terça-feira, 22 de setembro de 2009

Jornal Nacional, quarentão: O ditador da moda

Washington Araújo*

O Jornal Nacional chega aos 40 anos campeão de audiência no horário nobre da televisão brasileira e continua sendo visto com suspeição por parcela significativa dos que se ocupam a fazer a crítica da mídia. A suspeição vem sempre embasada pelo relato de três momentos de sua trajetória: as ligações de Roberto Marinho (1904-2003) com próceres do regime militar (1964-1985); o caso Proconsult e a tentativa de fraude para surrupiar a eleição de Leonel Brizola ao governo do Rio de Janeiro em 1982 (ver "A Globo e a Proconsult"); e a edição do debate entre Fernando Collor e Luiz Inácio Lula da Silva, em 1989, francamente favorecendo o político alagoano. Nos últimos 40 anos, muito papel e tinta foram gastos tratando desses três episódios. Nas universidades não faltam dissertações e teses abordando um ou outro tema. Mas é para sustentar qualquer contrariedade contra a política editorial das Organizações Globo que os temas voltam à ordem do dia.

Há alguns anos li texto do jornalista Ali Kamel neste Observatório com o título "Globo sobre o caso Proconsult" (29/6/2004). Kamel, atual diretor responsável pela Central Globo de Jornalismo, chega a elencar nada menos de 22 tópicos em defesa do conglomerado de comunicação. Para quem tinha tão somente 20 anos de idade à época do caso Proconsult não deixa de ser uma robusta defesa que, aos pouco informados, poderia até supor que Kamel testemunhara os fatos por ele narrados com grande riqueza de detalhes. É como se ele fosse testemunha ocular de toda a história e uma testemunha posicionada em posição estratégica de comando similar à que atualmente exerce.

Entendo que o assunto está ainda longe de ser esclarecido porque suscita paixões e está permeado pelo viés ideológico tão característico do Brasil naqueles anos finais da ditadura militar iniciada em 1º de abril de 1964.

Retinas cansadas

Aos 40, o Jornal Nacional continua ditando a moda jornalística, sim, porque no Brasil há sempre um modismo evidente ou camuflado, mas moda sempre seguida. A começar pela bancada com traços abertamente futuristas, a verdade é que a do Jornal Nacional é obra de arte, é senso estético à flor dos olhos. Depois temos a indefectível vinheta em frenético movimento com a nervosa musiquinha que de tanto ser vista e ouvida passou a ser símbolo de telejornal da noite, de telejornal da Globo.

Não importa quanto tempo seja campeão de audiência, outra verdade é que o Jornal Nacional consolidou no Brasil – e é seu melhor representante – o jornalismo espetáculo, o jornalismo como show, o jornalismo com cabeça e olhos de cinema. Com apresentadores sempre impecavelmente bem trajados, maquiagem e cabelos à prova de qualquer tsunami e, principalmente, contando com gente talentosa, com dicção muito acima da média, não há como negar que é este o telejornal que melhor personifica o sempre comentado padrão Globo de qualidade televisiva.
O que incomoda é essa estranha capacidade que o JN tem de recriar todo santo dia esse clima de cumplicidade com o telespectador, um clima que favorece esquecer as agruras do dia e postar os olhos, qual hipnotizado, no que está sendo dito por William Bonner ou por Fátima Bernardes. E não importa se a notícia é sobre o recuo de Barack Obama em sua intenção de instalar sistema defensivo antimíssil no Leste Europeu (Polônia, República Checa ou Eslováquia). Convenhamos que não é assunto corriqueiro nessa paragens tropicais. Mesmo assim tudo é consumido de maneira natural e pouco importa se trocamos os mísseis pela cobertura do funeral-espetáculo do astro pop Michael Jackson ou do funeral-parada militar do longevo senador Ted Kennedy.
Em ritmo de videoclipe, a realidade perde seu eixo e já não se sabe o que é realidade filmada do que é realidade fabricada. O show em que o jornalismo se transmuta é tão bem feito, tão bem calculado em milésimos de segundos que após assistir a uma edição do JN pouco, bem pouco, fica retido em nossa memória, pois embarcamos do real para o ilusório em fração de segundos.
(Não pude resistir: e se Carlos Drummond de Andrade dizia que na vida de suas retinas cansadas nunca esqueceria de que no meio do caminho tinha uma pedra, os telespectadores do Jornal Nacional nem isso lembrariam. É que na boca da noite no lugar de uma pedra havia uma edição do Jornal Nacional.)

