sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A entrevista (com FREUD)

DAVID COIMBRA*
Vez em quando, releio certo naco de um livro que descansa na estante bem às minhas costas, ao alcance do braço esticado. O livro é A Arte da Entrevista. O texto, bem, é uma entrevista. Com Freud, feita por um jornalista americano, George Viereck. Os dois caminham em meio a um jardim, admirando as flores, conversando. Passa-se em 1930. Aos 74 anos, Freud era torturado por um câncer na boca e usava uma prótese no maxilar. Nove anos depois, num 23 de setembro como o que há pouco se foi, morreu. A seu pedido, por meio de uma eutanásia piedosa.
Mas em 1930 Freud ainda produzia com vigor. Escreveu um de seus melhores livros, O Mal-Estar na Civilização, genial pelo conteúdo e pelo estilo. E, na entrevista, concebeu reflexões de uma sabedoria singela e comovedora da qual só é capaz um homem no rumo do fim. Algumas frases são diamantes:
“Não permito que nenhuma reflexão filosófica me tire a alegria das coisas simples da vida.”
Quando o repórter toca o tema da decrepitude inevitável, Freud faz um comentário resignado, mas suave, quase doce:
“Não me revolto contra a ordem universal, afinal, vivi mais de 70 anos. Tive o que comer. Desfrutei de muitas coisas – do companheirismo da minha esposa, dos meus filhos, do pôr do sol. Eu vi as plantas crescerem na primavera. Algumas vezes recebi um aperto de mão amigo. Uma ou duas vezes encontrei um ser humano que quase me entendeu. O que mais eu posso querer?”
Finalmente, o repórter tece uma observação que irrita Freud:
– Sempre me pareceu que a psicanálise desperta em todos aqueles que a praticam o espírito da caridade cristã. Não há nada na vida humana que a psicanálise não nos permita entender. E tudo compreendido é tudo perdoado.
Freud, segundo o repórter, enfureceu-se:
– Pelo contrário. Entender não é perdoar. A psicanálise não apenas nos ensina o que temos de suportar, também ensina o que temos de evitar. Nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância do mal não é, de maneira nenhuma, uma consequência do conhecimento.
Entender não é perdoar. Irretocável. Mas Freud se irritou precisamente por saber que a psicanálise estava conduzindo a humanidade na direção oposta, como talvez Cristo se irritasse ao ver no que se transformou o cristianismo.
Depois da II Guerra, a compreensão se confundiu com a leniência. Sobretudo no Brasil, qualquer repressão era antidemocrática, qualquer punição era cruel. Hoje, a sociedade movimenta-se para o outro lado. Nesta semana, junto ao registro do aniversário de 70 anos da morte de Freud, os jornais mostraram a comunidade exultante por duas razões: com a punição aplicada ao menino que pichou sua escola, e com as crianças obrigadas a cantar o Hino Nacional. Uma notícia se relaciona com a outra. A intenção óbvia da lei que obriga a execução do Hino é despertar nas crianças o chamado “amor à pátria”. Que, em tese, é bom sentimento: quem ama sua pátria a preserva e não faz como o garoto pichador, não vandaliza o patrimônio público. Mas e a pátria dos outros? E a escola dos outros? Pode ser depredada? Pela lógica do patriotismo, isso é irrelevante – relevante é a pátria. Freud, um judeu-austríaco que durante a maior parte da vida se considerou alemão, sofreu com esse tipo de sentimento mais do que com o câncer na boca. Talvez por isso, em vez do amor à pátria, preferisse o amor às pessoas. Um amor que sempre entende, como pretende a psicanálise, e às vezes perdoa, como prega o cristianismo. E que, como uma e outro, reprime, se tiver de reprimir, pune, se for preciso punir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário