domingo, 27 de setembro de 2009

Mudar de casa

Rubem Alves*
O que não se pode cobrar de minha mãe é inconsistência. Sua recusa em tomar café com leite em caneca era parte de sua filosofia do tempo: a morte cavalga nas mudanças. Daí a angústia que ela sentiria ao saber que eu, velho, mudei de casa... “Velho que muda de casa morre”, ela dizia.
De fato tem muita morte numa mudança de casa. Há de se tomar decisões sobre os objetos que ficaram guardados durante anos em “esquecedouros”, lugares onde se depositam coisas que não se tem coragem de jogar fora. Não se joga fora o objeto: esquece-se dele. Para isso há os guarda-roupas, armários, gavetas, malas, baús, caixas, porões, sótãos... Chegada a hora da mudança eles saem dos esquecedouros, confrontam-nos e perguntam: “Onde é que você vai me por? O que é que você vai fazer comigo?”
Por mais de dez anos um grupo de amigos tem se reunido comigo nas noites de terça-feira para tomar sopa, comer pão, tomar vinho, ler poesia e conversar sobre a vida. Numa dessas conversas em que se falava de morte um participante perguntou: “Quais seriam as mudanças em nossas vidas se soubéssemos que vamos viver mais um ano apenas?” Essa pergunta ficou como lição de casa para a terça-feira seguinte. E eu levei minha lição a sério. A pergunta me colocou diante do essencial. Quando o tempo é curto não se pode perder tempo ciscando o múltiplo. Quando o tempo é curto a pureza de coração se impõe. E pureza de coração, como disse Kierkegaard, é “desejar uma só coisa”. É preciso que as casas sejam puras. Aí olhei para as centenas ou milhares de livros que havia ajuntado durante a minha vida. Era certo que sua função naquele momento era apenas estética, a de encher as prateleiras. Eu nunca iria sequer abrir a maioria deles. Passei então pelas estantes perguntando a cada livro: Eu o amo? Desejo lê-lo de novo? Que sentido haveria em guardar um livro se eu não desejava lê-lo de novo?
Se a resposta era negativa colocava-o numa pilha no meio da sala, que foi crescendo. Findo o trabalho de livrar-me do excesso de peso chamei os meus alunos e disse-lhes: “São seus...” Eles os levaram. Juventude é o tempo de ajuntar. Velhice é o tempo de espalhar.
As mudanças, especialmente aquelas de fim de vida, nos obrigam a fazer algo semelhante. Velhice é o tempo quando a alma se prepara para o voo. E nesse voo não se pode levar nada. Há de se ter leveza absoluta.
Bachelard diz que há objetos cujo sentido é o seu uso, tais como uma agulha, uma caixa de fósforos ou um saca-rolhas. Seu sentido está na sua utilidade. Velhos, sem uso, são jogados fora e substituídos. Mas há outros objetos que são portadores de sonhos. Esses não envelhecem nunca. Não podem ser jogados fora. A raposa, ao olhar para os campos dourados de trigo agitados pelo vento, sonhava com os cabelos louros do Pequeno Príncipe.
Assim como há porta-retratos onde guardo as memórias que amo e não desejo perder, posso imaginar as casas como porta sonhos. Coloco nelas as memórias que não quero perder, as memórias que são parte da minha alma. Quando se diz que uma casa é mal assombrada, não se está dizendo que ela é portadora de sombras, de sombras más? Mas não haverá sombras mansas como as das mangueiras? As sombras das mangueiras são amigas... Os escritores têm permissão para desobedecer os dicionários e inventar palavras novas. Assim, invento uma nova expressão: uma “casa bem assombrada”, casa onde moram sombras de que se tem saudades...
Encontrei esse texto no livro Sobre Heróis e Tumbas, de Ernesto Sábato, em que ele fala sobre as almas das casas.
“Pois não são as paredes, nem o teto, nem o assoalho o que individualiza a casa mas esses seres que a fazem viver com suas conversações, seus risos, seus amores e ódios; seres que impregnam a casa de algo imaterial mais profundo, de algo tão pouco material como é o sorriso em um rosto, ainda que seja mediante objetos físicos como almofadas, livros ou cores. Pois os quadros que vemos sobre as paredes, as cores com que foram pintadas as portas e janelas, o desenho das almofadas, as flores que encontramos nos quartos, os discos e os livros, embora objetos materiais ( como também pertencem à carne os lábios e os cílios), são, no entanto, manifestações da alma...”
Os arquitetos são os escultores dos espaços vivos da casa. Eles sabem que uma casa, para ser espaço vivo, tem de realizar a função de ninho. Função de ninho? “Para o pássaro o ninho é indiscutivelmente uma cálida e doce morada. É uma casa de vida: continua a envolver o pássaro que sai do ovo. Para este, o ninho é uma penugem externa antes que a pele nua encontre sua penugem corporal”.
Bernard Palissy medita sobre “uma jovem lesma que construía sua casa e sua fortaleza com a própria saliva. (...) O ser mole, viscoso, ‘baboso’ é, dessa maneira, o ator da consistência dura de sua concha. E o princípio de solidificação é tão forte, a conquista da dureza é levada tão longe que a concha ganha a sua beleza de esmalte como se tivesse recebido a ajuda do fogo...” ( Bachelard, G., A Poética do Espaço, pp. 136-137).
A engenharia da lesma não revelará a matéria de que todas as casas são feitas? A dureza das nossas casas não esconderá a nossa própria saliva? Vendo-se os objetos que moram numa casa é possível imaginar a alma do seu morador. Corrijo-me: é possível ver a alma do seu morador. Mas agora como objeto cósmico. Cada casa é um cosmos. As casas são feitas “à imagem e semelhança dos que a habitam”. Assim como os cachorros marcam o seu espaço com os seus odores — sua urina é um nome inconfundível! — nós colocamos pedaços de nós mesmos em nosso espaço para dizer “essa é a minha casa”. A decoração de uma casa – pensada ou inconsciente, são pedaços dos nossos corpos espalhados pelas paredes, armários, prateleiras, objetos e mesas. Cuidado, portanto, com a decoração de sua casa. Aqueles que sabem ver bem, olhando para sua casa, poderão ver a sua alma!
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador. Correio Popular, 27/09/2009
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1654306&area=2220&authent=237047132415622352473124376201

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