sábado, 19 de dezembro de 2009

O tcheco Karel Capek, em livro, parodia episódios míticos



 O Natal é triste? Se é, ao menos neste, há uma razão para alegria: as Histórias apócrifas escritas pelo autor tcheco Karel Capek. Lançado pela Editora 34, é um dos principais livros de 2009 justamente por questionar o senso comum, os preconceitos e o totalitarismo de afirmações como “o Natal é triste”. No melhor estilo das esquetes do grupo inglês Monthy Python – ou de Woody Allen, ou do americano S. J. Perelmam, ou do catalão Eduardo Mendoza – o evangelho segundo Capek pode render boas gargalhadas. Como teria sido o tribunal que condenou Prometeu por roubar o fogo dos deuses? Que resmungos trocaria um velho casal da Idade da Pedra lamentando a decadência das novas gerações e a falta de perspectiva da humanidade? Quais teriam sido os comentários maldosos que corriam entre os soldados gregos no cerco de Troia? O que um esforçado padeiro de Jerusalém diria sobre Cristo e seu milagre dos pães? Por que Lázaro sofre com inestancáveis acessos de tosse? Sabe qual foi a última estripulia de Maria Madalena?





Karel Capek é o principal escritor tcheco da primeira metade do século 20. E Kafka? – você vai perguntar. Embora tenha nascido em Praga e nela se inspirado, Kafka escreveu em alemão (assim com o tcheco-austríaco Rainer Maria Rilke). Milan Kundera (que talvez seja mais francês) e Václav Havel (mais identificado com a Revolução de Veludo) surgiram bem depois. O poeta Jaroslav Seifert, Prêmio Nobel em 1984, continua sendo mais um dos mistérios da Academia Sueca.
A obra de Karel Capek (segundo Ruy Castro, que sabe tudo da língua tcheca, pronuncia-se kárel tchá-pek) tem mais pontos de contato com a de Jaroslav Hasek, um escritor tipo vagabundo, autor de O bom soldado Svejk, que morreu quando parou de beber. O que unia os dois (e, de certa forma, também Kafka) era o humor trágico.
Mas Capek – nascido em 1890 na Boemia, então parte do Império Austro-Húngaro – ficou conhecido no mundo inteiro por outro motivo: ter sido o inventor da palavra robot. A história é mais ou menos conhecida: em 1920, foi levada à cena a peça R.U.R (Russum Universal Robots) (robôs universais de Rossum) em que aparece pela primeira vez o neologismo futurista (de robota, trabalho), na verdade criado pelo irmão de Karel, Josef.
A peça conta a história de uma civilização tão avançada que prescindia completamente do esforço humano, físico ou mental. O trabalho era feito por um exército de autômatos que, como sói acontecer, se revolta e resolve exterminar a raça humana.
OK, você já viu esse filme. E fica fácil de estender por que Capek, com suas sombrias e distópicas profecias, tornou-se uma referência na chamada literatura de antecipação – o melhor subgênero da ficção científica – que conta com seguidores do porte de Aldous Huxley, George Orwell, Philip K. Dick, Kurt Vonnegut, J. G. Ballard.
Hoje, quando o fascínio pelos robôs decaiu, distópico mesmo é o nome de Karel Capek ter virado marca de produtos – latinhas de chá, xícaras, material de papelaria ilustrados com desenhos fofos e retrôs. Onde mais? No Japão, lógico.

Questões morais

Mesmo tendo dado pano para muita manga e frescura, R.U.Rão é o melhor de Karel Capek. Além de livros de sátira tanto ao comunismo messiânico quanto ao consumismo capitalista, na década de 30 publicou romances – Hordural, Povetron e Obycejny zivot – que formam uma trilogia sobre questões morais do homem contemporâneo. Com a crescente ameaça da Alemanha nazista sobre a Tchecoslováquia, suas obras passam a ser mais explícitas na defesa da democracia. É dessa época os dramas Bilá nemoc e Matka, e aquela que é considerada sua obra-prima, Válka s mloky (A guerra das salamandras), de 1936.
Dez anos antes, um explorador havia descoberto na Ilha de Comodo uma raça estranha de lagartos. É daí que Capek parte, pondo em destaque um velho capitão, Van Toch, que iniciou com certas salamandras de Sumatra um próspero comércio: em troca de pérolas colhidas por elas, fornece-lhes facas para que se defendam dos tubarões. Já viu, não é? Na hora da guerra, some parte da Europa, China e Rússia; o Brasil afunda inteiro. Mas não é só a história: é a maneira de narrá-la: recheio de tratados biológicos, recortes de jornais, notas de pé de página que remetem a livros inexistentes e ao próprio A guerra das salamandras. A última edição em português do livro, dos anos 80, está fora de catálogo.
Ainda bem que temos esta de agora das Histórias apócrifas. Nos 29 textos que compõem a coletânea - elaborados no período entre as duas guerras mundiais e publicados no jornal Lidové Noviny (O Jornal do Povo) – o escritor vai da paródia burguesa à parábola alegórica. Difícil é destacar qualquer um deles, ou um dos episódios históricos, míticos e literários que são satirizados.
O certo é que ninguém definiu a Guerra de Troia ou Helena nos termos que fez o soldado raso Tersites: “É uma rameira de marca. Eu não daria por ela nem um prato de feijão. Sabeis, rapazes, que é que eu desejo para o tonto do Menelau? Que ganhemos essa guerra de uma vez para que ele receba a mulher de volta. A beleza de Helena não passa de lenda, impostura e um pouco de pó de arroz. (...) Nós, gregos, lutamos, primeiro, para que a raposa velha do Agamêmnon possa encher as burras com nosso butim; segundo, para que o janotinha do Aquiles possa saciar sua imensa sede de glória; terceiro, para que o vigarista do Odisseu possa nos escorchar fornecendo o armamento; por fim, lutamos para que um bardo vulgar e corrupto, o tal de Homero, ou lá como se chame, possa glorificar, por uns trocados sujos, os maiores traidores da nação grega”.
Karel Capek morreu em 1938. Em um 25 de dezembro. Aquele, sim, foi um Natal triste.

Fonte: Jornal do Brasil - Reportagem de Alvaro Costa e Silva - 18/12/2009

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