ambientes de negócios aumentam a vontade de competir. É um círculo vicioso. Claro que nem todos se comportam da mesma forma. Mas tanto o luxo quanto o dinheiro alteram as atitudes e as decisões das pessoas.
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QUEM ÉReportagem: RODRIGO TURRER
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI123971-15228,00-O+ACESSO+AO+LUXO+NOS+TORNA+EGOISTAS.html

Nascido em Cingapura, Roy Chua é professor assistente de liderança e comportamento organizacional da Harvard Business School (EUA)


O QUE FEZ
É Ph.D. em gestão pela Columbia Business School (EUA)


O QUE PUBLICOU
Artigos no Journal of International Business Studies e Academy of Management Journal. A pesquisa sobre a influência do luxo no comportamento foi feita com a colega Xi Zou, da London Business School

Apontamentos sobre Blade Runner (I)

Cassiano Terra Rodrigues*

O que mais falar sobre Blade Runner – O caçador de andróides (Blade Runner, dir. Ridley Scott, EUA, 1982)? Considerado por muitos como a realização máxima do cinema pós-moderno, esse filme que parece interminável (já foram divulgadas nada menos do que sete - 7! - versões diferentes suas) ainda é capaz de mobilizar muito pensamento crítico. Os apontamentos que apresentamos a seguir são necessariamente inconclusivos e não exaustivos. Com eles, objetiva-se unicamente suscitar algumas questões, mais do que respondê-las.

Para melhor compreendê-las, é útil resumir o enredo e destacar os diferentes finais do filme. Ambientado em uma imaginária Los Angeles, num futuro próximo, 2019, o filme conta a história de um grupo de "replicantes", ou andróides "virtualmente idênticos" aos seres humanos, criados pela bioengenharia genética para serem escravos fora do mundo (Off-World) na exploração e conquista de colônias espaciais. Um grupo deles, formado por seis replicantes da geração Nexus 6, "superiores em força e agilidade e ao menos tão inteligentes quanto os engenheiros genéticos que os criaram" – volta ilegalmente à Terra para exigir mais tempo de vida, inconformados com sua curta existência programada de quatro anos. Dois morrem numa tentativa de invadir a Tyrell Corporation, a companhia que fabrica os replicantes. Rick Deckard (Harrison Ford, provavelmente no melhor papel de sua carreira) é o blade runner, o caçador de andróides do título nacional, convocado para descobrir os replicantes sobreviventes e matá-los – ou "aposentá-los".

Roy Batty (Rutger Hauer, em esplêndida interpretação como o líder dos replicantes), Leon Kowalski (Brion James), Pris (Daryl Hannah) e Zhora (Joanna Cassidy) são seus alvos. Ao longo do filme, Deckard acaba se apaixonando por Rachael (Sean Young), uma replicante diferente, sem tempo programado de vida, com memórias implantadas e que inicialmente não sabe ser uma replicante. Depois de eliminar os outros replicantes, Deckard se une a Rachael para enfim viverem seu amor. Há dois finais diferentes: nas versões comercialmente distribuídas do filme em 1982 (nos EUA e internacionalmente), os dois fogem para a natureza, numa estrada de florestas e montanhas; nas versões remontadas pelo diretor, esse final está ausente. A versão do diretor também deixa de fora a narração em voice-over de Deckard, além de incluir algumas outras cenas. Uma delas, a de um sonho de Deckard com um unicórnio, lança maior ambigüidade sobre se Deckard é ele mesmo um replicante ou não.

Tema 1. Feminismo

As principais personagens femininas são todas artificiais – replicantes – e sexualizadas pelos homens à sua volta. Isso dá significado completamente renovado à expressão "mulher-objeto", já que as mulheres no filme ou são todas manufaturadas ou não aparecem. E por isso são tão fascinantes e sedutoras – mostram-se, escondendo-se; parecem ser o que não são, não são o que parecem; frequentemente associam sexo a violência ou a proibição.

