quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Um problema resistente

ENSINO: Segundo a educadora Maria Clara Di Pierro,
vencer o analfabetismo
demanda tempo e políticas contínuas.



A TAXA de analfabetismo caiu de 9,9% para 9,8% na comparação entre 2007 e 2008. Além do recuo de apenas 0,1%, o número absoluto de analfabetos adultos no Brasil, no mesmo período, aumentou de 14,136 milhões para 14,247 milhões. Os dados foram revelados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), estudo anual do IBGE, e mostram que campanhas e programas para reduzir o analfabetismo adulto pouco agregam. Segundo dados da Unesco, referentes à América do Sul, o Brasil só não está pior do que a Bolívia. Entre as razões desse atraso, segundo a professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Maria Clara Di Pierro estão a escassez de oportunidades de continuidade de estudos para os egressos dos programas de alfabetização. Nessa entrevista, Maria Clara, pesquisadora das políticas públicas da Educação de Jovens Adultos (EJA) no Brasil e na América Latina, explica a mudança de perfil dos alunos e critica o caráter precário e limitado dos programas atuais.

Carta Capital: Apesar da expansão do acesso à escola, a taxa de analfabetismo no Brasil continua alta. Por que a educação de jovens e adultos não resulta de um melhor grau de alfabetização?
Maria Clara Di Pierro: A taxa de analfabetismo não está relacionada apenas ao desempenho dos programas de educação de adultos, mas também ao acesso à educação de adultos, mas também ao acesso à educação básica, à evolução da alfabetização na infância e adolescência. Quando falamos da diminuição de 2 milhões de analfabetos ao longo desta década, não significa necessariamente que alfabetizamos 2 milhões de adultos. Provavelmente, a mortalidade retirou da população de idosos analfabetos e entraram, na faixa de 15 anos ou mais, jovens que foram alfabetizados. O lento recuo do analfabetismo reflete o fraco desempenho do sistema educacional como um todo, desde a infância até a vida adulta.

CC: Hoje, qual o perfil do aluno da educação de jovens e adultos?
MC: Existem as pessoas que nunca foram à escola, mas elas são minoria. A grande parte dos alunos passou pela escola, mas teve uma passagem breve, com poucas aprendizagens relevantes.

CC: O fracasso dos jovens no ensino formal os levou para a EJA?
MC: No passado, quando havia um contingente alto de população da zona rural chegando às cidades, essa modalidade proporcionava o acesso à educação aos que nunca tiveram oportunidade. Nos últimos 30 anos, prevaleceu a obrigação de aceleração de estudos para jovens com defasagem na relação idade/série. Temos hoje uma população que foi fruto de processo de exclusão escolar: ensino de má qualidade, repetição, evasão, ingresso precoce no mundo do trabalho.

CC: Segundo o Inep, apenas 2% das instituições que oferecem o curso de Pedagogia têm habilitação para a educação de adultos. Por que não há uma preparação formal e uma especialização na área?
MC: Como educação de adultos não configurou uma política prioritária, sendo freqüente a descontinuidade dos programas, esse campo não conformou uma mercado de trabalho atrativo para a docência. A atual norma da pedagogia eliminou as antigas habilitações. Quando existiam, a procura era baixa, pois o estudante não tinha segurança de que teria mercado. Não se incentivou o viés da especialização e não houve políticas públicas para incorporar a modalidade ao currículo.

CC: A Educação de Jovens e Adultos não é pensada como uma política continuada?
MC: Tem-se uma fantasia de que é algo temporário, que basta um esforço concentrado e, em pouco tempo, o problema está superado. Só que desde os anos 40 fazemos isso. As primeiras campanhas de alfabetização foram instituídas no fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação da Unesco. Era uma estratégia global. O Brasil tinha mais da metade da população de analfabetos. É com essa marca de mobilização e urgência que a política de Educação de Jovens e Adultos aparece e se desenvolve, sempre com uma certa precariedade e com uma oferta de oportunidades escolares breves. Os resultados são escassos, porque a capacidade de mobilizar vai diminuindo e a regressão ao analfabetismo é muito alta.

