sábado, 31 de outubro de 2009

O sentido da morte

Dom Eugenio Sales*



Cada túmulo é um monumento que perpetua neste mundo as interrogações profundas do coração: por que viver? Por que morrer? Será que a dor dessa separação é o sentido último da existência humana? Nos dias atuais, cada vez se conhecem mais os segredos da psique, embora aumente a ausência, em nosso íntimo, da serenidade e da paz. Cresce a competência da medicina.

Todavia, tomam dimensões assustadoras os problemas da velhice desamparada pela própria família. O amor conjugal procurou emanciparse: recusa a tutela da sociedade, da moral e, em consequência, decresce o número de matrimônios felizes. Busca-se avidamente a harmonia onde não pode ser obtida.

Essa frustração no amor parece ser uma chaga que nos aflige.

A sociedade moderna torna-se um corpo doente, assistida por remédios sem número e aparelhagens sofisticadas. Ao curar-se um mal surgem novas mazelas.

Aspira-se à vida onde ela não se encontra, pois a ânsia dos prazeres que entorpecem as consciências nos conduz à morte. Tal explicação deriva do fato de o homem possuir uma dimensão transcendental.

Desprezando-a, jamais se realizará plenamente.

O Dia de Finados coloca diante de nós, no íntimo de cada um, essa angústia: a interrogação sobre o Além.

Um verdadeiro grito de alerta que favorece a salvação e soluciona dificuldades pela garantia de uma perspectiva perceptível pelos sentidos.

No Antigo Testamento não temos uma resposta cabal. A luta contra os cultos pagãos, que transformavam os defuntos em verdadeiros deuses, exigia medidas profiláticas em favor do povo eleito: “Só Eu sou o Senhor” (Lv 19,28; 20, 6.27). “Vós sois os filhos do Senhor, vosso Deus; por isso, não presteis culto aos mortos” (Dt 14,1). Assim, inculcavam que estes não são divindades, mas, em suas cinzas, seres como nós.

Nos textos sagrados antes de Cristo, a morte conservava sua força como penalidade pela desobediência dos primeiros pais.

Os portais da Eternidade permaneciam impenetráveis. Geme o grande profeta Isaías (38, 10-12): “É necessário, pois, que eu me vá no apogeu de minha vida. Serei encerrado por detrás das portas da habitação dos mortos (...). Não verei mais o Senhor na terra dos viventes, não verei mais a luz (...).

Arrancam as estacas de meu abrigo, arrebentam-no como uma tenda de pastores”.

Somente com o fulgor da Ressurreição foram vencidas as trevas que envolviam a condição do homem após a morte. O acontecimento revelou o poder sobre o que destruía o corpo. Por isso, São Paulo, convertido, proclama que o Salvador resgatou o véu misterioso da morte, perdoou o pecado, apagou a culpa, reconciliou a criatura com o Criador.

Assim, destruída a causa dos males, desapareceu o castigo na dimensão de permanência, restando apenas algo de transitório. Ainda devemos passar pelo túmulo, como o Mestre; mas o que se lhe segue deixou de ter o estigma da tristeza, para se transformar em esperança.

Essa profunda metamorfose surge de um fato: “Eu vivo, e vós vivereis” (Jo 14,19). Sua vitória é nosso triunfo.

No meio das dores dos que choram seus entes queridos, repitamos com o Apóstolo: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? A morte foi tragada pela vida” (1Cor 15,55).

Desse ensinamento de fé cristã brotam valiosas consequências.

A primeira delas é a esperança que envolve a saudade ao visitar os túmulos de nossos entes queridos. A luz da vela acesa nos recorda o fulgor de Cristo que ressuscitou e o fará a todos que são batizados na sua morte. Eles o acompanham, vitoriosos, na sobrevivência eterna. A firme convicção da Palavra de Deus é o sólido fundamento dessa confiança.

A outra é a admoestação que todo cemitério nos sugere. As sepulturas nos falam de nosso amanhã: lá estaremos também. Entretanto, só “quem não ama permanece na morte” (Jo 3,14). Assim, a Ressurreição do Senhor produzirá em nós seus frutos na medida em que na vida praticamos as obras do Redentor: a justiça, a bondade e o perdão. Toda uma existência seguindo o Evangelho nos abre uma maior possibilidade de participação na glória eterna. As renúncias são pedidas, mas os sacrifícios dessas exigências desaparecem diante da perspectiva futura.

A última reflexão no Dia de Finados é relativa à nossa maior aproximação com os que nos precederam na glória eterna. Eles usufruem da alegria do Paraíso. Então, estaremos mais unidos aos nossos entes queridos à medida que nossos corações permanecem junto ao Senhor.

A oração é o momento de nos encontrarmos diante da face de Deus e com aqueles que hoje já participam da vitória de Cristo.

Assim o Dia de Finados continua envolto em saudade provocada pela ausência física dos que amamos e já se foram. E, no entanto, é também uma ocasião de louvores: “Graças sejam dadas a Deus, que nos dá a vitória eterna, por nosso Senhor Jesus Cristo” (1Cor 15,27).

Somente os que creem na Palavra de Deus recebem a graça transformadora. Ela converte a dor na esperança e substitui por uma presença o vazio deixado pelos que nos antecederam na casa do Pai.

Estaremos mais unidos a nossos mortos à medida que nos juntamos ao Senhor
*Arcebispo emérito do Rio de Janeiro.
Jornal do Brasil - Sábado, 31 de Outubro de 2009

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