Pris é um "modelo básico de prazer". Possuidora de um ar infantil dissimulador, mostra-se violentíssima ao atacar Deckard;

Zhora se torna uma dançarina erótica, com uma cobra (um símbolo fálico e demoníaco). Para se aproximar dela, Deckard se diz inspetor do "Comitê Confidencial contra Abusos Morais" e pergunta se ela foi "explorada" de alguma maneira, obrigada a fazer qualquer coisa de "lascivo, imoral ou repugnante para a sua pessoa";

Rachael é uma replicante com memórias implantadas da sobrinha do dr. Eldon Tyrell (Joe Turkel), dono e cabeça científica da Tyrell Corporation, a fábrica dos replicantes. Ela é totalmente ambígua: secretária, femme fatale, pode ser entendida como a mulher-objeto por excelência – umas das questões no teste Voight-Kampff parece colocar em questão sua sexualidade: "Esse teste é sobre se sou uma replicante ou uma lésbica, Sr. Deckard?" Dependendo da visão que se tenha dos replicantes, ela pode ser ou o objeto de amor ou o interesse do amor de Deckard.

A sobrinha de Tyrell é uma personagem que não aparece – a mulher real é inexistente, embora tenha sido necessária para dar memórias ao seu simulacro;

A atmosfera de filme noir contribui para o retrato das mulheres no filme com o estereótipo das mulheres perigosas, sem sentimentos, desonestas, sexualizadas e mortais. No cinema noir, esse estereótipo tinha a ver com uma questão de gênero – uma reação ao papel das mulheres na sociedade em mutação depois das Guerras Mundiais.

J.F. Sebastian (William Sanderson), o engenheiro genético, é fascinado pela sexualidade de Pris, uma Zhora nua ataca Deckard em um momento de distração, e há também o amor proibido por Rachael. Há certa misoginia no caçador de andróides – Pris e Zhora podem ser vistas como mulheres fortes, independentes e não subservientes que são mortas, enquanto Rachael é o oposto disso tudo e sobrevive. Também é possível argumentar que o uso de mulheres como vítimas pretende atrair a empatia ou a compaixão do público (como se a platéia estivesse sendo submetida a um teste Voight-Kampff) e, além disso, pode ser vista como uma crítica pós-moderna do arquétipo do filme noir. Nessa visão, o filme mostra que a mulher fatal clássica morreu, numa possível crítica à representação das mulheres nos filmes de Hollywood.

Tema 2. Olhar
O tema da visão e do olhar é muito marcante no filme.

Nos primeiros segundos já se mostra um olho que reflete a paisagem e as chamas da Los Angeles de 2019. Segundo o roteiro, é o olho de Holden (Morgan Paull), um caçador de andróides atacado no início do filme pelo replicante Leon.

O teste Voight-Kampff consegue detectar contrações involuntárias na íris que permitiriam diferenciar um ser humano de um replicante.

O Dr. Eldon Tyrell – o gênio responsável pelo projeto dos replicantes – é mostrado como uma figura de aspecto divino, com poder supostamente total sobre a vida dos replicantes. Seus óculos são exagerados – na maioria das cenas, eles têm um efeito de lente de aumento sobre os olhos de Tyrell, fazendo com que pareçam maiores do que são. Mas, notemos, instado por Roy a aumentar o tempo de vida dos replicantes, ele se diz incapaz de fazê-lo.

Os olhos são uma fonte de atração muito forte para os replicantes. Sua forma de matar predileta é furando os olhos das vítimas. Nossa cultura entende que os olhos são as janelas da alma para o mundo exterior; os olhos confirmam nossas existências como observadores conscientes e sentimentais, pelo olhar nos comunicamos e trocamos emoções. Na sua busca por longevidade, os replicantes brincam com olhos – no laboratório do cientista Chew (James Hong), Roy diz a Chew: "Eu vi coisas com os seus olhos" – isto é, os olhos que você fabricou – "que você mesmo nem imagina". Há também o efeito cinematográfico – só perceptível pela platéia, não pelos personagens no filme – que faz com que os olhos dos replicantes tenham um brilho diferenciado, criando certo aspecto de artificialidade.