CC: Os dados do Censo mostram uma pequena diminuição no número de matrículas no Ensino Fundamental. O que isso representa?
MC: Essa é uma questão que ainda não sabemos responder. Temos duas hipóteses: a inadequação do ensino oferecido aos jovens e adultos, que não estimula sua permanência, e a falta de incentivos para que os estados e municípios ampliem a oferta. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef) que vigorou de 1996 a 2006 não permitiu a inclusão de matrículas de jovens e adultos. A inclusão da modalidade no atual Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) não conseguiu trazer o efeito positivo que se esperava. A EJA entrou numa posição desvantajosa: o gasto não pode exceder 15% do fundo. Só em 2009 que 100% das matrículas puderam entrar. O custo-aluno é retribuído pelo menor fator: 80% do que receberia um aluno do ensino regular.

CC: Houve um esforço maior, mas ainda insuficiente?
MC: O governo Lula conferiu maior atenção à alfabetização de jovens e adultos, mas o declínio do analfabetismo não teve nenhuma inflexão. Isso é uma evidência de que campanha com esse modelo do Brasil Alfabetizado, desenvolvidas num período muito breve, com professor pouco qualificado, não funciona. Desde 2003 são inseridos de 1 a 2 milhões de pessoas, por ano, no Brasil Alfabetizado. Se o programa tivesse tido sucesso, teríamos 12 milhões a menos de analfabetos.

CC: E nos ensinos municipal e estadual?
MC: A oferta tem um sério problema de adequação pedagógica e organizacional. O modelo tende a reproduzir a educação de crianças e adolescentes. Falta flexibilidade.

CC: A maioria dos analfabetos é constituída por nordestinos, negros e pessoas de baixa renda. As políticas públicas de alfabetização estão isoladas?
MC: O analfabetismo tem uma simetria muito grande com os processos de exclusão socioeconômica. Como a pobreza está concentrada na zona rural, no Norte e Nordeste, nas populações afrodescendentes, a distribuição do analfabetismo é recortada por esses mesmos indicadores. E, no passado, pela questão de gêneros. Hoje, temos mais mulheres analfabetas nas populações mais velhas. Nos grupos de idade mais jovem, é o contrário. As mulheres estão tendo mais êxito.

CC: Como estamos em relação aos nossos vizinhos da América Latina?
MC: O Brasil, em termos absolutos, tem o maior contingente de analfabetos e pessoas com baixa escolaridade da América Latina. Em termos percentuais estamos no mesmo grupo da Bolívia e Peru, países com uma população indígena e rural numerosa, e, portanto, questões complexas de bilinguismo.
Reportagem de LÍVIA PEROZIM.
Fonte: Revista impressa CARTA CAPITAL, nº 565 - 30 de setembro de 2009, pg.52/53

As emoções também são herdadas

Claudio Ibáñez*


Os acadêmicos e pesquisadores passaram a dar importância às emoções apenas na segunda metade do século XX. O predomínio racionalista na concepção do ser humano,mais a visão das emoções como as antípodas do racional, fez com que elas fossem entendidas como respostas de segunda classe que debilitavam o funcionamento das pessoas. Não foi Daniel Goleman que cunhou o termo "inteligência emocional", mas foi seu livro homônimo publicado em 1995 que recolheu, integrou e ajudou a difundir trabalhos e pesquisas que mostravam que emoção e razão se encontram estreitamente relacionadas e que quando as emoções não funcionam adequadamente, mesmo com as habilidades intelectuais intactas, deteriora-se o desempenho das pessoas em diferentes âmbitos (tomada de decisões, relações interpessoais, trabalho, criação, rendimento acadêmico).

Na atualidade, a pesquisa científica sobre as emoções é um dos campos mais ativos e prolíficos. Atrai a atenção não só de psicólogos, mas também de pesquisadores de diversas disciplinas, como neurocientistas, biólogos, sociólogos e economistas. As inúmeras publicações, revistas e livros especializados sobre o tema constituem uma verdadeira eclosão no mundo científico e acadêmico.
As emoções são respostas complexas que convergem para os componentes mentais, fisiológicos e motores. O elemento mental vivencial de cada uma delas é o que se conhece como sentimento. Isto pertence ao mundo privado interno, que dá acesso apenas a quem o experimenta (a não ser, claro, que a pessoa comunique o que está sentindo). No outro extremo, por assim dizer, as emoções possuem uma vertente pública, exposta para o exterior. Esta vertente aberta ao mundo está integrada por respostas fisiológicas e motoras; é o que se conhece como expressão emocional, na qual o rosto desempenha um papel principal.

