quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Um problema resistente

ENSINO: Segundo a educadora Maria Clara Di Pierro,
vencer o analfabetismo
demanda tempo e políticas contínuas.



A TAXA de analfabetismo caiu de 9,9% para 9,8% na comparação entre 2007 e 2008. Além do recuo de apenas 0,1%, o número absoluto de analfabetos adultos no Brasil, no mesmo período, aumentou de 14,136 milhões para 14,247 milhões. Os dados foram revelados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), estudo anual do IBGE, e mostram que campanhas e programas para reduzir o analfabetismo adulto pouco agregam. Segundo dados da Unesco, referentes à América do Sul, o Brasil só não está pior do que a Bolívia. Entre as razões desse atraso, segundo a professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Maria Clara Di Pierro estão a escassez de oportunidades de continuidade de estudos para os egressos dos programas de alfabetização. Nessa entrevista, Maria Clara, pesquisadora das políticas públicas da Educação de Jovens Adultos (EJA) no Brasil e na América Latina, explica a mudança de perfil dos alunos e critica o caráter precário e limitado dos programas atuais.

Carta Capital: Apesar da expansão do acesso à escola, a taxa de analfabetismo no Brasil continua alta. Por que a educação de jovens e adultos não resulta de um melhor grau de alfabetização?
Maria Clara Di Pierro: A taxa de analfabetismo não está relacionada apenas ao desempenho dos programas de educação de adultos, mas também ao acesso à educação de adultos, mas também ao acesso à educação básica, à evolução da alfabetização na infância e adolescência. Quando falamos da diminuição de 2 milhões de analfabetos ao longo desta década, não significa necessariamente que alfabetizamos 2 milhões de adultos. Provavelmente, a mortalidade retirou da população de idosos analfabetos e entraram, na faixa de 15 anos ou mais, jovens que foram alfabetizados. O lento recuo do analfabetismo reflete o fraco desempenho do sistema educacional como um todo, desde a infância até a vida adulta.

CC: Hoje, qual o perfil do aluno da educação de jovens e adultos?
MC: Existem as pessoas que nunca foram à escola, mas elas são minoria. A grande parte dos alunos passou pela escola, mas teve uma passagem breve, com poucas aprendizagens relevantes.

CC: O fracasso dos jovens no ensino formal os levou para a EJA?
MC: No passado, quando havia um contingente alto de população da zona rural chegando às cidades, essa modalidade proporcionava o acesso à educação aos que nunca tiveram oportunidade. Nos últimos 30 anos, prevaleceu a obrigação de aceleração de estudos para jovens com defasagem na relação idade/série. Temos hoje uma população que foi fruto de processo de exclusão escolar: ensino de má qualidade, repetição, evasão, ingresso precoce no mundo do trabalho.

CC: Segundo o Inep, apenas 2% das instituições que oferecem o curso de Pedagogia têm habilitação para a educação de adultos. Por que não há uma preparação formal e uma especialização na área?
MC: Como educação de adultos não configurou uma política prioritária, sendo freqüente a descontinuidade dos programas, esse campo não conformou uma mercado de trabalho atrativo para a docência. A atual norma da pedagogia eliminou as antigas habilitações. Quando existiam, a procura era baixa, pois o estudante não tinha segurança de que teria mercado. Não se incentivou o viés da especialização e não houve políticas públicas para incorporar a modalidade ao currículo.

CC: A Educação de Jovens e Adultos não é pensada como uma política continuada?
MC: Tem-se uma fantasia de que é algo temporário, que basta um esforço concentrado e, em pouco tempo, o problema está superado. Só que desde os anos 40 fazemos isso. As primeiras campanhas de alfabetização foram instituídas no fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação da Unesco. Era uma estratégia global. O Brasil tinha mais da metade da população de analfabetos. É com essa marca de mobilização e urgência que a política de Educação de Jovens e Adultos aparece e se desenvolve, sempre com uma certa precariedade e com uma oferta de oportunidades escolares breves. Os resultados são escassos, porque a capacidade de mobilizar vai diminuindo e a regressão ao analfabetismo é muito alta.

CC: Os dados do Censo mostram uma pequena diminuição no número de matrículas no Ensino Fundamental. O que isso representa?
MC: Essa é uma questão que ainda não sabemos responder. Temos duas hipóteses: a inadequação do ensino oferecido aos jovens e adultos, que não estimula sua permanência, e a falta de incentivos para que os estados e municípios ampliem a oferta. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef) que vigorou de 1996 a 2006 não permitiu a inclusão de matrículas de jovens e adultos. A inclusão da modalidade no atual Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) não conseguiu trazer o efeito positivo que se esperava. A EJA entrou numa posição desvantajosa: o gasto não pode exceder 15% do fundo. Só em 2009 que 100% das matrículas puderam entrar. O custo-aluno é retribuído pelo menor fator: 80% do que receberia um aluno do ensino regular.

CC: Houve um esforço maior, mas ainda insuficiente?
MC: O governo Lula conferiu maior atenção à alfabetização de jovens e adultos, mas o declínio do analfabetismo não teve nenhuma inflexão. Isso é uma evidência de que campanha com esse modelo do Brasil Alfabetizado, desenvolvidas num período muito breve, com professor pouco qualificado, não funciona. Desde 2003 são inseridos de 1 a 2 milhões de pessoas, por ano, no Brasil Alfabetizado. Se o programa tivesse tido sucesso, teríamos 12 milhões a menos de analfabetos.

CC: E nos ensinos municipal e estadual?
MC: A oferta tem um sério problema de adequação pedagógica e organizacional. O modelo tende a reproduzir a educação de crianças e adolescentes. Falta flexibilidade.

CC: A maioria dos analfabetos é constituída por nordestinos, negros e pessoas de baixa renda. As políticas públicas de alfabetização estão isoladas?
MC: O analfabetismo tem uma simetria muito grande com os processos de exclusão socioeconômica. Como a pobreza está concentrada na zona rural, no Norte e Nordeste, nas populações afrodescendentes, a distribuição do analfabetismo é recortada por esses mesmos indicadores. E, no passado, pela questão de gêneros. Hoje, temos mais mulheres analfabetas nas populações mais velhas. Nos grupos de idade mais jovem, é o contrário. As mulheres estão tendo mais êxito.

CC: Como estamos em relação aos nossos vizinhos da América Latina?
MC: O Brasil, em termos absolutos, tem o maior contingente de analfabetos e pessoas com baixa escolaridade da América Latina. Em termos percentuais estamos no mesmo grupo da Bolívia e Peru, países com uma população indígena e rural numerosa, e, portanto, questões complexas de bilinguismo.
Reportagem de LÍVIA PEROZIM.
Fonte: Revista impressa CARTA CAPITAL, nº 565 - 30 de setembro de 2009, pg.52/53

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