Os olhos da coruja, na versão do diretor, constituem imagem fortíssima: conforme a posição, parece que os olhos da coruja são de vidro, mostrando ela ser um animal artificial; conforme ela se move, eles mudam de cor e de aspecto, reforçando a impressão de que é difícil estabelecer limites definidos entre real e irreal, entre ilusão e realidade, o que se vê e o que de fato é.

Na cena em que Roy conta a Deckard o que foi que viu fora da Terra, em certo momento Deckard fecha bem os olhos e demora um instante a mais para reabri-los, para ver Roy morrer em sua frente. As palavras do replicante repetem o moto já dito a Chew e acrescentam: "Vi coisas que vocês, pessoas, não acreditariam. Naves de ataque em chamas fora da borda de Orion. Assisti a faróis brilhando no escuro perto do portal de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Tempo de morrer." O tempo da morte coincide com o cerrar dos olhos, como se a memória não fosse possível sem a visão.

Não podemos também nos esquecer da cena em que Deckard esquadrinha eletronicamente a fotografia que ele encontra no apartamento de Leon (Brion James) – uma referência clara, ao juízo deste escritor, a Blow Up – Depois daquele beijo, de Michelangelo Antonioni. No filme do diretor italiano, o procedimento de ampliação da imagem fotográfica serve à personagem do fotógrafo como revelação de uma realidade antes despercebida; no entanto, a ambigüidade permanece: que é que se vê na imagem afinal? É ela signo do real ou não? Em Blade Runner, temos um processo parecido, mas não só de ampliação da imagem, como também de descobrimento de camadas ocultas na imagem, só passíveis de serem vistas por um procedimento eletrônico que simultaneamente esquadrinha e amplia essas camadas. O aparelho eletrônico parece nos levar a ver por trás das imagens em primeiro plano dentro da fotografia – somos levados ao íntimo de uma realidade virtual construída, conseguimos ver de ângulos internos, como se a fotografia não tivesse somente dois planos, mas também profundidade real. Mas, no fim, trata-se de uma fotografia – o que é o real? Qual a diferença entre o real e sua representação imagética? Será a nossa relação com o real legítima sem a mediação de uma imagem tecnicamente produzida?

Essas perguntas já podiam ser feitas em 1966, como nos mostrou Antonioni. Mas, se, como dizia Walter Benjamin, o aparelho técnico moderno ampliava a percepção, modificando e fazendo-nos questionar nossa compreensão da realidade, no filme de 1982 a pergunta parece mudar um pouco: que tipo de experiência humana é possível ter nesse mundo tecnológico de virtualidades tão enganadoras e tão convincentes quanto a própria realidade – tecnologia criada pelos próprios humanos para reproduzir não o real, mas seu simulacro? Se Blow Up ainda sugere uma linha de fuga para o imaginário e o onírico, Blade Runner parece advertir que os sonhos da razão podem resultar em um mundo bem menos lúdico que o dos clowns...

A relação entre o humano e o não-humano é central no filme – como saber quem é replicante ou não? O teste Voight-Kampff é infalível? Os replicantes nos fazem perguntar "podemos confiar na nossa tecnologia"? Há o não-humano que criamos e o não-humano que não criamos – teremos chegado ao ponto de não mais conseguirmos nos diferenciar de nossos artefatos? Ou ainda: será a vida unicamente possível por simulacros e artefatos tecnológicos? Teremos de recusar toda ambição a um contato genuíno com o mundo real? Estará a nossa civilização fadada ao auto-aniquilamento por causa de seu próprio progresso?
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*Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia no Centro Universitário - SENAC-SP, Colégio I. L. Peretz e é pesquisador do Centro de Estudos do Pragmatismo, na PUC–SP.
Fonte: Correio da Cidadania online, 20/02/2010

Belo Monte: a volta triunfante da ditadura militar?

Leonardo Boff *



O governo Lula possui méritos inegáveis na questão social. Mas na questão ambiental é de uma inconsciência e de um atraso palmar. Ao analisar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) temos a impressão de sermos devolvidos ao século XIX. É a mesma mentalidade que vê a natureza como mera reserva de recursos, base para alavancar projetos faraônicos, levados avante a ferro e fogo, dentro de um modelo de crescimento ultrapassado que favorece as grandes empresas à custa da depredação da natureza e da criação de muita pobreza.

