domingo, 31 de janeiro de 2010

O futuro da nação

Roberto Mangabeira Unger*
O ex-ministro e professor de direito em Harvard
defende 8 pontos essenciais para criar um novo modelo de desenvolvimento
para o Brasil

Oito séries de opções definem o modelo de desenvolvimento que convém ao Brasil.
Modelo que transforma a ampliação de oportunidades econômicas e educativas no motor do crescimento. E que afirma a primazia dos interesses do trabalho e da produção sobre os interesses do rentismo.

1. Reposicionamento na divisão internacional do trabalho
O país deve optar contra um caminho, como o da Nova Zelândia ou o do Chile, que combine produção e exportação de produtos primários com tentativa de formar uma elite internacionalizada de serviços.
O Brasil é grande demais para abandonar sua vocação industrial. Ao manter-se fiel a ela, precisa também optar contra estratégias como a que a China seguiu: apostar, por muito tempo, em trabalho barato e desqualificado. Não prosperaremos como uma China com menos gente.

2. Financiar internamente nosso desenvolvimento
Dividir ao meio a pseudo-ortodoxia econômica que os governos brasileiros abraçaram em décadas recentes. Reafirmar a parte útil -o realismo e a responsabilidade fiscais-, mesmo à custa de renunciar, por algum tempo, a instrumentos de uma política contracíclica.
Repudiar a parte nociva -a tolerância de nível baixo de poupança pública e privada e a consequente dependência do capital estrangeiro para financiar nosso desenvolvimento. Em tese, o nível de poupança é mais efeito do que causa do crescimento.
A mobilização inicial dos recursos nacionais representa, entretanto, condição para afirmar uma estratégia rebelde e inovadora de desenvolvimento. A elevação da poupança pública requer disciplina fiscal. Já para elevar a poupança privada, temos de construir mecanismos que organizem e aproveitem a poupança previdenciária. O aumento da poupança privada e pública será, porém, indiferente ou nocivo sem canais que encaminhem a poupança de longo prazo para o investimento de longo prazo. E que evitem que o potencial produtivo se desperdice num cassino financeiro. Investimento e inovação: esse é o binômio crucial.

3. Redefinir a política agrícola
Agropecuária, ainda a principal atividade econômica do Brasil, tem tudo para exemplificar o vínculo entre diversificação da produção e democratização das oportunidades.
Para isso, precisa pautar-se por três objetivos entrelaçados. Fazer da agricultura familiar agricultura empresarial. Agregar valor aos produtos agropecuários no campo. Construir classe média rural forte como vanguarda de uma massa de trabalhadores agrícolas mais pobres que avançará atrás dela.
Esse projeto vingará no contexto da solução do maior problema físico de nossa agricultura: a recuperação de pastagens degradadas que hoje formam grande parte do território nacional. (No Brasil, em cada hectare sob lavoura há quatro entregues à pecuária extensiva.) Se recuperarmos parte desse espaço, dobraremos a área cultivada e triplicaremos nosso produto agrícola sem tocar em uma única árvore.

4. Reorientar a política industrial
Se abrirmos para as pequenas e médias empresas o acesso ao crédito, à tecnologia, ao conhecimento, aos mercados globais, criaremos um dínamo de crescimento includente. São elas a parte mais importante de nossa economia; é ali que se gera a maior parte do produto e é ali que está a vasta maioria dos empregos.
Organizar fora dos centros industriais uma travessia direta do pré-fordismo industrial para o pós-fordismo industrial. E isso sem que todo o país tenha de penar no purgatório de um paradigma de produção -produção em grande escala de bens e serviços padronizados, por meio de mão de obra semiqualificada e processos produtivos rígidos e hierárquicos- que já se vai tornando superado no mundo e que inibe nossa ascensão na escalada da produtividade.
O Brasil todo não deve ter de virar a São Paulo de meados do século passado para depois tornar-se outra realidade.

5. Reorganizar as relações entre trabalho e capital
Não se inova nisto desde Vargas. A maior parte do povo brasileiro está fora do regime legal.
Quase metade da população economicamente ativa continua na informalidade. Parte crescente dos empregados na economia formal se encontra em situações precarizadas, de trabalho temporário, terceirizado ou autônomo. Construir, ao lado do regime estabelecido de leis trabalhistas, um segundo corpo de regras, destinado a proteger, a organizar e a representar os trabalhadores inseguros das economias informal e formal.

6. Capacitar o povo brasileiro
A primeira prioridade é reconciliar a gestão local das escolas pelos Estados e municípios com padrões nacionais de investimento e de qualidade: federalizar -na prática, não apenas na lei- os padrões. Para reconciliar gestão local e padrões nacionais, é preciso criar um instrumento para consertar redes de escolas locais que caiam repetidamente abaixo do patamar mínimo aceitável de qualidade.
O meio é associar os três níveis da federação em órgãos conjuntos que possam vir em socorro dessas escolas, assumi-las temporariamente, confiá-las a gestores profissionais independentes e devolvê-las consertadas. A segunda prioridade é mudar a maneira de aprender e de ensinar no Brasil. Substituir decoreba -o enciclopedismo informativo superficial- por ensino analítico e capacitador, com foco no básico: análise verbal e análise numérica.
O lugar para iniciar esta obra é o elo fraco: a escola média. E o instrumento mais promissor é a educação secundária com fronteira aberta entre o ensino geral e o ensino técnico. Ensino geral que subordine memorização a análise. Ensino técnico que priorize o domínio de capacitações práticas flexíveis e genéricas, ao invés de priorizar a aprendizagem de ofícios rígidos.

7. Reconstruir o Estado
Não existe ainda no Brasil o Estado capaz de executar o programa que aqui se esboça. Nosso Estado continua a ser balofo e incapaz. Há três agendas de gestão pública a executar simultaneamente. A primeira agenda, a do profissionalismo burocrático, é a obra incompleta do século 19 em matéria de administração pública. Temos ilhas de profissionalismo no Estado. Continuam a flutuar em um oceano de discricionariedade política.
A segunda agenda, a da eficiência administrativa, está associada ao século 20. Reinventar para o setor público práticas de gestão empregadas no setor privado: padrões de desempenho, garantias de transparência, mecanismos, dentro e fora do Estado, para avaliar, incentivar e cobrar resultados. Transformar o direito e o processo administrativos. Metade do que temos é camisa de força, baseada em desconfiança. A outra metade é o oposto: a delegação de poderes discricionários a potentados administrativos. Ambas as metades precisam ser substituídas por regras e procedimentos que permitam reconciliar fidelidade aos objetivos com flexibilidade na execução.
A terceira agenda, a ser característica do século 21, é a do experimentalismo na maneira de prover os serviços públicos, inclusive de educação e saúde. Não precisamos escolher entre a provisão burocrática de serviços padronizados de baixa qualidade e a privatização desses serviços em favor de empresas em busca de lucro. O Estado pode ajudar a organizar e a financiar a sociedade civil independente para que ela participe da provisão competitiva e experimental dos serviços prestados pelo Estado ao cidadão. É a melhor maneira de qualificá-los.

8. Institucionalizar a cultura republicana
O primeiro ponto de partida é substituir o federalismo de repartição rígida, de competências entre os três níveis do federalismo, por um federalismo cooperativo que os associe em ações conjuntas e em experimentos compartilhados.
O segundo ponto de partida é adotar medidas que comecem a tirar a política da sombra corruptora do dinheiro. Financiar publicamente as campanhas eleitorais para diminuir a influência do dinheiro privado.
Rever o processo orçamentário para que o orçamento deixe de ser palco pantanoso da negociação entre os interesses poderosos. Substituir a maior parte dos cargos de indicação política por carreiras de Estado. Utopia? Tudo isso é factível com instrumentos que já temos à mão. O objetivo é dar braços, asas e olhos à vitalidade brasileira.
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*ROBERTO MANGABEIRA UNGER é professor titular de direito na Universidade Harvard (EUA), ex-ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos (2007-09) e ex-colunista da Folha.
Fonte: Folha online, Caderno Mais -  31/01/2010

Identidade fraturada


Sociólogo ataca lei e diz que ela irá criar mártires e dificultar assimilação dos muçulmanos

Para Vincent Geisser, sociólogo do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas (Paris) e especialista em islamismo, uma lei que proíba o uso da burca [e do niqab, vestimenta muçulmana que deixa só os olhos expostos] pode provocar grande recuo em termos de identidade.

PERGUNTA - A lei é a única resposta ao uso da burca?
VINCENT GEISSER - Fica claro que, diferentemente do uso de um véu simples, o uso da burca se inscreve como parte de um fenômeno sectário e religioso. É aí que está o problema.
Muitos muçulmanos se opõem ao uso da burca. Mas esse debate, somado ao debate sobre identidade nacional, contribui para radicalizar as posições na porção mais moderada da comunidade de muçulmanos praticantes. Uma lei assim acarreta o risco de efeitos perversos, os quais teriam como consequência uma forma de vitimização ou de martírio.
Pode fazer com que pessoas que inicialmente rejeitavam o uso da burca venham a brandir os estandartes de uma identidade à parte.

PERGUNTA - Como combater o que pode parecer uma agressão aos princípios do Estado laico?
GEISSER - O uso da burca não representa apenas uma agressão aos princípios do Estado laico, mas à interação social como um todo, não importa o país em que seja praticado. Ele é sintoma de uma identidade religiosa que faz com que as pessoas contraiam, como se fosse doença, uma certa forma de pureza de identidade. A comissão parlamentar deveria debater a questão dos sectarismos religiosos em seu todo. A lei acarreta o risco de agravamento da fratura de identidades e comunidades, e os legisladores deveriam, na verdade, tentar reduzir esses riscos. Os proponentes dessa lei são aprendizes de feiticeiro.

PERGUNTA - Como impedir desvios sectários e religiosos?
GEISSER - Para começar, estamos falando de movimentos fortemente minoritários, mas que têm interesse em uma lei que permita que posem como mártires.
Eles dispõem de grande capacidade de influência, com alcance bem superior ao de seus círculos. Aproveitam-se dos pequenos traumas causados àquelas pessoas que se sentem, a um só tempo, muçulmanas e francesas.
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Esta entrevista saiu no jornal "Libération".
Reportagem de CHRISTOPHE FORCARI Tradução de Paulo Migliacci.


