sábado, 19 de setembro de 2009

'Rei do cheiro' elege "descaminhos" para fazer literatura


A necessidade de criar sempre um best seller aliada à urgência jornalística produziram um tipo de literatura feita com o olho no mercado que, segundo o escritor João Silvério Trevisan, “quase não dá para ler”. Ele está lançando Rei do cheiro, romance em que traça um painel da moderna sociedade brasileira, ao destrinchar o surgimento de uma elite que é fruto do milagre econômico dos anos 70.
Para tanto, parte de uma pergunta banal: como nasce uma grande fortuna? Com estrutura narrativa nada convencional, conta a história de Ruan Carlos, rapaz do interior de São Paulo que vai para a capital tentar a vida. Ruan sofre de uma vigorosa sudorese, motivo de seu fracasso com as mulheres. Até que, num lapso criativo, decide criar uma perfumaria nos fundos de uma loja na Rua 25 de Março, e inventa um desodorante que teria efeito afrodisíaco. Valendo-se de fragmentos descartáveis da indústria cultural como jingles de rádio, músicas populares e novelas, o escritor constrói uma trama de múltiplos narradores que ora influenciam ora ironizam a cena, conferindo ao livro cheiro de experimentação. Nesta entrevista, explica sua nova experiência literária.

Rei do Cheiro é motivado pela indagação de como nasce uma grande fortuna?
Conheci muita gente banal que enriqueceu de modo nada banal. Me instigava saber como se processa esse milagre num país como o Brasil, em que as leis e a ética são relativizadas em favor das circunstâncias. O atual momento brasileiro me pareceu propício para responder a essa pergunta porque, depois da chegada da “esquerda” ao poder, o conceito de elites se embaralhou. Então, em Rei do Cheiro, resolvi juntar várias elites, desde a econômica e política até a cultural e sindical, ou seja, dos antigos aos novos donos do poder. Afinal, já temos gente se tornando milionária graças às indenizações pelo espantoso motivo de ter feito oposição à ditadura militar.

No livro, há fragmentos de notícias, informes publicitários, músicas populares, incontáveis vozes em meio à trama. De que forma elas influenciam o destino das personagens?
É natural que o entorno social nos afete. Ruan é moldado pela polifonia estridente da cultura de massas da segunda metade do século 20. Ele foi criado assistindo a seriados holywoodianos nas matinês, interagindo com heróis de histórias em quadrinhos e sobretudo ouvindo rádio, embalado por novelas, anúncios publicitários e canções. Achei natural costurar vários de seus monólogos interiores com citações de letras de músicas, inclusive as mais bregas.

Em um ambiente de convergência de mídias, ainda é possível fazer literatura isolada da influência de outros meios?
Possível é. Mas são cada vez mais inócuas as pretensões de univocidade e isolamento. As vanguardas do começo do século 20 já proclamaram a arte como fruto da efemeridade e da fragmentação. Na contemporaneidade, até mesmo essas vanguardas se esgotaram, enquanto os canais de informação se multiplicaram de modo assustador. O narrador neutro em terceira pessoa tem se revelado impotente para contemplar a multiplicidade das alternativas contemporâneas de comunicação. Daí a mesmice de boa parte da literatura dos dias de hoje, preocupada em articular uma visão ficcional onisciente. Parece-me que a contrapartida à voz onisciente é a polifonia narrativa. Temos que assumir que nossa arte perdeu o rumo e, portanto, só dá para criar enveredando por descaminhos. Para ser artista e intérprete dos nossos dias, mais do que nunca navegar é preciso.

No romance, o CROC (alusão ao PCC) invade um grande teatro em São Paulo. Que papel você atribui à mídia?
No desenrolar do pesadelo brasileiro que meu romance aborda, a mídia vem ocupar um papel semelhante ao coro da tragédia grega. Veja-se a rádio comunitária que comenta o ataque do CROC ao teatro. Mas, como a mídia está longe da neutralidade, ela se torna também personagem, com voz e temperamento próprios.

Como reflexo da época, a literatura contemporânea é (ou deve ser) caótica?
Já em meus romances anteriores, eu vinha me debatendo contra o engessamento narrativo do narrador neutro e onisciente em terceira pessoa. Em Rei do Cheiro, minha intenção foi romper de vez esse parâmetro. Corri um risco deliberado, pensando: qual será a voz do nosso tempo, senão o caos polifônico? Por isso, substituí uma voz unívoca por vozes múltiplas, anônimas e desencontradas, a partir do lixo da indústria cultural – como os anúncios publicitários. Cheguei às vozes polifônicas mais como necessidade narrativa do que pensando em inovação técnica.

Você acha que a literatura contemporânea não é mais tão ousada como antes? Quais os motivos para essa mudança de comportamento?
Com o esgotamento das vanguardas, na contemporaneidade perdeu-se a capacidade de atrever-se e arriscar. A literatura atual anda muito conformista, comportada e mediocrizada. Quase não dá pra ler. Por um lado, a mediocridade literária reflete boa parte da crítica, que hoje está mais comprometida com a urgência jornalística. Quando quer elogiar uma obra, a crítica diz que tal romance é machadiano. Ora, Machado é grande, mas ninguém mais agüenta tomar Machado de Assis como parâmetro. Isso, que parece um elogio, na verdade é atestado de conformismo. Por outro lado, a literatura, mesmo quando premiada pela suposta qualidade, não consegue esconder sua vocação comercial. E não me refiro apenas ao caso brasileiro.

Com a presença de muitos diálogos, a narrativa ganha tensão cinematográfica, aproximando-se muito do roteiro de cinema. Em que medida o cinema influencia sua escrita?
A mistura – eu diria até promiscuidade – entre as várias linguagens está longe de ser inédita. Basta citar, entre tantos outros, autores como John dos Passos (na trilogia USA) e Alfred Döbler (em Berlim Alexanderplatz), sem falar do Ulisses, de James Joyce, um verdadeiro tsunami. Em Rei do Cheiro busquei algo semelhante, relativamente à mistura de inúmeras linguagens. O cinema é apenas uma delas – o que é natural, considerando que escrevo também roteiros de cinema. No meu romance, podem-se notar ainda recursos típicos da música, tais como diferentes andamentos, ritmos e timbres. Para além de polifonia de vozes narrativas, estou falando de uma polifonia de linguagens. Esse me parece ser o futuro de alguma coisa que possa ser chamada de literatura.

Praticamente não há processos descritivos tradicionais no livro. As descrições longas em literatura fazem parte do passado?
Tudo depende da funcionalidade dos recursos exigidos por determinado projeto. Já escrevi livros longos e detalhistas, como o romance Ana em Veneza – porque o projeto pedia. Rei do Cheiro exigia fragmentação e elipses narrativas. Além do mais, “passado” em literatura é um termo discutível. Há obras clássicas que são terrivelmente modernas – parecem mais contemporâneas do que muitas obras de hoje.
Jornal do Brasil - Cadernos IDÉIAS- 18/09/2009

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