O componente expressivo das emoções é fundamental para a adequada comunicação e interação social. Sendo assim, é necessário que os cônjuges tenham algumas pistas a respeito do estado emocional de seu parceiro para iniciar, manter ou terminar uma conversa. Do mesmo modo, é essencial que o subordinado possa ter indícios do estado emocional de seu chefe e fazer uma leitura correta dele… principalmente se for pedir um aumento na remuneração. Um professor na sala deve perceber se os alunos estão entusiasmados ou aborrecidos com sua aula. Enfim, só podemos consolar alguém se soubermos que essa pessoa está triste, só podemos dar segurança e apoio se percebermos que a pessoa está com medo. Tudo isto é possível graças ao componente expressivo das emoções.

Trabalho pioneiro incompreendido

O trabalho pioneiro e fértil, o mais completo até hoje, sobre a expressão das emoções é o livro de Charles Darwin A expressão das emoções no homem e nos animais. Publicado pela primeira vez em 1872, é muito menos conhecido do que A Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural. Uma segunda edição de A expressão das emoções… viu a luz em 1889, sete anos depois da morte de Darwin, publicado por seu filho Francis. Nos anos seguintes fizeram nova tiragem da primeira edição, mas na verdade permaneceu esquecido por longo tempo. Até hoje, são poucos os que sabem de sua existência.

O interesse deste cientista esteve estreitamente relacionado com a busca de argumentos adicionais para sustentar sua teoria da evolução. Por um lado, se as emoções existem tanto nos animais como no homem, Darwin acreditou que isto era uma poderosa evidência a favor da continuidade das espécies ("certas expressões humanas, como o cabelo eriçado diante de um terror extremo ou o mostrar os dentes durante uma raiva furiosa, dificilmente poderiam ser entendidos sem supor que o homem existiu uma vez em condição animal"). Por outro lado, se as expressões emocionais são universais, isto é, expressam-se do mesmo modo, independentemente da raça, então haveria um respaldo concreto para seu postulado de que os homens descendem de um antepassado comum.

Para estudar a expressão das emoções, Darwin utilizou seis diferentes fontes de informação: a observação das crianças ("já que exibem grande variedade de emoções com força extraordinária"); a dos doentes mentais ("exibem as paixões mais fortes"); as fotografias que o médico Guillaume Duchenne, famoso neurologista francês, obtivera de seus estudos de galvanização de certos músculos faciais; os trabalhos dos grandes mestres da pintura e da escultura ("são agudos observadores"); o estudo das expressões emocionais em diferentes raças (para isso enviou questionários a missionários, amigos e cientistas nas colônias britânicas da época), e, finalmente, a expressão das emoções nos animais mais comuns. Todo o material reunido, as observações, suas descrições, comparações e conclusões estão em seu livro A expressão das emoções..., obra de quase quatrocentas páginas, mas de fácil leitura, escrita de forma compreensível; interessante e profusamente ilustrada com sessenta e duas imagens entre desenhos, fotos e lâminas. Com brilhantes, perspicazes e detalhadas descrições da forma em que os animais e as pessoas expressam suas emoções, este texto confirma o que Darwin dizia de si mesmo: "Não sou muito engenhoso e minha capacidade para seguir um curso de pensamento longo e abstrato é muito limitada… No entanto, sou melhor do que pessoas comuns para fixar-me em coisas que escapam facilmente da atenção e observá-las cuidadosamente".

Nenhum pesquisador de emoções utilizou tal variedade de métodos como o fez Darwin. No entanto, boa parte de seus dados eram episódicos e muitas de suas observações indiretas, pois correspondiam a informações de terceiros. Estes aspectos de seu trabalho dificultaram que seus antecedentes fossem tomados como evidências suficientes para suas conclusões. Se ao anterior for somado certo antropomorfismo, atribuído ao seu livro, explica-se que A expressão das emoções... permanecesse relegado a um segundo plano na bibliografia darwiniana.

Deve-se acrescentar um fato não menos importante. Na primeira metade do século XX, como resultado do estudo de diferentes culturas exóticas, ganhou força o relativismo cultural. Grandes antropólogos, como Gregory Bateson, Ray Birdwhistell e Margaret Mead, sustentavam que a cultura moldava a natureza humana a ponto de que os comportamentos das pessoas se tornassem próprios e específicos de cada cultura, e que as emoções não ficam alheias a este impacto. Em conseqüência, as emoções não se expressam da mesma forma em todas as culturas. Sendo assim a antropologia cultural contradisse radicalmente, a universalidade das emoções sustentada por Darwin no século XIX.

Condicionante cultural?

Nos últimos anos da década de 1950, um jovem psicólogo da Universidade de São Francisco, Califórnia, chamado Paul Ekman, interessou-se pelas expressões emocionais devido ao potencial que viu nelas para revelar o que as pessoas não mostram através das palavras. Aprofundando o tema, encontrou-se com a controvérsia que se arrastava quase por um século neste campo: a expressão das emoções depende da cultura ou é mais bem herdada e, em conseqüência, universal? A possibilidade de resolver esta disjunção o apaixonou.

Em 1966 iniciou suas primeiras pesquisas sobre a expressão das emoções. Inclinado, como estava, a favor do relativismo antropológico, sua expectativa era demonstrar o erro de Darwin. Produto do rigor metodológico e observacional adquirido em sua formação behaviorista, Ekman decidiu melhorar a metodologia, ferramentas e procedimentos utilizados por Darwin e ampliar a cobertura de suas observações. Reuniu informação de forma direta, sistemática e extensa em países de diferentes latitudes e continentes, tais como o Chile, a Argentina, Brasil, Japão, China, Inglaterra, Etiópia, Turquia, Malásia e Papua Nova Guiné; de culturas alfabetizadas e analfabetas, e daquelas expostas e não expostas à televisão. Tomando todos os cuidados para não influenciar suas respostas, exibiu fotos de rostos aos habitantes de muitos destes países para que dissessem que emoções expressavam. Sua surpresa foi maior quando os resultados das pesquisas de campo e de laboratório, realizadas por ele, terminaram por convencê-lo de que Darwin tinha razão e não os antropólogos culturais. Paul Ekman publicou suas descobertas em prestigiosas revistas científicas e estas agora são consideradas evidências concretas de que emoções são universais e não dependentes da cultura. Embora possa influenciar na expressão pública delas, através das denominadas "regras de exibição", existe um sólido respaldo científico de que as expressões são universais. Esta universalidade é o que nos permite, como diz Ekman, que as pessoas possam compreender-se através das gerações, entre as culturas, na intimidade e com estranhos. A expressão das emoções é uma linguagem universal.

O interesse primordial de Darwin neste tema não foi colocado no valor evolucionário das expressões assinaladas. Não obstante, foi sua teoria da evolução que permitiu explicar por que as emoções, tanto positivas como negativas, mantiveram-se até nossa espécie como respostas tão importantes e centrais. As emoções negativas, como o medo, a ira e o asco, possuem um valor adaptativo evidente, diante das ameaças e emergências, contribuindo assim à sobrevivência. Já que o valor evolucionário das positivas é menos evidente e mais mediato, levou mais tempo para descobrir. Emoções como a alegria, a serenidade, a gratidão ou solidariedade aumentam os aspectos físicos, psicológicos e sociais das pessoas, fortalecem os laços entre os indivíduos e reforçam a participação em grupos, tudo o que, por inumeráveis razões, torna mais provável a sobrevivência a médio e longo prazo. De acordo com opinião de Barbara Fredrickson, psicóloga da Universidade de Stanford, esta forma de ver as emoções positivas resolve o mistério evolucionário delas. Provavelmente isto foi o que Darwin vislumbrou nelas quando, na Descendência do homem, afirma que a "empatia foi uma poderosa ajuda para a sobrevivência".

Emoções humanas no mundo animal

O trabalho de Darwin não só influenciou o estudo das emoções no ser humano, mas serviu como base, também, para seu estudo no mundo animal. Notáveis etologistas, como Konrad Lorenz, Nicolás Timbergen e Jane Goodall, se aprofundaram no comportamento do mundo animal e autores mais recentes, como Marc Bekoff, da Universidade de Colorado, estão dedicados diretamente à observação das emoções em animais. E não só o estudo das emoções "animais" em si, como a raiva e o medo, mas as emoções "mais humanas" no mundo animal, como a empatia, o altruísmo, a cooperação, a solidariedade, sofrimento e a alegria.