Fonte: Folha online online, Cad. Mais, 31/01/2010

De cara fechada

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A psicanalista Elisabeth Roudinesco defende a proibição do véu na França, mas critica o uso político do tema por Sarkozy
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A proposta de proibição do véu fechado -por oposição ao lenço que deixa ver o rosto- vem dividindo a sociedade francesa. A psicanalista Elisabeth Roudinesco, feminista que apoiou a lei proibindo o uso de "símbolos religiosos ostensivos" nas escolas, em 2004, diz que o debate é vítima de uma "confusão" criada por jornalistas e políticos conservadores.
A comissão parlamentar que propôs uma lei contra véus (leia texto ao lado) usou argumentos políticos: contra a dissimulação do rosto e a afirmação étnica na esfera pública. A UMP, partido do presidente Nicolas Sarkozy, fez campanha pela lei falando em "respeito aos direitos das mulheres".
O tema também tem sido associado ao debate sobre identidade nacional francesa defendido pelo ministro da Imigração, Eric Besson. Grupos muçulmanos denunciaram a proposta como discriminatória, e organizações como a Human Rights Watch dizem que tal lei pode colocar em xeque a liberdade individual. Roudinesco lança em maio no Brasil "Retorno à Questão Judaica" (ed. Zahar), que, em suas palavras, "combate os extremismos" -sejam os da política israelense, sejam aqueles que crescem na Europa.
Na entrevista abaixo, as respostas da professora de história na Universidade de Paris 7 alternam reações rápidas e enérgicas e -em seguida a pausas ao telefone- explicações meditadas de seu argumento contra o véu. Leia trechos.

FOLHA - Quando se fala da proibição ao véu fechado, trata-se de uma questão de direitos da mulher, de identidade francesa ou simplesmente de racismo?
ELISABETH ROUDINESCO - Essa não é uma boa pergunta. Racismo não tem nada a ver com a questão. E o debate sobre identidade francesa, proposto pelo governo, não tem a ver com o trabalho da comissão sobre o véu integral.
Tenha o cuidado de separar bem a tomada de posição do governo francês, extremamente reacionário, da comissão parlamentar que se reuniu para debater o assunto. Não se pode misturar tudo.
A identidade francesa não se define. Fala-se então em "identidade nacional", mas a ideia de nação ruiu. Há uma oposição frontal de toda a esquerda francesa contra o debate sobre a identidade nacional. Assinei a petição contra essa iniciativa.
Querem que os cidadãos respondam a um questionário do tipo "você canta a "Marselhesa'?", "você gosta de queijo francês?". É absolutamente ridículo, além de não funcionar. É como fazer um questionário sobre a identidade brasileira e, caso você não goste de dançar samba e nunca tenha nadado em Copacabana, seja considerado um mau brasileiro.
Quase chegamos ao ponto de ter um governo tão ridículo quanto o [do premiê italiano] Berlusconi. A função presidencial deve representar valores intelectuais; é uma instituição.

FOLHA - A sra. ainda não falou em feminismo.
ROUDINESCO - Esses símbolos religiosos são símbolos de uma servidão feminina, mas se trata de uma servidão voluntária. Na França, quem os usa costumam ser mulheres convertidas. A lei não seria suficiente para lutar contra isso.

FOLHA - As conclusões da comissão parlamentar são corretas?
ROUDINESCO - Sou a favor de uma lei que reafirme a proibição de dissimular o rosto em serviços públicos. É uma questão de identificação. Não é preciso portar identidade, passaporte? Pois a foto precisa bater com o rosto de quem porta o documento. Não é necessário exigir isso na rua, mas sim em serviços públicos. Não se trata de proibir esse ou aquele item do vestuário, mas de evitar a dissimulação. É assim em todo o mundo -exceto, talvez, no Carnaval.

FOLHA - Os muçulmanos na Europa são muitas vezes pobres e pouco integrados às sociedades dos países em que vivem. Abolir o véu é uma forma de a maioria (no caso, francesa) praticar a negação do outro?
ROUDINESCO - Isso é ridículo. Falo como republicana, laica e de esquerda. Lembro que a França é um Estado laico, e que a tolerância religiosa é tanto maior quanto menos confessional for o Estado. E não há racismo contra muçulmanos. Não devemos confundir muçulmanos e imigrantes.

FOLHA - Mas os muçulmanos na Europa, imigrantes ou não, frequentemente vivem em guetos. Não corremos o risco de fazer deles os judeus deste século?
ROUDINESCO - De modo nenhum, pois não há guetos na França. E é claro que os muçulmanos não são os judeus deste século.

FOLHA - O Reino Unido e outros países discutem a proibição ao véu. Acredita que se trata de uma tendência no mundo ocidental?
ROUDINESCO - A França é laica, e o Reino Unido é mais "comunitário". Deixou se desenvolverem o véu, o lenço, usados de modo generalizado, incluindo crianças.
Com efeito, eu diria que a Inglaterra cometeu o erro de não ser suficientemente laica, mas comunitarista demais. Isso acabou trazendo problemas, criando guetos. Não tendo lutado suficientemente pela laicidade, a Inglaterra agora se encontra confrontada pela questão do islamismo radical.
E é preciso compreender que só os Estados laicos podem garantir um verdadeiro funcionamento democrático. Não se pode, portanto, deixar os religiosos imporem suas leis. Se o fizerem, será uma perda para a democracia. E só a democracia pode respeitar os cultos.
É claro que, com a ascensão do islamismo radical, há tentativas de desestabilizar os Estados laicos; portanto não se trata de uma tendência do Ocidente -é um problema político.
A vontade de dominação religiosa, em todas as suas formas, é sempre problemática para os Estados democráticos e laicos. Vocês têm esse problema no Brasil, com a ascensão dos evangélicos.
Na Europa, temos um crescimento dos fundamentalismos religiosos de todos os tipos, notadamente o católico. É também um grande problema.

FOLHA - Podemos esperar futuramente, como consequência, novas leis na França e em outros países?
ROUDINESCO - Não, pois, no que concerne à Igreja Católica, é mais do que certo que ela tem de obedecer à Constituição do país. Não temos tantos evangélicos quanto vocês, mas temos o catolicismo.
A Igreja Católica, extremamente reacionária, se opõe ao aborto, à liberdade dos homossexuais, assim como o islamismo radical também se opõe. É contra isso que os Estados laicos devem lutar.
Na França, consegue-se separar a igreja do Estado, mas o perigo fundamentalista existe na Europa, em todos os cantos.
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Reportagem de ERNANE GUIMARÃES NETO
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3101201004.htm

O Homem e o Universo

Marcelo Gleiser*

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Somos criaturas espirituais num cosmo que só mostra indiferença
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Algo paradoxal ocorre quando nos deparamos com nossa "pequenez" perante a Natureza.
Por um lado, vemo-nos como seres especiais, superiores, capazes de construir tantas coisas, de criar o belo, de transformar o mundo através da manipulação de matéria-prima, da pedra bruta ao diamante, da terra inerte ao monumento cheio de significado, dos elementos químicos a plásticos, aviões, bolas e pontes. Somos artesãos, meio como as formigas, que constroem seus formigueiros aos poucos, trazendo coisas daqui e dali, erigindo seus abrigos contra as intempéries do mundo.
Por outro lado, vemos nossas obras destruídas em segundos por cataclismas naturais, prédios que desabam, cidades submersas por rios e oceanos ou por cinzas e lava, nossas criações arruinadas em segundos, feito os formigueiros que são achatados sob as sandálias de uma criança, causando pânico geral entre os insetos.
O paradoxo se intensifica mais quando olhamos para o céu e vemos a escuridão da noite ou o azul vago do dia, aparentemente estendendo-se ao infinito, uma casa sem paredes ou teto, sem uma fronteira demarcada. E se pensamos que cada estrela é um sol, e que tantas delas têm sua corte de planetas, fica difícil evitar a questão da nossa existência cósmica, se estamos aqui por algum motivo, se existem outros seres como nós -ou talvez muito diferentes- mas que, por pensar, também se inquietam com essas questões, buscando significado num cosmo que só mostra indiferença.
O que sabemos dos nossos vizinhos cósmicos, os outros planetas do Sistema Solar, não inspira muito calor humano. Vemos mundos belíssimos e hostis à vida, borbulhantes ou frígidos, cobertos por pedras inertes ou por moléculas que parecem traçar uma trilha interrompida, que ia a algum lugar mas, no meio do caminho, esqueceu o seu destino. Só aqui, na Terra, a trilha seguiu em frente, criou seres de formas diversas e exuberantes, compromissos entre as exigências ambientais e a química delicada da vida.
Se continuarmos nossa viagem para longe daqui, veremos nossa galáxia, soberana, casa de 300 bilhões de estrelas, número não tão diferente do total de neurônios no cérebro humano. A pequenez é ainda maior quando pensamos que a Terra, e mesmo o Sistema Solar inteiro, não passa de um ponto insignificante nessa espiral brilhante que se estende por 100 mil anos-luz. Porém, se o que vemos no Sistema Solar, a incrível diversidade de seus planetas e luas, é uma indicação, imagine que surpresas nos esperam em trilhões de outros mundos, cada um um grão de areia numa praia.
Ao olhar para o Universo, o homem é nada. Ao olhar para o Universo, o homem é tudo. Esse é o paradoxo da nossa existência, sermos criaturas espirituais num mundo que não se presta a questionamentos profundos, um mundo que segue, resoluto, o seu curso, que procuramos entender com nossa ciência e, de forma distinta, com nossa arte.
Talvez esse paradoxo não tenha uma resolução. Talvez seja melhor que não tenha. Pois é dessa inquietação do ser que criamos significado, conhecimento e aprendemos a lidar com o mundo e com nós mesmos. Se respondemos a uma pergunta, devemos estar prontos a fazer outra. Se nos perdemos na vastidão do cosmo, se sentimos o peso de sermos as únicas criaturas a questionar o porquê das coisas, devemos também celebrar a nossa existência breve. Ao que parece, somos a consciência cósmica, somos como o Universo pensa sobre si mesmo.

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Dedico esse texto ao meu querido Luiz, que hoje faz 60 anos.
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*MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

Será mesmo o fim da influência?

Brad Delong e Stephen Cohen*

Dono de uma economia enferma e
enredado num inescapável abraço com a China,
os EUA tendem a ser cada vez menos os inspiradores de novas tendências culturais
ou de padrões de comportamento

Ao longo de mais de um quarto de século, todos os países alimentaram o sonho neoliberal: tentaram restringir a influência do Estado às suas competências básicas, ou seja, a promoção da eficiência econômica, a integração econômica global e o crescimento, e reduzir ao máximo a burocracia, a busca desenfreada de lucros e a corrupção. Procuraram ainda privatizar os ativos estatais e a participação do Estado em companhias de grande porte nos principais setores da economia.