Este modelo está sendo questionado no mundo inteiro por desestabilizar o planeta Terra como um todo e mesmo assim é assumido pelo PAC sem qualquer escrúpulo. A discussão com as populações afetadas e com a sociedade foi pífia. Impera a lógica autoritária; primeiro decide-se depois se convoca a audiência pública. Pois é exatamente isto que está ocorrendo com o projeto da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu, estado do Pará.

Tudo está sendo levado aos trambolhões, atropelando processos, ocultando o importante parecer 114/09 de dezembro de 2009, emitido pelo IBAMA (órgão que cuida das questões ambientais), contrário à construção da usina, e a opinião da maioria dos ambientalistas nacionais e internacionais que dizem ser este projeto um grave equívoco com conseqüências ambientais imprevisíveis.

O Ministério Público Federal que encaminhou processos de embargo, eventualmente levando a questão a foros internacionais, sofreu coação da Advocacia Geral da União (AGU), com o apoio público do presidente, de processar os procuradores e promotores destas ações por abuso de poder.

Esse projeto vem da ditadura militar dos anos 70. Sob pressão dos indígenas apoiados pelo cantor Sting em parceria com o cacique Raoni foi engavetado em 1989. Agora, com a licença prévia concedida no dia 1º de fevereiro, o projeto da ditadura pôde voltar triunfalmente, apresentado pelo governo como a maior obra do PAC.

Neste projeto tudo é megalômano: inundação de 51.600 hectares de floresta, com um espelho d’água de 516 km², desvio do rio com a construção de dois canais de 500m de largura e 30 km de comprimento, deixando 100 km de leito seco,  submergindo a parte mais bela do Xingu, a Volta Grande e um terço de Altamira, com um custo entre 17 e 30 bilhões de reais, desalojando cerca de 20 mil pessoas e atraindo para as obras cerca de 80 mil trabalhadores para produzir 11.233 MW de energia no tempo das cheias (4 meses) e somente 4 mil MW no resto do ano, para, por fim, transportá-la até 5 mil km de distância.

Esse gigantismo, típico de mentes tecnocráticas, beira a insensatez, pois, dada a crise ambiental global, todos recomendam obras menores, valorizando matrizes energéticas alternativas, baseadas na água, no vento, no sol e na biomassa. E tudo isso nós temos em abundância. Considerando as opiniões dos especialistas podemos dizer: a usina hidrelétrica de Monte Belo é tecnicamente desaconselhável, exageradamente cara, ecologicamente desastrosa, socialmente perversa, perturbadora da floresta amazônica e uma grave agressão ao sistema-Terra.

Este projeto se caracteriza pelo desrespeito às dezenas de etnias indígenas que lá vivem há milhares de anos e que sequer foram ouvidas; desrespeito à floresta amazônica cuja vocação não é produzir energia elétrica mas bens e serviços naturais de grande valor econômico; desrespeito aos técnicos do IBAMA e a outras autoridades científicas contrárias a esse empreendimento; desrespeito à consciência ecológica que devido às ameaças que pesam sobre o sistema da vida pedem extremo cuidado com as florestas; desrespeito ao Bem Comum da Terra e da Humanidade, a nova centralidade das políticas mundiais.

Se houvesse um Tribunal Mundial de Crimes contra a Terra, como está sendo projetado por um grupo altamente qualificado que estuda a reinvenção da ONU sob a coordenação de Miguel d’Escoto, ex-presidente da Assembléia (2008-2009), seguramente os promotores da hidrelétrica de Belo Monte estariam na mira deste tribunal.

Ainda há tempo de frear a construção desta monstruosidade, porque há alternativas melhores. Não queremos que se realizem as palavras do bispo Dom Erwin Kräutler, defensor dos indígenas e contra Belo Monte: "Lula entrará na história como o grande depredador da Amazônia e o coveiro dos povos indígenas e ribeirinhos do Xingu".
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*Leonardo Boff, teólogo, é representante e co-redator da Carta da Terra.
Fonte: Correio da Cidadania online - http://www.correiocidadania.com.br/content/view/4359/9/ 24/02/2010