quinta-feira, 22 de outubro de 2009

João e os pés de feijão

Eduardo de Almeida*Ando fazendo coisas bastante esquisitas na Universidade de São Paulo. Algumas semanas atrás, por exemplo, fui incumbido de plantar três feijões em algodão umedecido e registrar seu crescimento com desenhos e notas. Não, não me enganei de classe, não assisti à aula do primário. A tarefa era puramente científica. Meus objetos de estudo não seriam apenas os feijões — eu também deveria me colocar do lado de lá da prancheta, observando, uma vez por semana, meu próprio jeito de observar. Esquisito, eu disse. Mas pouquíssimas pessoas têm consciência da força que as coisas exercem sobre nós.
Ao propor uma leitura psicanalítica das obras de arte, o professor João Augusto Frayze-Pereira diz que “pensar psicanaliticamente implica escutar”, ou seja, abrir-se para o mundo e prestar atenção no que ele nos diz. O mesmo pode ser visto no romance Sidarta, de Hermann Hesse, em que o barqueiro Vasudeva sugere ao ex-monge que escute os ensinamentos do rio. “Sem cessar, Sidarta aprendia dele. Antes de mais nada, aperfeiçoava-se na arte de escutar, de prestar atenção, com o coração quieto, com a alma receptiva, aberta, sem paixão, sem desejo, sem preconceito, sem opinião.”
Nesse sentido, meu experimento com os feijões revelou coisas interessantíssimas, entre as quais gostaria de destacar a dificuldade de separar o lado humano do científico. Ou, em outras palavras, a emoção da razão. Pois, no começo, tentei ser o mais técnico possível, registrando a incidência da luz, o formato dos utensílios etc. Com o tempo, no entanto, meu vínculo com a plantinha se fortaleceu, e os relatos foram ficando cada vez mais emotivos. Vê-la se desenvolver, criar raízes, abrir-se em duas metades e revelar folhinhas verde-escuras foi um pouco como criar um filho, guardadas as proporções. Fiquei angustiado com a demora do primeiro broto, que levou dias para aparecer; depois, me realizei ao ver o caule se elevando acima da borda do copo. No final, não apenas a replantei em um vaso maior, como acabei comprando outras para lhe fazerem companhia. Sabe quem foi o responsável por essa mudança em minha percepção? O tempo.
Isso não é novidade. O grande escritor Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), ícone do Romantismo alemão e autor dos famosos O sofrimento do jovem Werther e Fausto, era também cientista, embora pouca gente conheça — e reconheça — essa sua faceta. Ao longo da vida, Goethe estudou diversos assuntos, tais como a luz e os fenômenos óticos, chegando a propor uma nova teoria das cores, em oposição à de Newton. Mas, veja só, foi estudando plantas que ele chegou a uma das suas conclusões mais importantes: a de que o tempo é um elemento primordial na busca do conhecimento. Segundo Goethe, só é possível chegar à verdade científica por meio de uma profunda observação da natureza, livre de preconceitos e ao longo do tempo. Isso porque, para compreender a essência do ser, precisamos analisar seu processo de formação.
O pintor modernista Henri Matisse (1869-1954) chegou a conclusões semelhantes ao refletir sobre a arte. Segundo ele, para superar a simples imitação da natureza e chegar a uma linguagem pessoal, o pintor deveria desenvolver uma relação profunda com os objetos que pretende representar, observando-os atentamente, fazendo com que lhe revelem sua essência. Essa percepção jamais seria imediata. Tal como pensava Goethe, ela seria obtida apenas através do tempo. Só assim Matisse conseguia incutir seu sentimento na pintura, o que acreditava ser indispensável.
Matisse também disse outra coisa interessante, dessa vez a respeito das composições pictóricas. Para ele, um simples ponto de tinta, quando acrescentado a uma tela, modifica todo o resto que já estava lá, pois eles passam a se relacionar imediatamente. Por isso, apenas o essencial deveria constar numa pintura — todo o excesso é desprezível.
Se traçarmos um paralelo entre essas ideias e o nosso cotidiano, perceberemos que todos os objetos ao redor nos influenciam, relacionando-se conosco e modificando nossas vidas à sua maneira. Quais deles são realmente essenciais? Quais são excesso e atrapalham a percepção da realidade?
O professor João Frayze afirma que a junção da psicologia com a arte ajuda a compreender melhor o ser humano, “num certo momento de sua história e em determinado círculo de civilização”. Ambas nos propõem reflexões, colaboram para tornar nossas ações mais conscientes e rendem um conhecimento mais profundo. O outro João, dos contos de fadas, me lembrou que coisas simples como pés de feijão podem nos levar às alturas, permitindo observar a vida por outro ponto-de-vista. Tudo através dos nossos sentidos e das relações com o mundo que eles nos proporcionam. Com o tempo, nossa sensibilidade cresce e passamos a nos sentir parte de algo muito maior: a natureza. Pois é, como pude verificar, os feijões são mesmo mágicos. Basta a gente olhar bem de perto, com o cérebro e o coração.
*Eduardo de Almeida é publicitário e historiador da arte.
Blog: www.eduardoaadealmeida.blogspot.com - Correio Popular, 22/10/2009

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