Mas agora estão despertando: o sonho neoliberal está no fim. Para compreender os motivos, teremos de voltar à metade do século passado. O advento da 2ª Guerra Mundial fez com que os recursos que ainda restavam à Grã-Bretanha se esgotassem muito rapidamente. Franklin Roosevelt governava um país isolacionista, que ele pretendia convencer a entrar na guerra contra Hitler da maneira mais rápida e completa possível. Mas parte da estratégia de Roosevelt consistia em quebrar a Grã-Bretanha antes que o dinheiro dos contribuintes americanos fosse empregado no conflito. Depois que a Grã-Bretanha quebrou, os Estados Unidos finalmente se apressaram a ajudar sua aliada. Mas enquanto nos equipávamos para resgatá-la, tiramos do povo britânico todo o dinheiro que ele tinha, e quando a guerra acabou, o dinheiro tinha passado para as mãos dos EUA. Os empréstimos feitos pelos EUA à Grã-Bretanha seriam pagos em dólares, e não em libras. E as importações britânicas tiveram de ser racionadas até meados da década de 50.

Será que os EUA serão sugados a esse ponto? Não. Nós não estamos envolvidos numa guerra total. Não produzimos apenas 1.200 calorias diárias de alimentos para cada cidadão. Ainda somos a maior economia do mundo. Os EUA são uma potência tecnológica, possuem imensos recursos e ainda são o centro das finanças mundiais. Continuam sendo a única superpotência militar do mundo, o que quer que isso possa significar.

Os EUA, no entanto, estão perdendo seu dinheiro. Estão profundamente endividados com outros países, e seu endividamento crescerá a cada ano que passa, até onde as previsões podem alcançar. Não serão sugados como eles sugaram a Grã-Bretanha, mas sofrerão sérios apertos.

Quando os EUA tinham o dinheiro, só o usavam para dar atenção a outros governos quando lhes convinha e para garantir que os outros governos se voltassem para os EUA, mesmo que não estivessem dispostos. Os EUA financiaram e empreenderam "mudanças de regime" em países menores para derrubar governos que aparentemente haviam incorrido num erro grave. Para isso, usaram a alavanca do dinheiro de que dispunham exclusivamente para o bem maior do mundo. Quem está com o dinheiro agora? Como o usará? A quanto monta? Enormes estoques de obrigações do governo americano estão nos tesouros de países asiáticos. O Japão tem cerca de US$ 1 trilhão em reservas (o que corresponde a cerca de US$ 9 mil para cada família americana). Taiwan, Hong Kong e Cingapura em conjunto detêm algo como US$ 500 bilhões. A Coreia tem mais US$ 200 bilhões. Mas a maior detentora de obrigações americanas é a China, com cerca de US$ 2,5 trilhões de "reservas", a parte principal em títulos da dívida dos EUA. Os EUA devem quantias inimagináveis de dinheiro aos seus credores: cerca de US$ 20 mil por família americana, três quartos do PIB da China, o que torna seu pagamento rápido impossível. A Bíblia ensina: "O que toma emprestado é servo do que empresta". Mas o ônus da dívida externa dos EUA pode ser mais bem explicado pela anedota muitas vezes ouvida em Wall Street: "Se você deve US$ 1 milhão a um banco, o banco fisgou você; se você deve US$ 1 bilhão, você fisgou o banco".

Nenhum dos dois pode se desvencilhar do outro: estão presos, nós estamos presos. O desequilíbrio econômico entre EUA e China obrigou as duas potências a um abraço excessivamente íntimo e não particularmente desejado, que Lawrence Summers certa vez definiu como o equilíbrio financeiro de terror. Mas tudo para o bem: as duas potências devem aprender a trabalhar em parceria, e não apenas nas questões econômicas - o aquecimento global e a ordem global também precisam de uma cooperação sino-americana positiva, e essas são questões muito mais importantes no longo prazo. A parceria sino-americana, na gestão da complexa bagunça de sua assimétrica codependência econômica, pode constituir um bom começo para tratar de problemas de equilíbrio e de ordem mundial totalmente insensatos. Não temos nenhuma escolha aceitável senão nos esforçarmos, e isso precisará de muita boa vontade de ambas as partes. Como o dinheiro altera as relações de poder, os EUA não só estão se tornando dependentes como não são mais independentes. Essa é a mudança mais importante. E a China não está mais indefesa e intimidada diante da superpotência hegemônica; ela a tem em suas mãos.

Nos últimos 30 anos, os EUA implantaram com sucesso uma visão de mundo de mercados sem restrições e de países "com restrições": expandir o âmbito dos mercados e reduzir o campo de ação de outras instituições, principalmente os governos. Respaldaram esse conceito com dinheiro e, enquanto ele não fracassou, essa perspectiva americana foi adotada de bom grado por um número cada vez maior de indivíduos e governos em todo o planeta. O poder brando - não o poderia militar, não o mero poder do dinheiro, mas a capacidade de suscitar aceitação e emulação - foi um componente vital do predomínio internacional dos EUA. Ele permitiu amenizar o caráter abrasivo do poderio militar e econômico e fez com que os detentores desse poder se sentissem satisfeitos.

Evidentemente, dinheiro é poder. E como, durante cerca de 110 anos, os EUA detinham o dinheiro - sólido, legítimo, seguro e duradouro -, no mundo todo as pessoas queriam ser como os americanos: bem-sucedidas, modernas, livres, eficientes, democráticas, capazes de ascender socialmente, esguias, limpas, poderosas e, obviamente, ricas. O dinheiro confere poder a uma nação, não apenas o poder de mandar ou influir no comportamento de outras nações. E quando o dinheiro se acumula ao longo do tempo faz com que o poder propague ideias, preocupações, modas, normas, interesses, formas de entretenimento e maneiras de se mostrar e se comportar que brotam de sua cultura. Esses elementos penetram profundamente em outras culturas e passam a fazer parte da vida de todos os dias. É um poder exuberante, que não precisa ser exercido voluntariamente ou mesmo conscientemente, e sem custos extraordinários.

Enquanto os EUA saíam da 1ª Guerra Mundial como a maior potência e donos de gigantescas quantidades de dinheiro, o jazz americano foi conquistando a Europa, mais rapidamente do que a Ford ou a Kodak. Mais tarde, principalmente depois da 2ª Guerra, os europeus aplaudiram com entusiasmo a invasão dos filmes americanos. A maioria dos europeus conheceu a América por meio do cinema; entretanto, duas gerações de europeus privilegiados viajaram para os EUA para ver o país com os próprios olhos (muitos patrocinados pelo Departamento de Estado), admirar os arranha-céus de Nova York e as casas das pessoas comuns com carrões reluzentes à porta, máquinas de lavar, televisores e os sorrisos das grandes mulheres americanas, alimentadas com leite e carne, refeitos nos consultórios dos ortodontistas.

O domínio cultural americano continuou se expandindo. Adolescentes de todo o mundo agora se vestem de maneira uniforme com estilos lançados em primeira mão pelos adolescentes americanos e adotaram até mesmo sua linguagem corporal. Comem pela rua. Os iPods, criados pelos americanos e fabricados na Ásia, enchem suas cabeças com a mesma música estridente; enviam suas mensagens instantâneas, usam blogs e tweetters. E a língua inglesa - que não é absolutamente uma invenção da cultura americana - não é apenas a língua internacional, mas também a segunda língua de uma enorme população global. Uma língua contém mais do que palavras e gramática; ela expressa uma forma e um conteúdo cultural.

Os EUA serão cada vez menos os inspiradores de novas tendências culturais ou padrões de comportamento globais. Em primeiro lugar porque agora o dinheiro está nas mãos dos outros; mas também porque, embora os EUA continuem um país particularmente moderno, o moderno deixou de ser especificamente americano; está se tornando rapidamente semiglobal, e, se não envelheceu, pelo menos chegou à maturidade. Não é preciso sair da China para ver arranha-céus; há mais arranha-céus em Xangai do que em Nova York, mais novos, mais altos e mais ousados. O estrangeiro que chega agora ao aeroporto Kennedy de Nova York ainda fica boquiaberto ao longo do caminho até Manhattan, mas os motivos são outros: o lixo e as favelas forram a Via Expressa Van Wyck, Via Jamaica e Queens, onde a ferrugem e as pichações decoram os velhos trens do metrô e as pontes; as ruas são malconservadas; não há trens adequados para a cidade - e muito menos um transporte limpo e rápido como em Hong Kong e Xangai. Hollywood não tem mais uma meganarrativa herdada e incorporada - a exibição da vida moderna em todas as suas bizarras formas cotidianas: o modo de andar e falar das mulheres, as casas, o crime, a sedução, o sexo, as cozinhas, o modo de criar os filhos, de fazer sucesso, excursões, tribunais, shopping centers, escolas, hospitais, universidades e edifícios de escritórios - o mundo, talvez, do futuro de vocês.

A cultura criada pelos EUA e exportada em seus filmes não desapareceu; nem está desaparecendo. Simplesmente se universalizou e agora está aberta para uma imensa gama de contribuições. O que é seguramente excelente para a cultura americana e mundial, pela abertura para novas ideias, talentos e energias. Assim, a cultura local americana se enriquece graças às várias importações, do futebol ao sushi, sem falar nos ativos Ph.Ds. em ciências biológicas e da matéria.

Os EUA continuarão sendo indubitavelmente líderes como potência cultural, mas há uma diferença entre liderar em termos culturais e exercer um fácil predomínio cultural, quase natural. Nossas universidades de pesquisa são motivo de inveja e servem de modelo para o mundo inteiro. O mesmo acontece com as nossas companhias de alta tecnologia, biotecnologia e nanotecnologia, como as do Vale do Silício, com sua mão de obra multinacional, multirracial, pertencente a uma única cultura, composta por pessoas brilhantes, ambiciosas, de formação superior e extremamente motivadas. Há também uma poderosa força cultural emergente, representada em seu mais alto grau por Barack e Michelle Obama: os EUA ainda poderão criar as novas meganarrativas que sucederão ao mundo da modernidade, capazes de conquistar os corações, os temores, os anseios e as energias do mundo. Mas por mais criativos que seus cidadãos se tornem, como no campo do poder econômico e político, é improvável que os EUA continuem sendo a potência cultural hegemônica, a fonte esmagadoramente predominante do pensamento cultural.
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*Brad Delong é economista e Stephen Cohen é professor de planejamento regional, ambos da Universidade da Califórnia. Eles escreveram este artigo originalmente para a revista Foreign Policy
Fonte: Site: http://www.controversia.com.br/index.php

