quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Eternidade digital e o suicídio

Ismael Caneppele*

Uma das atrações mais esperadas da mostra competitiva da Première Brasil, Os famosos e os duendes da morte, exibido na noite de domingo, confirma a vocação como autor do curta-metragista paulista Esmir Filho, responsável pelos premiados Saliva e Tapa na pantera, que aqui estreia em longas, e revela o talento escritor gaúcho Ismael Caneppele, autor do livro que inspirou a produção, na literatura geracional. O filme, que ganhou o aval da Warner Bros. na distribuição, com lançamento previsto para março, descreve o cotidiano de sorumbáticos adolescentes de uma pequena comunidade alemã do Vale do Taquari, interior do Rio Grande do Sul, que fazem dos blogs e sites de relacionamento da internet sua janela para o mundo. O centro gravitacional da trama é a ponte de ferro que corta a cidade, cenário de inúmeros suicídios, tratados pela população como meros acidentes.
– A incidência de suicídios entre jovens na região é alta – esclarece Caneppele, de 30 anos, alimentou Os famosos e os duendes da morte com casos que aconteceram em Lajeado, cidade onde nasceu. – Saí de lá há 12 anos, para buscar a carreira de ator em São Paulo. Demorei anos para conseguir voltar à cidade e superar o trauma. Vejamos entrevista:


Jornal do Brasil: O livro nasceu de experiências pessoais?
Ismael Caneppele: Não consigo escrever sobre nada que não seja pessoal. Os famosos e os duendes da morte é uma história pessoal, mas não é biográfica. Na minha adolescência não existia internet. Saí de Lajeado aos 17 anos e caí no mundo louco de São Paulo. Quando voltei, anos depois, descobri que meus primos e os adolescentes de lá acessavam o mundo pela internet. Eu era visto como a pessoa que tinha visto o mundo verdadeiro, que só conheciam no virtual. Eles me procuram muito para saber sobre como era fora da cidade, se valia a pena ter saído de lá.

JB : Qual era o seu objetivo ao escrevê-lo?
IC : Queria escrever uma carta de despedida para a minha mãe e também fazer uma espécie de manifesto de partida. Se algum adolescente que se sente na mesma situação de isolamento e tem dúvidas sobre o que fazer, que leia o livro. Não oferece respostas, mas funciona como uma espécie de espelho. É um livro para mães, adolescentes e pessoas que decidiram sair de sua cidade.

JB: Os suicídios são realmente frequentes por lá?
IC: A ponte de ferro fica do lado da casa da minha família. O complicado de falar sobre esse assunto é que lá o suicídio é tratado como queda. “Ah, fulano caiu da ponte hoje da manhã; sicrano caiu da ponte ontem à noite”. O estranho é que essas pessoas tiveram o cuidado de tirar os sapatos antes de cair no rio. O incidente comentado no filme, sobre a mãe morreu na ponte é real: ela deixou a lasanha na geladeira para o filho e avisou que ia encontrar com o pai do garoto, que já tinha morrido.

JB: E por que isso acontece em Lajeado?
IC: Acho que é um fenômeno comum em comunidades de raízes alemãs. Meu bisavô se suicidou. Foi muito bom o Esmir ter ido lá conhecer a cidade, porque teve a chance de descobrir como aquelas pessoas se relacionam com a morte. No cemitério a gente encontra túmulos de pessoas ainda vivas, que deixam tudo pronto, com data de nascimento e uma foto muito bonita. Meu avô sempre falava: “Eu muito cansado, acho que vou me pendurar”. Pendurar usado no sentido de se enforcar, mesmo. A comunidade alemã trata a morte dessa maneira, muito normal. Lá perto fica Viranópolis, a cidade com maior casos de suicídios no Brasil, e a terceira no mundo.

JB: Qual o papel da internet na vida dos jovens de lá?
IC: A internet é muito forte lá, é uma revolução. Acho que funciona como um alívio, porque os adolescentes não se sentem mais sozinhos. Na minha época, eu tinha meus problemas e minhas vontades, que eram só minhas, já que não tinha com quem compartilhá-los. Eu era o cara errado da escola e pronto. Todo adolescente se sente isolado em seu mundo. Hoje, você entra numa sala de bate-papo e encontra 50 pessoas com as mesmas questões.
*Escritor gaúcho.
Reportagem de CARLOS HELI DE ALMEIDA, Jornal do Brasil - 30/09/2009
http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/09/30/e30099778.asp

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