terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A loucura nossa de cada dia

SAMANTA SALLUM*


Divina, maldita, combustível da sobrevivência, inspiradora, destruidora e acolhedora. O humano não é humano sem a dose da loucura. Não és louco, então és robô. Não escrevo sobre a loucura patológica, diagnosticada por psiquiatras. Mas a que explica tantas ações dos homens, das mais belas às mais repulsivas. No momento em que vivemos, quando os conceitos de certo e errado na nossa sociedade se alternam conforme a conveniência de seus protagonistas, me vem à cabeça a abordagem da loucura em três clássicos da literatura.

Cervantes, em Dom Quixote de La Mancha, nos conta a história de um louco apegado a valores como dignidade, decência e nobreza de caráter do cavaleiro medieval. Quantos de nós somos ridicularizados e chamados de Dom Quixote ao acreditar que existe algum político honesto? Na vida como ela é, há espaço para acreditarmos em sociedades mais justas? Ora, acreditar no certo é ser ingênuo. Quantas vezes nos fazem sentir-nos loucos por acharmos algo errado, mas que é tão praticado que se torna normal?
Lembremos o dr. Simão Bacamarte, em O alienista, de Machado de Assis, que na sua insanidade de procurar insanos conclui que os justos e os honestos são loucos e devem ser internados. Mas a insanidade a ser combatida é a que se instala na hipocrisia do ser humano que só se preocupa com o próprio prestígio.

Já na contagem regressiva para o fim do ano, vale buscar aquela deusa que Erasmo de Rotterdam nos apresenta em Elogio da loucura (1509). Ela fala em primeira pessoa no livro, defendendo sua imagem e ponto de vista. Mostra quão presente e importante é, conduzindo as ações humanas. A loucura está nos costumes e atos como o casamento e a guerra. Forma cidades, mantém os governos.

O autor faz uma crítica incisiva e irônica à sociedade e principalmente à Igreja de sua época por meio do discurso da loucura. Mas fico com aquela que ele mesmo discorrre, a que está na alegria da infância. E que, quando buscada em pitadas na vida adulta, afasta a velhice da alma. Com a loucura da esperança, aquela inofensiva que nos ajudar a tornar a vida um pouco mais agradável. Que ela esteja presente entre nós em 2010. Feliz ano-novo.

*Postado Correio Braziliense, 29/12/2009

samantasallum.df@dabr.com.br

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