"A primeira pessoa"

Um exemplo são as aparições – perdoem o trocadilho – da jornalista Ilse Scamparini, correspondente da Rede Globo em Roma e no Vaticano. Com voz quase sempre embargada Scamparini transmite notas sobre a saúde de Bento 16 e no mesmo diapasão a movimentação na Praça de São Pedro. Vê-la no JN foi uma constante ao longo dos últimos meses de vida do Papa João Paulo II. É que a jornalista consegue conjugar carisma de beata com elevado grau de profissionalismo. Não há como negar, o sucesso do JN é resultado direto do grau de perfeccionismo perseguido por todos aqueles envolvidos em sua produção, edição e apresentação. Ilse Scamparini é apenas um exemplo disso, na medida em que recria a atmosfera rarefeita de beatitude dos personagens acostumados a ter sob o teto que os protege os belos afrescos de Michelangelo trazendo para a Terra cenas inequívocas do Juízo Final.
No segmento jornalismo em forma de videoclipe o Jornal Nacional é imbatível porque está sempre na hora certa e com a pessoa certa. Um misto de onipotência com onipresença. Não à toa que sua reportagem embarca em navio da Marinha brasileira para o resgate dos corpos do vôo 447 da Air France, aquele vôo que se desintegrou no trajeto Rio de Janeiro-Paris. É do telejornal da Globo a equipe que acompanha delegados da Polícia Federal (Operação Satiagraha), em 8/5/2008, ao dar voz de prisão a gente graúda como o ex-prefeito paulista Celso Pitta, o esquivo banqueiro Daniel Dantas e o contumaz investidor Naji Nahas.

A primeira entrevista de Lula, já presidente eleito do Brasil, aconteceu na noite do mesmo dia 28/10/2002 em que sua vitória foi confirmada. E foi ao JN. Nesta longa entrevista ao vivo – das 20h09 às 21h27, ou seja, setenta e seis minutos! – o Brasil viu Lula prometendo à apresentadora Fátima Bernardes que ela seria "a primeira pessoa a ser informada quando o governo fosse anunciar o nome do novo ministro da Fazenda". Que outro telejornal conseguiria tal proeza? Aos críticos históricos da Organização Globo ficou a forte impressão de que Lula havia esquecido completamente da "bem editada" matéria do debate entre ele e Collor, em 1989, edição esta que especialistas em campanhas presidenciais costumam afirmar ter lhe custado a vitória.
Objetivo consciente

Semana retrasada, tentando salvar meu domingo diante de TV enquanto trocava os canais me deparei com o William Bonner – com sua mulher e filhos – tentando responder ao apresentador Fausto Silva, que o apresentara à amestrada claque, voltando a abusar de sua preferida ladainha louvaminheira – "ninguém é tão ético, é tão profissional, é tão bom caráter, é tão glorioso, é tão gente, é tão querido pelos colegas, é tão generoso na profissão, é tão hiperamigo" – sobre como o casal fazia o Jornal Nacional. A resposta do Bonner foi sintomática: "Primeiro temos que preparar o cardápio" (ou algo assim).

Logo me desliguei do assunto e pensei com meus botões que o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, até que não estava tão equivocado assim ao ter equiparado a profissão de jornalista com a de cozinheiro. É que o JN é feito sob medida, segue uma receita, tem um cardápio a oferecer. E neste cardápio nem sempre assoma o objetivo consciente do jornalista e da empresa de informar o espectador e demonstrar de forma inequívoca sua honestidade para com a veracidade jornalística.

Porque no jornalismo não existe meio termo – ou se conspira ou se denuncia a conspiração.
*Mestre em comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo

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