Fracassou o sicialismo bolivariano

Carlos Pio*

Nos países capitalistas os preços são livres. Ninguém precisa de autorização para ir ao mercado comprar o que quer, na quantidade que quiser — e é livre para comparar preços, barganhar, comprar ou não; mas os produtores e comerciantes também são livres para produzir, contratar e estabelecer os preços dos bens. Quanto mais arraigada (nos hábitos e nas regras que regem as escolhas das pessoas) for a liberdade de consumidores e produtores, maiores as chances de que aumente o bem-estar geral. É uma regra de ouro.
Os leitores já pararam para pensar que nos países capitalistas, normalmente, não faltam produtos, não se formam filas quilométricas e as Forças Armadas não precisam ser convocadas para “conter a especulação” ou “garantir o acesso da população aos bens de primeira necessidade”? Que não há crise de abastecimento no capitalismo — e tampouco crise de fome? Por que será, então, que ao pôr em prática o decreto que desvaloriza o câmbio nominal em mais de 100% e cria taxas diferentes entre produtos considerados “de importação prioritária” e “supérfluos” o coronel Hugo Chávez optou por convocar as Forças Armadas para garantir o abastecimento?
A resposta é simples: a Venezuela não é mais um país capitalista (e nem democrático, diga-se de passagem!). Lá o governo estatiza empresas e bancos; intromete-se nos contratos privados; cerceia o direito de organização dos trabalhadores; adota política econômica irresponsável, que exagera gastos e reduz impostos, para comprar votos dos pobres e enriquecer os amigos; fixa preços; fixa o câmbio; oferece ajuda externa acima das capacidades do país; deixa o crime crescer e a infra-estrutura piorar; politiza a cartilha escolar; persegue adversários; fecha canais de televisão e rádio. E as notícias das últimas semanas atestam que Chávez quer aprofundar essas escolhas.
Alguém investiria o próprio dinheiro num país desses? Sem investimento privado, caem a oferta e a produtividade (eficiência), aumentam os preços (inflação) e caem as exportações, aumenta o desemprego e formam-se gargalos na economia. Não há prosperidade no fim desse túnel.
Inflação e desvalorização cambial são, a rigor, a mesma coisa: medidas da perda de valor real da moeda. Inflação é a corrosão desse valor pela elevação dos preços domésticos. Produtos e serviços mais caros significam maior custo de vida e maiores custos de produção. É a queda do poder de compra da moeda. E é apenas natural que essa queda seja acompanhada pela correspondente queda do poder de compra no exterior — em relação a bens, mas também às próprias moedas estrangeiras.
Por um lado, a desvalorização da moeda era inevitável e desejável. Apesar dos ganhos com exportações de petróleo, o país não conseguiria conviver por muito mais tempo com o crescimento das importações — as reservas de moeda estrangeira desapareceriam. No curto prazo, o efeito da desvalorização é positivo: as importações ficam mais caras (em bolívares) e devem cair; os produtos locais ficam mais baratos (em dólares) e devem crescer. No entanto, com o tempo esse efeito da desvalorização vai se perder. Importações essenciais — por exemplo, alimentos — também ficarão mais caras e seus preços tendem a se difundir pela economia, provocando mais inflação no futuro. E inflação provoca depreciação do câmbio, o que requer mais desvalorizações (e mais inflação...). Para ser efetiva e sustentável, a desvalorização precisa ser acompanhada de políticas capazes de fazer a economia crescer sem inflação.
A saída correta seria aumentar as liberdades de todos: preços livres, câmbio livre, importação livre, garantias à propriedade privada, desregulação da economia — sem falar nas garantias à vida e à participação política. Só assim cada venezuelano receberia bons incentivos para investir e produzir mais e, agindo assim, elevaria a eficiência e a competitividade da economia. Mas Chávez é contra.
Há alguma chance do decreto restaurar as bases de uma economia sólida e próspera? Infelizmente, não. Em breve constataremos mais inflação, mercado paralelo, contrabando e sonegação fiscal. Essa crescente desorganização da economia provocará mais descontentamento social e intensificação de manifestações políticas contra Chávez. Isso porque nenhum governo é capaz de substituir o mercado, estabelecendo preços relativos consistentes para um amplo conjunto de produtos e serviços, sem ameaçar a continuidade da densa cadeia produtiva que é a economia. Foi porque os governos tentaram fazer isso nos países do Leste que o socialismo fracassou. E vai fracassar na Venezuela.
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Cientista político, professor de economia política internacional da Universidade de Brasília e
pesquisador visitante da University Oxford, Inglaterra
crpio@unb.br
Fonte: Correio Braziliense online, 31/01/2010

O fim do mundo

*Rubem Alves

A gente, criança, acreditava no fim de mundo. Não sei quem foi que fez a maldade de fazer a gente acreditar em coisa que nunca viu... De noite, na cama, o medo crescia. Mas o medo crescia mais quando ameaçava tempestade, as nuvens pretas sem nem um azulzinho se mostrando, os relâmpagos estralando no meio do céu. O dilúvio deve ter sido assim. A chuva caindo sem parar por quarenta dias e quarenta noites, a água subindo, parecido com o que está acontecendo em São Paulo, as terras secas e matas se transformando em mares, as pessoas desesperadas, as grávidas, os nenezinhos recém-nascidos, que pecado haviam cometido para ter um fim tão terrível, os velhinhos que não podiam andar, e a bicharada toda com exceção dos peixes se afogando. Exceto Noé e a sua família que, de dentro da segurança da arca tudo contemplavam. E Deus impassível, contemplando o horror da sua obra.

O dilúvio nos ensinou que Deus morava no rodamoinho do terrível. Os grandes acreditavam e foram eles que contavam a estória. E prá confirmar o fim mesmo, definitivo, do fim dos tempos, estava tudo escrito no livro do Apocalipse, o evento horrendo descrito nos seus mínimos detalhes.

Michelangelo, pra ajudar os que precisam de ver para crer, pintou o fim do mundo num afresco gigantesco na Capela Sistina. Não sei se prá dar felicidade ou prá dar mais medo... Acho que prá dar mais medo. Quanto maior o medo, mais forte é a religião na cabeça e no coração das pessoas.

Conheço só uma descrição alegre do fim do mundo. Gustaf Mahler era de uma modesta família judia. Em 1897 tornou-se católico ao que parece para fugir da perseguição que sofria como profissional. Sua descrição alegre do fim do fim do mundo encontra-se na sua Segunda Sinfonia, também chamada Sinfonia de Ressurreição. Não contente com a pura execução da sinfonia ele a explicou por meio de um texto:

“Uma voz se faz ouvir. Chegou o fim de todas as coisas vivas. O dia do julgamento chegou e o terror desse dia dos dias está sobre nós. A Terra treme, as sepulturas se abrem, os mortos ressuscitam e caminham numa procissão sem fim. Poderosos e fracos dessa Terra, reis e mendigos, justos e injustos — todos eles caminham. Um grito terrível, pedindo perdão e misericórdia fere os ouvidos. O grito vai ficando cada vez mais forte. Nossos sentidos nos abandonam e perdemos consciência à medida em que se aproxima o julgamento eterno. Soa o grande chamado. Ouvem-se então as trombetas apocalípticas.”

Até aqui tudo combina com a cena pintada por Michelangelo que é a cena ortodoxa. Mas nesse momento Mahler subverteu o final. É o fim do mundo, sim. Mas o fim do mundo é só alegria.

“No meio de um silencio sinistro ouve-se o canto distante de um rouxinol como uma última reverberação da vida aqui de baixo. O coro celestial de santos canta suavemente ‘Ressuscitareis!’ A glória de Deus é revelada. Uma luz maravilhosa envolve os corações. Tudo é tranquilidade e felicidade. E eis! Não há julgamento! Não há nem pecadores e nem justos, nem poderosos e nem humildes, nenhuma vingança ou recompensa. Um poderoso sentimento de amor permeia tudo e tudo se enche com a Sua presença...”

Os Maias e os Astecas também acreditavam que o universo terminaria quando se cumprissem os anos de sua existência. Um guia turístico do México, me explicando uma pirâmide, me disse que os maias e os astecas acreditavam que o universo era regido por um calendário, o ciclo do tempo se completando em 49 anos, que é 7 vezes 7. Aí, quando chegava o finzinho do ano 48, e o mundo deveria acabar em um ou dois dias, todos paravam, ninguém trabalhava ou cozinhava, esperando a catástrofe terrível, e até se punham a ajudar os deuses, destruindo tudo o que havia. Na minha idade, 76 anos, eu já teria passado por um fim do mundo, possivelmente dois... Aí o fim não acontecia. Concluíam então que os deuses haviam resolvido começar tudo de novo, punham-se a rir e a dançar sobre as ruínas do mundo que terminara, e tratavam de construir um mundo novo que começava do nada. O trágico se transformava em festa. Acho que tem sabedoria nisso. É preciso morrer para renascer. Ou, como disse Nietzsche, somente onde há sepulturas há também ressurreições.

Mas no nosso mundo, dominado pela técnica e pela ciência, ninguém acredita mais. As pessoas educadas sabem que a Terra não vai acabar com tsunamis e terremotos, a menos que um gigantesco meteoro se choque com ela — o que não é impossível. Mas pode ser que ela venha a acabar de um outro jeito... Os dinossauros nunca imaginariam o seu fim. Pensavam que, se alguém iria desaparecer, seriam as lagartixas fraquinhas, pequenininhas, molinhas, não eles fortões, grandões, durões. Mas com tanta desgraça acontecendo, tsunamis, vendavais, frio e neve como nunca se viu, terremotos destruindo e matando centenas de milhares de pessoas — a gente religiosa se pergunta “o que é que Deus está fazendo?” Pois ele não sabe tudo com antecedência e pode fazer o que quiser? Basta piscar um olho para evitar a catástrofe! Será que ele deixou de gostar da gente? Abandonou as grávidas, nenezinhos, velhos? Estamos órfãos nesse universo sem fim? Ou será que ele ficou fraquinho, sem forças para parar tsunami e terremoto embora queira?
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 31/01/2010
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1672443&area=2220&authent=602730353340326005301733623242  

sábado, 30 de janeiro de 2010

Deus no Haiti?


A tragédia do Haiti suscita diversas perguntas religiosas. A ciência dá respostas sobre por que e como sucedem os fenômenos, mas, como dizia Wittgenstein, uma vez alcançadas as soluções científicas, permanecem as perguntas de sentido e significado, que fogem do âmbito científico.
A nota é da Associação de Teólogos João XXIII, com sede em Madrid, Espanha e publicada pelo sítio Religión Digital, 28-01-2010. A tradução é de Vanessa Alves.

