domingo, 6 de setembro de 2009

Ciência e Liberdade

Marcelo Gleiser*
Nunca se deve aceitar algo só
porque foi dito
por uma autoridade

Já que esta coluna cai na véspera do dia da Independência, achei oportuno revisitar um tema que está sempre presente na vida da gente: a questão da liberdade. Claro que, nestas breves linhas, eu não teria a pretensão de apresentar muitos pensamentos profundos sobre o que significa ser livre. Convido apenas os leitores a uma reflexão, iluminados, como sempre, pela luz da ciência.
Quando era garoto, gostava muito de citar a seguinte frase: "Ser livre é poder escolher ao que se prender". Outra versão é: "Quanto mais chaves você carrega no bolso, menos livre você é". Não há dúvida de que a primeira é mais filosófica. (Acho que é atribuída, talvez erroneamente, ao filósofo francês Jean-Paul Sartre.) Mas ambas dizem algo de semelhante: que liberdade e escolha andam de mãos dadas.
Existem, certamente, situações em que isso não é verdade: pessoas "presas" não por terem cometido algum crime, mas por serem aprisionadas por alguma ideologia que lhes é imposta. Por exemplo, as crianças que nascem em famílias ultrarreligiosas nunca têm a opção de refletir sobre os valores que lhes são impostos. Mesmo sem carregar chaves, estão presas até crescerem o suficiente para poder (ou não) se rebelar. O mesmo ocorre com os indivíduos que vivem em regimes políticos totalitários, onde a "verdade" é controlada pelo Estado. Ou seja, a frase "ser livre é poder escolher ao que se prender" pressupõe que o indivíduo tem a liberdade de escolha. Isso nem sempre é verdade. Para sermos livres, precisamos ter livre acesso à informação. Só assim teremos o privilégio de poder escolher ao que vamos nos prender.
Daí o papel fundamental da educação, contanto que livre de censuras ideológicas. Já em torno de 50 a.C., o poeta romano Lucrécio celebrava a importância da educação na liberdade das pessoas. Sua preocupação era com a excessiva superstição dos romanos, que atribuíam tudo o que ocorria à ação de algum deus. Consequentemente, a maioria da população vivia aterrorizada. Só aqueles que usam a razão para desvendar o porquê das coisas podem de fato ser livres, dizia.
Só quem reflete sobre as causas das coisas, em vez de atribuí-las cegamente a causas sobrenaturais, é livre dos medos que assombram a vida. A educação deve fornecer ao indivíduo a capacidade de reflexão crítica, a habilidade de saber fazer perguntas e não de aceitar passivamente tudo o que lhe é dito. Essa habilidade, esse ceticismo, é um dos aspectos mais cruciais do treinamento de um cientista. Nunca se deve aceitar algo só porque foi dito por uma autoridade.
Essa atitude é exatamente oposta ao que ocorre em culturas conservadoras e repressivas. Mesmo que a ciência busque uma ordem no mundo material, sua essência é anárquica. Os grandes revolucionários da ciência, Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Einstein, Bohr, foram todos anárquicos a seu modo. Todos defendiam a sua liberdade de pensamento acima de tudo, recusando-se (ou quase, no caso de Galileu, sob ameaça da Inquisição) a aceitar o saber das autoridades. Para eles, ser livre é ter a coragem de pensar por si mesmo sobre os grandes problemas, na tentativa de chegar a uma verdade aceita pela maioria.
Quando penso em liberdade, penso nesses nomes, e em tantos outros -cientistas ou não- que lutaram para que hoje possamos ter a visão de mundo que temos. Se hoje somos mais livres, devemos agradecer a eles. Se há tantos longe de ser livres, é porque ainda temos muito o que fazer.
*MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0609200903.htm

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