domingo, 29 de novembro de 2009

Brinquedos pedagógicos

Rubem Alves*

Mania minha: olhar para as coisas e imaginar os usos pedagógicos que os objetos possam ter. Tudo pode ser usado como material didático, se os olhos forem inteligentes. Pois passando diante de uma porta onde estava escrito W.C., imaginei que aquela porta e todas as outras semelhantes poderiam sem despesa alguma ser transformadas em material didático. Saiu-me então o texto “A função cultural das privadas”. Como educador pensei: E se as empresas e escolas passarem a colocar, semanalmente, nas portas diante dos tronos, trechos literários curtos, para serem lidos pelos intelectuais assentados? Os resultados poderiam surpreender! Muitas experiências de iluminação científica surgiram em momentos de solidão meditativa... As empresas especializadas no assunto se dedicam normalmente à maciez e ao perfume do papel. Pois numa casa elegante nos Estados Unidos que me recebeu como hóspede surpreendi-me ao perceber que em cada folha de papel higiênico estava impresso um aforismo filosófico. Todos os que saiam do W.C. saiam mais cultos e espiritualizados... Ao final do ano os aforismos todos poderiam ser transformados num livrinho que seria distribuído por funcionários e clientes. Seria uma empresa inesquecível...

“Em tempos difíceis em algumas pessoas crescem asas; outras, entretanto, preferem comprar muletas.”

Quando vivi nos Estados Unidos me informaram de uma revista científica que só publicava palpites científicos ainda não testados por pesquisas. Muito embora haja cientistas que acreditam que a ciência seja construída com “certezas”, o fato é que, como Popper e Kuhn demonstraram, a ciência é construída com “palpites” ainda não comprovados por meio de pesquisas. O cientista é, sempre, um desconfiado... A diferença entre artigos já provados e palpites é simples. Artigos já provados enunciam conclusões, chegadas, descansos, põem a inteligência a dormir. Palpites, ao contrario, anunciam partidas, caminhadas, canseira, incertezas... Mas isso que disse sobre a ciência vale também para as conversas do dia a dia. O caminho das dúvidas e das incertezas é o caminho das viagens por cenários desconhecidos. O caminho das certezas é o caminho das repetições e mesmices.

Nietzsche descreveu por meio de uma metáfora essas duas inteligências, a que anda sobre certezas e a que salta sobre o vazio. “Sobre leves esteios, a inteligência que se lança sobre o abismo salta para diante: a esperança e o pressentimento põem asas em seus pés. Pesadamente o entendimento calculador arqueja em seu encalço e busca esteios melhores para também alcançar aquele alvo sedutor ao qual sua companheira mais divina já chegou. Dir-se-ia ver dois andarilhos diante de um regato selvagem, que corre rodopiando pedras; o primeiro, com pés ligeiros, salta sobre ele, usando as pedras e apoiando-se nelas para lançar-se mais adiante, ainda que, atrás dele, afundem bruscamente nas profundezas. O outro, a todo instante, detém-se desamparado, precisa antes construir fundamentos que sustentem seu passo pesado e cauteloso; por vezes isso não dá resultado e, então, não há deus que possa auxiliá-lo a transpor o regato.” (Os Pré-Socráticos, coleção Os Pensadores, vol. I, 16-17)

Jay W. Forrester, professor de administração do MIT, enunciou a seguinte lei das organizações: “Em situações complicadas esforços para melhorar as coisas frequentemente tendem a torná-las piores, algumas vezes muito piores e, ocasionalmente, calamitosas.” Essa mesma lei foi enunciada há quase 2 mil anos de forma mais simples e poética que todos podem compreender: “Não se costura remendo de tecido novo em roupa podre. Porque o remendo de tecido novo rasga o tecido podre e o buraco fica maior do que antes” (Jesus).

O livro sagrado do Taoísmo, o Tao-Te-Ching, diz que estamos constantemente divididos: de um lado, a tentação de 10 mil coisas que demandam a nossa ação. Todas elas não essenciais. Do outro lado está uma única coisa: essencial... Sabedoria é deixar o sufoco das 10 mil coisas não essenciais e focalizar os olhos na única coisa que é essencial.

“Paraíso” — jardim — é uma palavra que se deriva do grego “paradeisos” que, por sua vez, vem do antigo pérsico “pairidaeza”, que quer dizer “espaço fechado”. Jardim é um espaço fechado. Por que fechado? Para ser protegido. Para que seja nosso. Fora dos muros que fecham o jardim está o espaço selvagem, ainda não moldado pelo desejo de vida e beleza que mora nos seres humanos. Política é a arte de criar esse espaço. Política é a arte da jardinagem aplicada ao espaço público. Deixando de lado as 10.000 coisas a serem feitas, digo que a missão das prefeitas e dos prefeitos é criar esse espaço necessário para que a vida e a convivência humana possam acontecer. Tudo o mais é acessório. Não entenderam? Explico. Mas importante que cem fechaduras que fecham é uma única chave que abre...

Vejo frequentemente colados em para-choques de carros o seguinte conselho filosófico: “Você tem direitos; procure sempre um advogado”. Permito-me acrescentar a minha contribuição: “Você tem avessos; procure sempre um psicanalista...”

*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
FONTE: Correio Popular, Campinas, 29/11/2009

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