Na tragédia do Haiti concorrem dois fenômenos convergentes e diferentes. Por uma parte, a situação da ilha caribenha em uma zona sísmica, com frequentes terremotos e maremotos, exposta também a furacões e ciclones, em uma das partes mais vulneráveis do planeta. Por outra, a agressiva mão do ser humano, que tem desflorestado o Haiti, superexplorado suas reservas naturais e construído povoados e cidades carentes do mínimo de segurança.
As condições extremamente precárias em que os colonizadores deixaram o país, a tradição racista e escravista, a corrupção generalizada, a ditadura de governos exploradores, como os Duvalier, e a injusta distribuição dos recursos aumentaram as doenças da ilha. Arruinaram tudo, incluindo a zona histórica e os órgãos estatais, mas se preservou o moderno bairro rico de "Pétion Ville", em Porto Príncipe, como também a vizinha e menos desafortunada República Dominicana.
A partir destes dados, a pergunta religiosa "onde está Deus" não é nem pode ser a primeira. O Haiti exemplifica o que já ocorreu com o tsunami da Indonésia e as fomes subsaarianas.
Há povos, nações e Estados que vivem na miséria, sem capacidade para defender-se das catástrofes naturais. A ordem internacional está montada sobre a concentração de riqueza em 20% da humanidade e o desamparo de boa parte desta.
Por si sós não podem sair de sua miséria, agravada por multinacionais que exaurem os recursos para obter grandes benefícios em pouco tempo, governos próprios corruptos e vendidos, e países ricos que protegem seus interesses e os de suas companhias no terceiro Mundo.
Sem esta ordem de coisas, poderia ter sido evitada a repercussão da catástrofe ou teria sido muito menor. Mas os habitantes do Haiti são tão pobres que nem sequer têm capacidade para receber e repartir a ajuda que lhes chega. Quem tem a culpa? A atual ordem internacional que só pode apoiar-se com base no poder econômico, político e militar dos países ricos, e a persistente corrupção das elites dirigentes do país.
E Deus? Seguimos buscando o Deus relojoeiro de Newton, que ajusta a maquinaria do universo para regular suas disfuncionalidades. Pedimos milagres naturais, que Deus envie as chuvas ou as pare, detenha os tufões, faça prodígios. Isso era também o que pedia o povo a Jesus, o desejo com o qual o espírito do mal lhe tentava (poder, prestígio e dinheiro), e o sonho dos discípulos (um messias milagreiro).
Dois mil anos depois, seguimos buscando um Deus-providência ao nosso serviço, um superpai protetor e um ser onipotente que nos proteja da natureza. Mas Deus não interveio para evitar o Gólgota, nem em Auschwitz, nem evitou pestes, fomes e outros desastres.
Achamos, com tudo, que o mal é também um mistério que encaixa dificilmente com a imagem de um Deus onipotente e misericordioso, sobretudo, quando se traduz em sofrimento dos pobres e dos inocentes.
A ciência formula as leis da natureza e explica as causas dos desastres, facilitando o progresso e o avanço no controle dela. Deus não tem ciúmes do ser humano, imagem sua, mas capacita a pessoa para ser criadora e gerar vida. Deu à humanidade uma responsabilidade no mundo com a condição de que todos os seres humanos e a própria natureza participassem equitativamente das riquezas do universo. Defende o pobre e o oprimido, e abençoa os que trabalham pela paz e justiça, valores do Reino de Deus.
Deus não é neutro, está no Haiti nas vítimas e nas pessoas que trabalham ali solidariamente, identifica-se com as vítimas e faz delas o critério do julgamento divino (Mt 25,31-46). Ninguém tem o direito de falar em seu nome, só elas e quem compartilha seus sofrimentos. Mas todos nós podemos e devemos fazer-nos presentes no Haiti, atender às necessidades urgentes dos haitianos e colaborar na sua reconstrução. Mas isso não basta. Dentro de poucos meses, Haiti será uma mera lembrança, exceto para os que continuam ali.
A grande tragédia do século XXI é a de uma humanidade que tem recursos suficientes para acabar com a fome e mitigar as catástrofes naturais, mas prefere empregá-los em armamento, para defender-se dos pobres; em policiais, para evitar que os imigrantes cheguem a nossas ilhas de riqueza; e nos esbanjamentos consumistas de uma minoria de países. Do mal do Haiti, somos todos responsáveis, especialmente os países mais ricos, e a solidariedade não pode ficar em um momento pontual, mesmo que seja necessária, ainda que exija outra forma de vida.
O Haiti personifica hoje os povos crucificados, e a única resposta válida é comprometer-nos para que não haja mais Haitis assolados, nem Palestinas massacradas, como também nenhum Auschwitz nem Hiroshima. Todos nós temos que mudar, e a referência ao Deus de Jesus há de ser o grande incentivo de justiça e solidariedade para os que nós chamamos cristãos.

Este documento é assinado pelos seguintes membros da Associação João XXIII:
José Luis Andavert, Xavier Alegre, Juan Barreto, Fernando Bermúdez, José Manuel Bernal, Rafael Calonge, José María Castillo (vogal), José Centeno, Juan Antonio Estrada, Benjamín Forcano, Máximo García Ruiz (vogal), José Ignacio González Faus, Julio Lois, Francisco Margallo, Eduardo Malvado, Albert Moliner, Federico Pastor (presidente), Jesús Peláez, Victorino Pérez Prieto, Margarita Pintos, José Luis Quirós, Alfredo Tamayo Ayestarán (vice-presidente), Juan José Tamayo-Acosta (secretário-geral), Rufino Velasco, José Vico, Evaristo Villar, Juan Yzuel.
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Fonte: IHU online, 30/01/2010

Importância da Verdade

Dom Eugenio Sales*
 Há momentos na vida que nos convidam a um exame de nossas atitudes, uma verificação interior sob o olhar de Deus. Algo diferente do que costumamos fazer cada dia. Assim como alguém que, ao longo de uma viagem, para por instantes, observa o percurso andado, consulta o itinerário, julga o esforço despendido, avalia as reservas, alonga a vista para o futuro.
Constatar a realidade é sempre útil. O princípio de cada ano nos oferece uma oportunidade para examinar nossa atuação no período que termina a aperfeiçoar a missão de discípulos de Cristo e membros de uma nação.
Em dois campos essas reflexões são necessárias: o civil e o religioso, pois somos cidadãos de duas pátrias, e ambas estão intimamente relacionadas entre si. O critério básico, entretanto, é um só, o Evangelho, e é a ele que se deve recorrer como parâmetro e como iluminador nos julgamentos e decisões.
O que fizemos pelo Brasil em 2009, se dele nos servimos ou se por ele nos sacrificamos, é uma das perguntas fundamentais.
Abre-se então um largo espectro a iluminar cada ação e a inquirir as intenções. A resposta será dada pela consciência de cada um diante do Senhor.
Em nome de nossa Fé, a Igreja da qual somos parte integrante, exige de nós, antes de tudo, apesar das contingências humanas, uma fidelidade inalterada.
Essa interpretação se bifurca, embora de uma só fonte promanem os erros.
Há quem cultue o passado de modo imobilista e os que só aspiram às novidades. Ambos ferem a comunhão através da infidelidade aos designados pelo Salvador para orientar o Povo de Deus e aos quais os irmãos foram confiados. O papa e os bispos, estes enquanto em união com ele, são, como expressão da Igreja, “a coluna e o sustentáculo da verdade” (1Tm 3,15).
Nesse exame encontraremos vários óbices à autenticidade no relacionamento civil e religioso.
Um deles, com profundas repercussões, é a oposição à Verdade.
Esta virtude, marca essencial do caráter bem formado, indispensável à prática religiosa e à vida cívica, vê-se repetidas vezes repelida, ferida ou destruída.
Apela-se para o anonimato, mesmo com boas intenções, a fim de se denunciar erros e até para ajudar a corrigi-los. Entretanto, a falta de identificação reduz a nada um informe.
Com razão há os que se negam a tomar conhecimento de sua existência, pois é leitura vedada o que está acobertado por uma falsa identidade.
O verdadeiro é o que está de acordo com a realidade objetiva, e também pode ser definido como o encontro com o Redentor, manifestado por nossa obediência à doutrina revelada.
Os fundamentos dessa virtude estão no próprio Deus.
Cristo é a Verdade. A pergunta um tanto cínica de Pilatos “Que é a Verdade?” (Jo 18,38) parece que se repete em muitos lábios cristãos. E a resposta foi muda, mas de uma extraordinária eloquência e eficácia.
Ela era ele, ali presente.
Ouve-se uma notícia e, antes de se verificar sua veracidade, é logo transmitida a outrem, podendo-se com isso ofender gravemente aos homens e ao Senhor. Por vezes, o mal é disseminado dessa forma e é irreparável. Infelizmente, cada um de nós pode confirmar a frequência dessa enfermidade moral.
Deturpa-se o fato ou elaborase uma intenção não existente para servir a interesses pessoais, de grupos e ideologias.
Hoje, a rapidez das comunicações amplia desmedidamente o raio destruidor da mentira, do falso testemunho, da insinuação malévola.
Atribuem-se, por vezes, inclusive à autoridade civil ou religiosa, ações ou objetivos absolutamente inexistentes ou parcialmente verdadeiros. Neste caso, a meia verdade vai além da simples calúnia, pois, apresentando uma deformação de algo real, fá-lo mais facilmente crível.
Impressiona a quantidade dessas e outras manifestações de falta de caráter e espírito cristão. Profunda a extensão desse mal e alto seu poder destruidor.
Elas são praticadas até por pessoas aparentemente boas e que se julgam tementes a Deus. Esquecem que toda a vida espiritual se edifica em alicerces humanos, elevados à ordem sobrenatural. Construir a piedade sem a base de um caráter ilibado que se manifesta pelo amor à verdade, é fazê-lo sobre a areia. O resultado nos é revelado por São Mateus (7,26-27): “E foi grande a sua queda”.
O cristão, como parte do Corpo Místico de Cristo, é destinado a “dar testemunho da verdade” (Jo 18,37) e a estar permanentemente sob sua influência.
Cada um de nós é cooperador da Verdade. Somente assim alguém pode se considerar colaborador do Evangelho.
Para cultivá-la exige-se um amor pelo verdadeiro, pelo real, pelo objetivo, que põe acima dos interesses pessoais julgamentos apressados, pruridos da língua e fraqueza na prática da caridade. Exige-se ainda o apreço ao valor da justiça e do bem comum. Sem a Verdade, a relação entre as criaturas se enfraquece, e toda uma série de obstáculos se antepõe à boa ordem na sociedade civil e religiosa.
Ela é o vínculo indispensável à união e ao entendimento que todos almejamos.
O Pai dá sua graça. Nós devemos responder com nosso esforço. Servir à Verdade pode significar dificuldades e até graves sacrifícios.
Seremos, entretanto, bem recompensados pelo Senhor.
Homens de hoje constroem assim o amanhã.
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*ARCEBISPO EMÉRITO DO RIO
FONTE: Jornal do Brasil online - Sábado, 30 de Janeiro de 2010