Paul Ekman aprofundou e complementou o trabalho produtivo de Darwin e, atualmente, é reconhecido como o pesquisador de referência mundial, quanto à expressão das emoções. No entanto, este pesquisador reconhece em Darwin o mérito de ter sido o primeiro a argumentar que as emoções não são respostas exclusivamente humanas e a demonstrar a universalidade de suas expressões.

A terceira edição de A expressão das emoções… foi publicada recentemente, em 1998 (Oxford University Press), cento e vinte e seis anos após sua publicação original, graças a Ekman. Com Introdução, Prefácio, Epílogo e comentários deste pesquisador, essa reimpressão constitui um real tributo a Darwin. Ekman revisou meticulosamente a correspondência e os arquivos da época, assim como os registros, anotações e mudanças que o próprio naturalista inglês fizera em sua cópia pessoal da primeira edição e que pensava incorporar à segunda. Sua morte, em 1882, impediu-o de fazer. Ekman juntou todo este material à terceira edição, o que faz com "que este livro possa ser considerado o definitivo, pois contém as mudanças que Charles Darwin desejara", diz Ekman.

No bicentenário de seu nascimento, parece oportuno destacar que o legado de Darwin à humanidade e à ciência não se limita à teoria da evolução, mas atinge aspectos tão centrais das pessoas e da sociedade como são as emoções, antecipando em mais de um século o que a moderna psicologia têm confirmado sobre elas.

*Claudio Ibáñez - SPsicólogo, diretor executivo do Instituto Chileno de Inteligência EmocionalFonte: Mirada Global http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=13438&cod_canal=42

Água com açúcar e sangue

Diana Corso*

Cada fenômeno editorial fala de seu tempo. Se um livro vende mais de 55 milhões de exemplares, provoca furor entre adolescentes e outros mais crescidos, convém investigar-lhe os segredos, certamente revelam algo nosso.
A série de romances da americana Stephenie Meyer, iniciada com Crepúsculo, estendida ao longo dos quatro gordos volumes já publicados, reencontra um ávido público leitor da mesma faixa etária que aclamou Harry Potter uma década atrás. Enquanto Rowling resgatou o valor da magia, o sucesso desta série nos revela overdoses de romantismo.
Trata-se da história de Bella, uma menina comum, pais separados, desajeitada e sonhadora, que chega a uma cidade do interior dos EUA para morar com seu pai. Novata, ela tem seu coração disputado por vários meninos e finalmente o entrega a Edward, um vampiro de 17 eternos anos, lindo e com superpoderes, que a salva constantemente de perigos. Além disso, ele considera que seu sangue é o cheiro mais irresistível que ele sentiu nos últimos séculos, mas se detém, num erotismo contido. Afinal, ele pertence a uma família que não bebe sangue humano. Mas há os vampiros tradicionais e eles também consideram o cheiro de Bella apetitoso. São centenas de páginas de paixão e exaltação das qualidades de Edward, que é tão poderoso quanto amante dedicado. Misture isso com desentendimentos, desencontros, lutas entre vampiros bons e maus e acrescente lobisomens. No centro dessas contendas, está sempre a irresistível Bella, como se Troia não fosse mais do que uma disputa por Helena.
Mais do que um romance para meninas, o que temos aqui é o protagonismo feminino, cada vez mais comum na literatura infanto-juvenil, e a força de ideais de sensibilidade que outrora eram restritos às mulheres. Muitos meninos também leem essas histórias e sentem-se representados pelos poderosos vampiros e lobisomens, príncipes sobrenaturais. Por mais que falem na leviandade das novas gerações, expostas a muita sexualidade explícita, observamos surpresos que o romantismo voltou. Meyer aponta para algo novo: a liberdade das mulheres, sua crescente influência nas ideias dominantes, estende seu poder para o discurso amoroso das novas gerações. Sonhadores, meninos e meninas valorizam a necessidade de dar tempo e espaço à sedução, aos jogos de esconde-esconde, à tortuosa e conflitiva iniciação sexual. Com a carnalidade de açougue da “ficação” dos jovens, convivem sonhos que bem conviriam a Romeu e Julieta. Nem tudo é tão simples como parece.
*Diana Lichtenstein Corso nasceu em Montevidéu, em 1960, e atualmente vive em Porto Alegre. É psicanalista, membro da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre)Formada em psicologia pela UFRGS, trabalhou com crianças e no campo dos problemas de desenvolvimento infantil. Atualmente atende jovens e adultos em seu consultório particular. É colunista do Segundo Caderno do jornal Zero Hora e da Revista TPM. É autora de Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis (Ed. Artmed), em parceria com seu marido Mário Corso. Tem duas filhas, Laura e Júlia
http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a2669316.xml&template=3916.dwt&edition=13222&section=999 30/09/2009

