domingo, 27 de dezembro de 2009

Morte e poesia

Rubem Alves*

Um dos poemas mais bonitos da língua portuguesa é a Elegia que a Cecília Meireles escreveu para sua avó morta, Jacinta Garcia Benevides. Não sei quantas vezes o li. Não sei quantas vezes o lerei. Ele começa assim: “Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos. Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído. No dia seguinte estavas imóvel, modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos... Neste mês, as cigarras cantam e os trovões caminham por cima da terra, agarrados ao sol. Mas tudo é inútil, porque estás encostada à terra fresca e as tuas mãos não se arredondam já para a colheita e nem para a carícia...”
Eu quero ser cremado. A razão pode ser tola. Mas é que tenho claustrofobia. Sei que estarei morto naquele momento, mas não estou morto neste momento em que me imagino fechado no escuro. Neruda disse que os poetas são feitos de fogo e fumaça. Cremado, nada poderá me prender. Eu me transformarei em fogo e fumaça e subirei na direção dos céus. Por outro lado é preciso não se esquecer da pergunta de T.S. Eliot: “E o cadáver que você plantou no seu jardim, já começou a brotar? Pode ser que cada sepultura seja um jardim! Penso, então em combinar a terra, o fogo e a fumaça. Cremado me transformarei em cinza que será colocada ao pé de um caquizeiro que produzirá caquis vermelhos...
Na minha opinião a Elegia deveria ter sido lida inteira juntamente com os textos sagrados do cerimonial do sepultamento da “Vozinha” nos seus 97 anos! Seu corpo ficaria mais leve. O corpo da Vozinha já estava leve e branco como as nuvens – bastaria uma brisa para levá-lo.
O seu nome era Alice. Foi um longo tempo de espera. Há sementes que demoram muito a brotar. Não sabíamos onde ela estava. Sim, nós a víamos na cama. Mas será que ela estava mesmo na cama? Aquela proximidade visível escondia uma distância invisível que não podia ser medida. Estaria andando por lugares que não conseguíamos ver? O seu silêncio impenetrável nada dizia sobre o mistério. O que a Cecília disse de sua avó também poderia ser dito dela: “Tudo em ti era uma ausência que se demorava: uma despedida pronta a cumprir-se...” Aquele corpo transparente era a presença de uma ausência. Uma despedida pronta a cumprir-se? Alguns de nós suspeitávamos, ao contrário do que disse a Cecília, que aquela era uma despedida que não queria cumprir-se. Queria adiar... Porque ela amava muito a vida.
Era uma linda mulher quando jovem. Mas o tempo passou, o horizonte se aproximou, e a sua sensibilidade se tornou mais intensa. Apaixonada por flores, entregava seus olhos aos ipês, aos flamboyants, às paineiras, às sibipirunas. Amava as gloxínias e dizia em alemão, a primeira língua que aprendeu:
“Die Welt ist so schon! Aber Ich muss scheiden…”
O mundo é tão bonito. Mas eu tenho de partir...
Amava os cães, seus companheiros de vida inteira.
Seus olhos brilhavam quando aparecia a jarrinha de caipirinha bem doce...
Melado com farinha de milho — coisa que só gente da roça e que viveu em fazenda aprecia.
Olhava e só de olhar ela dizia: Que gostoso...
Mas todo velório tem dois lados.
O primeiro lado é esse, formado pelos que contemplam o morto, sentem saudades e choram. O segundo lado somos nós que olhamos uns para os outros e nos perguntamos... “A minha morte, até onde ela terá entrado?
Paul Tillich em um dos seus sermões contou a seguinte história: “Nos julgamentos por crimes de guerra em Nuremberg compareceu uma testemunha que havia vivido por um tempo num túmulo num cemitério judaico. Era o único lugar onde ele e muitos outros podiam viver, escondidos, depois de haverem escapado das câmaras de gás. Durante esse tempo ele escreveu poesia, e um dos seus poemas era a descrição de um nascimento. Numa sepultura próxima uma jovem mulher deu à luz um menino. O coveiro, de oitenta anos, envolto num lençol de linho, foi o parteiro. Quando o menininho recém-nascido deu o seu primeiro grito, o velho homem orou: “Grande Deus, será que Tu finalmente nos enviaste o Messias? Pois quem, além do Messias, poderia nascer numa sepultura?”
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, Campinas, 27/12/2009

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