Dilma e o amor juvenil

Felipe Pena*

Nada como um amor juvenil. Os fiapos de pelo surgindo no rosto, os hormônios transbordando, a insegurança perene. O amor juvenil é sincero, úmido, urgente. Amor de peixe, com as guelras inundadas e o oceano pela frente. O amor juvenil não precisa de explicação, é autorreferencial, um vício desde o início, como diria o Caetano. Mas o melhor dos vícios, cuja dependência é tudo que queremos.
Dilma se casou com um amor juvenil. É verdade que ela já não era tão juvenil assim: tinha o cabelo pintado, um passado de guerrilha e já espalhava creme da Victoria Secret's por todo o corpo. E ele... Bem, ele era ainda mais velho, com uma barba cerrada que a machucava, algumas rugas de expressão e boas histórias pra contar. Mas não tinham dúvidas: eram ambos adolescentes, passionais, loucos. Eram ambos irresistíveis um para o outro.
Impossível não lembrar das vezes em que andavam de mãos dadas pelas ruas de um certo balneário. Em uma delas, durante um passeio pela orla, ele a pediu em casamento. O dia estava feio, nublado, avesso a qualquer tipo de romantismo. Mas o garoto primava pela criatividade, alimentada pela paixão hormonal e por um senso de oportunidade inigualável. Dilma nem imaginava que estavam comemorando 120 dias de namoro. Para ela, só havia comemorações em datas redondas: um mês, um ano, quem sabe uma década. Contar os dias era impossível.
O adolescente apaixonado pensava de outra forma. Não enxergava pieguice em nenhuma manifestação amorosa. Para ser completo, o amor precisava ser ridículo, precisava de extravagâncias e, acima de tudo, precisava de testemunhas. No meio da caminhada pelo calçadão, ele a convidou para almoçar. Um convite estranho para o horário: onze e meia da manhã. Mas ela não recusou, nem mesmo quando recebeu a pequena faixa de pano e o pedido para que vendasse os olhos.
- O que é isso, Luís Inácio?
- Confia em mim, meu amor.
Andaram por mais alguns metros até uma pequena escada que levava à praia. A areia penetrou nas sandálias, deixando-a ainda mais intrigada. Vamos almoçar à beira-mar? Calma, estamos chegando. Não chovia, mas um vento frio entrava pela lateral da blusa, arrepiando a pele já umedecida pela ansiedade. Os passos lentos no solo fofo tornaram o trajeto um pouco mais demorado que o previsto. Vendada, Dilma aproveitava os outros sentidos para se localizar. Ouvia poucas vozes. O cheiro de maresia ficava mais forte a cada passo, embora se misturasse com um aroma incomum, de difícil identificação. Um gosto doce tomava conta do palato, talvez influenciado pelo tal aroma desconhecido.
Quando sentiu a água bater nos tornozelos, Luís Inácio pediu que parasse de andar. Apesar do vento, o mar estava calmo, como se fosse um dia de verão. O namorado a pegou pelos ombros, posicionou-a em direção ao horizonte e só depois permitiu que retirasse a venda, o que ela fez com toda a calma do mundo, saboreando o momento. Os olhos demoraram alguns segundos para se acostumar com a luz, tornando a cena ainda mais intensa, já que a imagem apareceu paulatinamente, como um espetáculo que se descortina para o espectador.
Cento e vinte barcos de papel machê navegavam em círculos. Nas pequenas velas que os impulsionavam era possível ver o nome dela escrito com letras góticas, além de um coração estilizado que o envolvia. Os amigos do casal, todos adolescentes, aplaudiam o gesto romântico, do qual haviam sido cúmplices e artífices. Dos dedos de Luís Inácio surgiu uma linha de náilon presa a um dos barquinhos, que estava próximo da areia. Ele puxou o fio lentamente, em movimentos sincronizados, para não derrubar a embarcação. Na ponta do mastro, havia uma aliança de ouro cuidadosamente amarrada, cuja gravação no interior trazia o nome de ambos e um sinal místico que só eles compreendiam. Não foi preciso dizer mais nada, apenas ouvir a resposta.
– Eu aceito.
Os amigos ergueram os copos em torno da gigantesca toalha estendida na areia, cujos isopores com cerveja dividiam espaço com doces e salgados comprados numa padaria do bairro. As lágrimas eram coletivas. Nunca antes na história desse país, um amor fora tão celebrado.
Depois do almoço, Luís Inácio colocou o isopor na cabeça e partiu com a namorada. O amor juvenil precisava de atitude.
O amor juvenil precisava ser carregado.
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*Felipe Pena é jornalista, escritor e professor da UFF. Autor de dez livros, leciona oficinas de crônicas pelo país e, em março, lança o romance 'O marido perfeito mora ao lado' (Record).
FONTE: Jornal do Brasil online, 28/01/2010

As noites indormidas

Mauro Santayana*
No discurso de posse como governador de Minas, quando afirmou o compromisso de seu estado com a recuperação do poder civil no país, Tancredo Neves falou nas “noites indormidas”. Ao lembrar o carinho com que o povo o recebera, na campanha que o levara ao Palácio da Liberdade, disse que a peregrinação cívica compensava-o das noites passadas em claro, na busca dos entendimentos políticos, nos diversos postos que ocupara, entre eles o de ministro da Justiça de Vargas, quando do acosso contra o grande presidente, e de primeiro-ministro de João Goulart.
É fácil desprezar a atividade pública como um todo. É certo que há políticos que só retiram de sua condição o sumo do hedonismo, o prazer doentio do mando, sem falar nos espessos sucos da corrupção. Mas há aqueles que, à esquerda e à direita do espectro político, são dedicados servidores do Estado. São homens que passam “noites indormidas”, no esforço de conciliar os adversários, de encontrar o caminho para a superação das dificuldades, e no estudo das questões administrativas.
São pesadas as tensões a que se submetem os homens públicos. Tancredo passara, ao lado de Ulysses Guimarães, mais de 24 horas em vigília na Câmara, quando da discussão da reforma judiciária, de iniciativa do presidente Geisel. Como se recorda, o Congresso rejeitou a proposta do governo, e foi fechado por Geisel, que, com base no AI-5, não só impôs a reforma como criou os chamados “senadores biônicos”, e adiou as eleições diretas para os governadores de Estado. Tancredo achava que não valia a pena enfrentar o governo no episódio. Sua opinião era a de que a lei poderia ser revista ou revogada em futuro próximo, mas a rejeição daria pretexto para que os militares da linha dura impusessem a Geisel o recuo no processo de distensão. Mas seguiu a orientação do MDB.
O drama final do grande mineiro revela as fortes pressões que enfrentou nos últimos meses de 1984 e naquelas horas que precederam a frustrada cerimônia de posse. Ao mesmo tempo em que ia às ruas, em busca do apoio popular, negociava exaustivamente a saída política para o impasse histórico. A composição do ministério, na cuidadosa atenção à realidade federativa, exigiu-lhe, além da lógica, extrema paciência. Qualquer que tenha sido a causa objetiva da enfermidade e do processo que o levou à morte, as tensões daqueles meses, semanas e horas – a cada momento mais pesadas – contribuíram para a grande tragédia.
É natural e humano que o presidente Lula se comova diante das homenagens que vem recebendo, como chefe de Estado do Brasil, e que se esforce em mostrar suas realizações nestes últimos meses de governo. Como advertia Spinoza, quando tratamos das coisas humanas, não devemos delas rir, nem lamentá-las, menos ainda detestá-las, mas, sim, entendê-las. Lula tem viajado muito, dentro do Brasil e no exterior, e, graças a isso, o país vem recuperando sua estima interna e conquistou forte presença internacional . Ele iria a Davos, a fim de receber a homenagem de um forum dos ricos, antes de participar do Forum Sindical Mundial, de Porto Alegre, que representa outra visão de mundo. O convescote suíço parece deixar a arrogância antiga, com seu discurso amável, e isso se deve à emergência de países como o Brasil, sob o governo atual. É mesmo provável que a crise de hipertensão se deva à indecisão de sua alma em receber uma homenagem dos grandes do mundo.
A isso se acrescem as suas naturais preocupações com o processo sucessório. Ele pode prever a radicalização da campanha, nos próximos meses, se – e esse é um desejo dos insensatos – houver um confronto maniqueísta entre governo e oposição. O momento é incerto, até mesmo com relação às candidaturas. As próximas semanas, que nos separam das exigidas convenções partidárias, serão, em cada dia e em cada hora, mais difíceis. O temperamento e a história de Lula não lhe permitem ausentar-se do processo, como chefe de Estado imparcial. Seus compromissos de classe não lhe permitem essa ausência. Esse alheamento tampouco é da tradição do presidencialismo brasileiro. Por tudo isso, médicos como Adib Jatene e o ministro Temporão aconselham-no a reduzir o ritmo de trabalho, a poupar-se de tantas emoções.
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*Jornalista.
Fonte: Jornal do Brasil online, 28/01/2010

Charge do dia

Fonte: Jornal do Brasil online, 30/01/2010

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Em 'Caim', Saramago questiona as ações de Deus

Leandro Konder*

Como estão hoje as crenças dos crentes? E as descrenças dos descrentes?

Ideias nem sempre claras são defendidas por representantes das duas perspectivas, que constituem campos complexos, matizados. Em ambos os casos, as exigências de um aprofundamento do conhecimento abrangem polos que vão da fé inabalável ao mais arraigado ceticismo.

Impõe-se a pergunta: como se tocam os extremos? Em outros termos: em que pé as convicções apaixonadas de uns e outros conseguem dialogar? Essa é uma questão importante. Quando os interlocutores se defrontam com diferenças mais explosivas, aumentam as possibilidades de ossificação do pensamento. E cresce o risco do fanatismo.

Historicamente, a disputa não tem sido uma parada festiva: ações censuráveis foram cometidas por ambos os lados. Os crentes são a ampla maioria. Não gostam de perder tempo em debates inúteis. Vão direto ao ponto crucial, segundo a sua doutrina. “Você não acredita em Deus?”.

O ateu, em sua resposta, decepciona a maioria. No passado, no tempo da inquisição, a decepção virava feroz intolerância. Numa outra época, na União Soviética, os bolchevistas tentaram erradicar – em vão – o sentimento religioso da alma do povo. Eram ateus tentando impor o ateísmo por decreto.

Os dois lados fazem criticas ferinas um ao outro. E fazem autocríticas, reconhecendo seus limites. Atualmente, as condições, ao que parece, estão ficando mais civilizadas. E o primeiro nome que me ocorre para ilustrar essa sofisticação cultural é o do escritor português José Saramago.

Saramago recebeu o Prêmio Nobel em 1998, publicou Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis, O evangelho segundo Jesus Cristo e mais recentemente lançou Caim, que está causando polêmica.

Usando sua liberdade de criação, Saramago faz de Cristo o narrador dos acontecimentos de sua vida. Tínhamos quatro Evangelhos e agora, graças à ficção, temos cinco.

Mas a audácia do escritor não para aí: em Caim, o protagonista é narrador, com base em alguns episódios do Velho Testamento. Denuncia o senhor (assim mesmo, com minúscula), acusando-o de cumplicidade no assassinato de Abel, porque, sendo onisciente, sabia do que estava para acontecer e; sendo onipotente, poderia tê-lo impedido de acontecer.

Quando o senhor ordena que seu servo Abraão sacrifique seu dileto filho Isac, Caim se irrita com a crueldade do senhor e termina por insultá-lo, com palavras de baixo calão.

Saramago dá um show de erudição. Seus conhecimentos não o impedem de, em alguns momentos, exagerar um pouco. Talvez essa tenha lhe parecido ser a maneira de sacudir com suficiente vigor as almas de seus leitores.

Saramago é um ateu que pode proporcionar momentos privilegiados, os quais interessam às duas perspectivas. Suas possíveis consequências vão desde um reajuste das criticas que se fazem mutuamente, no campo do pensamento religioso, até uma reflexão mais densa e mais cuidadosa na qual os descrentes saibam evitar gestos e atitudes que sejam lidos como desrespeitosos.

Se não perdermos anos decisivos de nossas vidas, podemos prever que ocorrerão novos movimentos que mexerão conosco, serão capazes de nos convencer a adotarmos novos critérios.

Não resisto a apontar um palpite meu. Acho que a teologia tem sobre outros saberes uma vantagem considerável. A ideologia dominante, na época atual, assume a forma do relativismo, que exerce forte influência em várias regiões científicas. Muitos cientistas cultivam uma acentuada desconfiança na filosofia. E, recusando a dialética, cada um deles trata de relativizar os conhecimentos da sua área.

A teologia não se deixou levar por esse movimento. Seu nome indica que ela se ocupa de Deus. E é obvio que Deus – quer acreditemos n'Ele, quer sejamos céticos – não pode ser relativizado. A teologia, como mostra o nosso autor, é apaixonante, porque as questões que ela enfrenta são questões grandes, que não se deixam reduzir a um jogo mesquinho.

O marxista José Saramago sabe disso. Quando faz suas incursões na esfera da teologia, o ateu debocha, torna-se sarcástico. Mas deixa transparecer o quanto a estudou, o quanto assimilou dela.
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*Leandro Augusto Marques Coelho Konder (Petrópolis, 3 de janeiro de 1936) é um filósofo marxista brasileiroFonte: Jornal do Brasil online - 29/01/2010

Pensar o ser humano depois de Auschwitz

Leonardo Boff *
Recordamos neste ano os 65 anos do Holocausto de judeus perpetrado pelo nazismo de Hitler e de Himmler. É terrificante a inumanidade mostrada nos campos de extermínio, especialmente, em Auschwitz na Polônia. A questão chegou a abalar a fé de judeus e de cristãos que se perguntaram: como pensar Deus depois de Auschwitz? Até hoje, as respostas seja de Hans Jonas, do lado judeu; seja de J. B. Metz e de J. Moltmann, do lado cristão são insuficientes. A questão é ainda mais radical: Com pensar o ser humano depois de Auschwitz?

É certo que o inumando pertence ao humano. Mas quanto de inumanidade cabe dentro da humanidade? Houve um projeto concebido pensadamente e sem qualquer escrúpulo de redesenhar a humanidade. No comando devia estar a raça ariano-germânica, algumas seriam colocadas na segunda e na terceira categoria e outras, feitas escravas ou simplesmente exterminadas. Nas palavras de seu formulador, Himmler, em 4 de outubro de 1943: "Essa é uma página de fama de nossa história que se escreveu e que jamais se escreverá". O nacional-socialismo de Hitler tinha a clara consciência da inversão total dos valores. O que seria crime se transformou para ele em virtude e glória. Aqui se revelam traços do Apocalipse e do Anti-Cristo.

O livro mais perturbador que li em toda minha vida e que não acabo nunca de digerir se chama: "Comandante em Auschwitz: notas autobiográficas de Rudolf Höss" (1958). Durante os 10 meses em que ficou preso e interrogado pelas autoridades polonesas em Cracóvia, entre 1946-1947, e, finalmente, sentenciado à morte, Höss teve tempo de escrever com extrema exatidão e detalhes como enviou cerca de dois milhões de judeus às câmaras de gás. Ai se montou uma fábrica de produção diária de milhares de cadáveres que assustava aos próprios executores. Era a "banalidade da morte" de que falava Hannah Arendt.

Mas o que mais assusta é seu perfil humano. Não imaginemos que unia o extermínio em massa aos sentimentos de perversidade, sadismo diabólico e pura brutalidade. Ao contrário, era carinhoso com a mulher e filhos, consciencioso, amigo da natureza, enfim, um pequeno burguês normal. No final, antes de morrer, escreveu: "A opinião pública pode pensar que sou uma besta sedenta de sangue, um sádico perverso e um assassino de milhões. Mas ela nunca vai entender que esse comandante tinha um coração e que ele não era mau". Quanto mais inconsciente, mais perverso é o mal.

Eis o que é perturbador: como pode tanta inumanidade conviver com a humanidade? Não sei. Suspeito que aqui entra a força da ideologia e a total submissão ao chefe. A pessoa Höss se identificou com o comandante e o comandante com a pessoa. A pessoa era nazista no corpo e na alma e radicalmente fiel ao chefe. Recebeu a ordem do "Fuhrer" de exterminar os judeus, então não se deve sequer pensar: vamos exterminá-los (der Führer befiehl, wir folgen). Confessa que nunca se questionou porque "o chefe sempre tem razão". Uma leve dúvida era sentida como traição a Hitler.

Mas o mal também tem limites e Höss os sentiu em sua própria pele. Sempre resta algo de humanidade. Ele mesmo conta: duas crianças estavam mergulhadas em seu brinquedo. Sua mãe era empurrada para dentro da câmara de gás. As crianças foram forçadas a irem também. "O olhar suplicante da mãe pedindo misericórdia para aqueles inocentes" -comenta Höss-, nunca mais esquecerei". Fez um gesto brusco e os policiais os jogaram na câmara de gás. Mas confessa que muitos dos executores não aguentavam tanta inumanidade e se suicidavam. Ele ficava frio e cruel.

Estamos diante de um fundamentalismo extremo que se expressa por sistemas totalitários e de obediência cega, seja políticos, religiosos ou ideológicos. A consequência é a produção da morte dos outros.

Este risco nos cerca pois demo-nos hoje os meios de nos autodestruir, de desequilibrar o sistema Terra e de liquidar, em grande parte, a vida. Só potenciando o humano com aquilo que nos faz humanos como o amor e a compaixão podemos limitar a nossa inumanidade.
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* Teólogo, filósofo e escritor. Autor de Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito, Vozes (2009).
Fonte; Adital, 29/01/2010

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Erros colocam em xeque previsões catastróficas sobre o clima

Gerald Traufetter
Der Spiegel

Primeiro, foi uma série de e-mails que levou muitos a começarem a duvidar da veracidade dos cientistas climáticos. Depois, a própria entidade da ONU teve que mudar as previsões sombrias sobre o derretimento das geleiras do Himalaia. Outras alegações também levantaram dúvidas.
A geleira Siachen é lar de uma das maiores crises do mundo. Aqui, a 6 mil metros acima do nível do mar, soldados indianos e paquistaneses se enfrentam, protegidos em posições altamente armadas.
A disputa de fronteira em andamento entre as duas potências nucleares já custou as vidas de 4 mil homens –a maioria deles por exposição ao frio.
Agora a geleira do Himalaia também está no centro de uma disputa científica. Em seu atual relatório, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) prevê que a geleira, que tem 71 quilômetros de comprimento, poderia desaparecer até 2035. Ele também prevê que outras 45 mil geleiras na mais alta cadeia de montanhas do mundo virtualmente desaparecerão até lá, com consequências drásticas para bilhões de pessoas na Ásia, cuja vida dependa da água que se origina no Himalaia. O relatório do IPCC levou ativistas ambientais a soarem o alarme a respeito de um drama que pode estar se desdobrando no “terceiro pólo do mundo”.



“Este prognóstico é, é claro, uma completa tolice”, diz John Shroder, um geólogo e especialista em geleiras da Universidade do Nebraska, em Omaha. Os resultados de sua pesquisa dizem uma história completamente diferente.
Nas últimas três décadas, o glaciólogo americano tem percorrido as montanhas majestosas da região do Himalaia, particularmente a Cordilheira Karakorum, com seus instrumentos de medição. As descobertas que ele fez não são consistentes com a avaliação do IPCC. “Apesar de muitas geleiras estarem encolhendo, outras estão estáveis e algumas estão até mesmo crescendo”, diz Shroder.

Alegação indefensável

O erro em torno das geleiras do Himalaia provocou protestos no mundo da climatologia. Alguns já estão usando o termo “Glaciergate” em referência ao escândalo em torno da alegação cientificamente indefensável no quarto levantamento do IPCC, que a entidade da ONU para o clima publica a cada cinco anos. O quarto relatório de levantamento foi publicado originalmente em 2007. Na semana passada, o IPCC retirou a afirmação errônea e pediu desculpas pelo erro.

O ministro do Meio Ambiente alemão, Nobert Röttgen, um membro da União Democrática Cristã (CDU) de centro-direita, também está irritado com o incidente. “O erro no relatório do IPCC é sério e não deveria ter ocorrido”, disse Röttgen para a “Spiegel”. “A exatidão científica é uma condição vital para a credibilidade das conclusões políticas que chegamos como resultado.” Apesar do ministro ainda ter confiança na validade geral do relatório do IPCC, ele deseja ver “uma ampla investigação sobre como o erro se originou e foi comunicado”.
Mas por que essa alegação claramente equivocada não foi notada há muito tempo por pelo menos um dos 3 mil cientistas que contribuíram para o relatório do IPCC? “O que é realmente incrível é que esse erro permaneceu sem ser corrigido por muito tempo”, diz Shroder.
Errar é humano, dizem representantes do IPCC como Ottman Edenhofer, do Instituto para Pesquisa do Impacto Climático, em Potsdam. “Nós não deveríamos questionar a credibilidade de um relatório de quase 3 mil páginas por causa de um único erro.”
Mas outros climatólogos estão pedindo por consequências. Eles insistem que o presidente do IPCC e ganhador do Nobel, Rajendra Pachauri, não é mais aceitável como chefe do painel, particularmente devido ao seu envolvimento pessoal no assunto. “Pachauri deveria renunciar, para evitar maiores danos ao IPCC”, diz o climatólogo alemão Hans von Storch. “Ele usou o argumento da suposta ameaça à geleira do Himalaia em seus esforços especiais para arrecadação de fundos para pesquisa.” Storm alega que o cientista indiano não ordenou a retratação da previsão errônea até ela gerar uma considerável pressão pública.
‘O melhor da minha capacidade’

Pachauri, por sua vez, rejeita os pedidos para que renuncie. “Eu tenho um compromisso de concluir com sucesso o 5º Relatório de Levantamento, um compromisso que certamente não estou disposto a deixar de lado”, disse o presidente do IPCC.
O drama do prognóstico começou em 1999. A teoria do desaparecimento das geleiras do Himalaia até 2035 apareceu pela primeira vez em um artigo da popular revista britânica “New Scientist”, para o qual um glaciólogo indiano, Syed Hasnain, foi entrevistado.
Na verdade, a especificação do ano 2035 foi resultado de um erro simples. Em um artigo publicado três anos antes, o glaciólogo russo Vladimir Kotlyakov de fato previu um declínio imenso da área coberta pelas geleiras, mas não até o ano 2350. “Todos os procedimentos do IPCC de revisão por pares fracassaram”, diz o geógrafo canadense Graham Cogley.
Os laços do cientista indiano Hasnain com o presidente do IPCC provocaram uma crise de relações públicas. O glaciólogo agora trabalha no Instituto de Recursos e Energia (Teri) de Nova Déli, cujo diretor é ninguém menos que Rajendra Pachauri. Isso explicaria por que Pachauri ignorou o erro no trecho do relatório do IPCC sobre o Himalaia por tanto tempo?
A previsão errônea de um fim próximo para as geleiras do Himalaia já tinha sido revelada em novembro, quando um glaciólogo que trabalhava para o ministério do meio ambiente indiano apresentou um estudo sobre as geleiras do Himalaia que chegava a conclusões completamente diferentes do que as do relatório do IPCC. Mas Pachauri rejeitou o novo estudo como sendo “ciência vodu”.

Desleixo

Em meados de janeiro, a “New Scientist” confessou seu próprio desleixo, exatamente um dia após o presidente do IPCC, Pachauri, e seu especialista em geleiras, Hasnain, anunciarem um joint venture envolvendo o Teri, a Islândia e os Estados Unidos para estudar as geleiras do Himalaia, com US$ 500 mil em fundos da Fundação Carnegie, em Nova York. “Talvez Pachauri tenha hesitado em investigar o assunto por estar tentando proteger os projetos de pesquisa sendo conduzidos por seu próprio instituto”, diz o climatólogo Storch. Pachauri, entretanto, alega que estava simplesmente ocupado demais: “Todo mundo no IPCC estava terrivelmente preocupado com o planejamento para os vários eventos que ocorreriam em Copenhague”, ele disse, se referindo ao encontro de cúpula sobre a mudança climática realizado em dezembro na capital dinamarquesa.
A Toyota, a maior fabricante de automóveis do mundo, também contribuiu com US$ 80 mil para o Teri. Na semana passada, a empresa japonesa ganhou o “Prêmio Zayed de Energia do Futuro” no valor de US$ 1,5 milhão por seu carro híbrido Prius. Pachauri era o presidente do júri, mas ele explica que suspendeu temporariamente sua presidência por causa de suas atividades de consultoria. Todavia, ele conseguiu elogiar a Toyota na cerimônia de premiação em Abu Dhabi, dizendo que a empresa merece “o maior apreço” por promover uma mudança radical na tecnologia.
Infelizmente, as dúvidas a respeito do IPCC e seu presidente surgem em um momento em que a credibilidade dos climatólogos já está sofrendo, em parte em consequência do roubo de mensagens de e-mail confidenciais escritas por cientistas, cujo conteúdo levou os críticos a alegarem que os dados foram manipulados. Apesar de nenhum desses incidentes negar as evidências que apóiam a mudança climática, os fatos deixaram de ser o foco do debate rancoroso há muito tempo. Em vez disso, ele agora gira em torno do que cada um acredita.

‘Criticar está na moda’

“A confiança na autoridade da ciência da climatologia está atualmente minada na consciência pública”, diz Roger Pielke Jr., um economista social americano e especialista em desastres naturais. O economista ambiental Richard Tol concorda, dizendo: “Criticar a pesquisa do clima está na moda”. E a revista científica britânica “Nature” alerta que os climatólogos não podem mais presumir que evidências sólidas por si só convencerão o público.

Nova munição do escândalo do e-mail

Há anos, o especialista em malária Paul Reiter, do Instituto Pasteur em Paris, critica o alerta, como está presente no terceiro relatório do IPCC, de que a mudança climática levaria à disseminação da malária, dizendo que não há evidência que apoie a alegação. Reiter acusa muitos climatólogos de verem fortemente a si mesmos como ativistas, mais interessados em disseminar uma mensagem alarmista.
Os cientistas já sentem que a segunda parte do relatório do IPCC, que trata das consequências do aquecimento global, não é tão sólida quanto a primeira parte, que lida com os fatores físicos que contribuem para a mudança climática. Isso poderia, na verdade, explicar como o prognóstico errado sobre o Himalaia ingressou no relatório. O principal autor do relatório, Murari Lal, se defende dizendo que “o derretimento das geleiras é uma ameaça tão grande para tantas pessoas” que, por esse motivo, precisava ser incluído no relatório. Segundo Reiter, o pesquisador de malária, é precisamente essa paixão que é tão perigosa para a ciência.
Os e-mails que hackers roubaram da Unidade de Pesquisa Climática da Universidade de East Anglia, em novembro passado, e divulgados pela Internet também forneceram nova munição aos críticos. Uma troca de e-mails entre responsáveis por modelos climáticos, que ocorreu no último trimestre de 1999, sugere que os cientistas eram tendenciosos.

Gráfico anormal de temperatura

A conversa envolvia a validade de uma curva de temperatura controversa. O chamado gráfico de taco de hóquei visava provar que a média global das temperaturas nos últimos mil anos nunca foi tão alta quanto a atual. Para chegar aos dados, vários grupos de pesquisadores reconstruíram as temperaturas do passado, em grande parte com base nos dados dos anéis de troncos de árvores.
Mas um gráfico divergia acentuadamente dos demais, levando a uma controvérsia na conferência que se seguiu de paleoclimatólogos na Tanzânia, em setembro de 1999. O gráfico anormal de temperatura era “um problema e uma distração/detração potencial para o ponto de vista razoavelmente de consenso que queremos mostrar”, escreveu o paleoclimatólogo Michael Mann em um e-mail, acrescentando que não queria ser aquele a permitir “aos céticos... fazer a festa”. O principal autor do capítulo do IPCC, Chris Folland, escreveu em outro e-mail que os dados divergentes “diluem significativamente a mensagem”.
Keith Briffa, cuja equipe reconstruiu o gráfico de temperatura contraditório, ficou furioso e escreveu: “Eu sei que há pressão para apresentar uma história clara e satisfatória em relação ao ‘aquecimento aparentemente sem precedente em mil anos ou mais de dados’”.
Para o relatório do IPCC que foi escrito na época, os cientistas acabaram recorrendo a uma solução dissimulada de minimizar os dados por trás do gráfico de Briffa, que mostravam as temperaturas caindo desde os anos 60: o gráfico foi simplesmente cortado em 1960 no relatório do IPCC. “Este tipo de abordagem é considerada problemática na ciência”, disse o climatólogo Storch.
Passagens controversas

O gráfico incomum de temperatura em declínio de Briffa aponta para um sério enigma que ninguém ainda conseguiu explicar: desde os anos 60, os dados nos anéis das árvores não mais refletem as mudanças de temperatura de fato. Mas por que, então, os dados nos anéis de troncos de árvores seriam válidos para períodos anteriores?
Pelo menos o quarto relatório do IPCC, publicado em 2007, discute extensamente os problemas dos dados de anéis de troncos de árvores. Mas até mesmo o relatório atual, válido, contém passagens controversas.
O capítulo 1.3.8, por exemplo, contém uma discussão sobre uma possível relação entre a mudança climática e a maior incidência de desastres naturais, que, após o furacão Katrina nos Estados Unidos, se transformou em uma questão politicamente carregada.
No relatório do IPCC, os danos associados a esses eventos “apresentam grande probabilidade de aumentar devido a maior frequência e intensidade de eventos climáticos extremos”. O relatório cita como evidência um estudo que supostamente demonstra precisamente esta tendência.
O único problema é que o estudo em questão não foi submetido a revisão externa por pares antes do relatório do IPCC ser divulgado. Isso foi feito posteriormente e as conclusões são surpreendentes: “Nós encontramos evidência insuficiente para alegar um relacionamento estatístico entre o aumento global das temperaturas e perdas por catástrofes”, diz o relatório publicado no compêndio “Extremos do Clima e Sociedade”.
Roger Pielke, um importante especialista neste campo, escreveu em seu blog: “As alegações não eram apenas erradas. Elas eram baseadas em conhecimento que simplesmente não existia”.

Calculando o risco

Os representantes do setor de seguros têm um ponto de vista completamente diferente, o que representa um problema adicional para o IPCC. Resseguradoras, como a Munich Re, calculam seus seguros com base no risco, de forma que um aumento da frequência e severidade dos desastres naturais pode se transformar em lucros adicionais quando novas apólices são fechadas.
“Nós vemos, em nossos bancos de dados, evidência significativa de correlação entre a mudança climática e um aumento nos desastres naturais”, diz Ernst Rauch, diretor do “Centro Corporativo do Clima” da seguradora alemã Munich Re. Diferente dos cientistas, ele acrescenta, o setor de seguros não pode aguardar até todas as dúvidas serem superadas. “Nós somos um negócio que precisa agir agora”, diz Rauch. Ele também aponta que sua empresa está “extremamente satisfeita” com as conclusões do relatório do IPCC. Isso não causa surpresa: uma publicação de 2005 da Munich Re serviu como uma das fontes para as previsões de alerta do IPCC.
Os climatólogos agora estão pedindo reformas. Pielke, por exemplo, está preocupado com a forma como os autores e pares revisores trabalham, como são nomeados pelo IPCC e como a literatura que não passa por revistas científicas com revisão por pares está sendo usada, como no caso das geleiras do Himalaia.
Um dos problemas é que trabalhar para o IPCC é uma tarefa honorária para os cientistas e que consome tempo. “Isso significa que nem sempre são as melhores pessoas do campo que estão dispostas a contribuir com seu tempo e esforço”, diz Reiter, o epidemiologista.
Por outro lado, a comunidade às vezes reluta em incluir críticos problemáticos em seus esforços. Por exemplo, quando o IPCC montou recentemente um grupo especial de trabalho para tratar de desastres naturais, o governo americano indicou o ecologista Pielke. O IPCC se recusou a nomeá-lo.
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Tradução: George El Khouri Andolfato
Postado por Gerald Traufetter/Der Spiegel online, 28/01/2010