Eternidade digital e o suicídio

Ismael Caneppele*

Uma das atrações mais esperadas da mostra competitiva da Première Brasil, Os famosos e os duendes da morte, exibido na noite de domingo, confirma a vocação como autor do curta-metragista paulista Esmir Filho, responsável pelos premiados Saliva e Tapa na pantera, que aqui estreia em longas, e revela o talento escritor gaúcho Ismael Caneppele, autor do livro que inspirou a produção, na literatura geracional. O filme, que ganhou o aval da Warner Bros. na distribuição, com lançamento previsto para março, descreve o cotidiano de sorumbáticos adolescentes de uma pequena comunidade alemã do Vale do Taquari, interior do Rio Grande do Sul, que fazem dos blogs e sites de relacionamento da internet sua janela para o mundo. O centro gravitacional da trama é a ponte de ferro que corta a cidade, cenário de inúmeros suicídios, tratados pela população como meros acidentes.
– A incidência de suicídios entre jovens na região é alta – esclarece Caneppele, de 30 anos, alimentou Os famosos e os duendes da morte com casos que aconteceram em Lajeado, cidade onde nasceu. – Saí de lá há 12 anos, para buscar a carreira de ator em São Paulo. Demorei anos para conseguir voltar à cidade e superar o trauma. Vejamos entrevista:


Jornal do Brasil: O livro nasceu de experiências pessoais?
Ismael Caneppele: Não consigo escrever sobre nada que não seja pessoal. Os famosos e os duendes da morte é uma história pessoal, mas não é biográfica. Na minha adolescência não existia internet. Saí de Lajeado aos 17 anos e caí no mundo louco de São Paulo. Quando voltei, anos depois, descobri que meus primos e os adolescentes de lá acessavam o mundo pela internet. Eu era visto como a pessoa que tinha visto o mundo verdadeiro, que só conheciam no virtual. Eles me procuram muito para saber sobre como era fora da cidade, se valia a pena ter saído de lá.

JB : Qual era o seu objetivo ao escrevê-lo?
IC : Queria escrever uma carta de despedida para a minha mãe e também fazer uma espécie de manifesto de partida. Se algum adolescente que se sente na mesma situação de isolamento e tem dúvidas sobre o que fazer, que leia o livro. Não oferece respostas, mas funciona como uma espécie de espelho. É um livro para mães, adolescentes e pessoas que decidiram sair de sua cidade.

JB: Os suicídios são realmente frequentes por lá?
IC: A ponte de ferro fica do lado da casa da minha família. O complicado de falar sobre esse assunto é que lá o suicídio é tratado como queda. “Ah, fulano caiu da ponte hoje da manhã; sicrano caiu da ponte ontem à noite”. O estranho é que essas pessoas tiveram o cuidado de tirar os sapatos antes de cair no rio. O incidente comentado no filme, sobre a mãe morreu na ponte é real: ela deixou a lasanha na geladeira para o filho e avisou que ia encontrar com o pai do garoto, que já tinha morrido.

JB: E por que isso acontece em Lajeado?
IC: Acho que é um fenômeno comum em comunidades de raízes alemãs. Meu bisavô se suicidou. Foi muito bom o Esmir ter ido lá conhecer a cidade, porque teve a chance de descobrir como aquelas pessoas se relacionam com a morte. No cemitério a gente encontra túmulos de pessoas ainda vivas, que deixam tudo pronto, com data de nascimento e uma foto muito bonita. Meu avô sempre falava: “Eu muito cansado, acho que vou me pendurar”. Pendurar usado no sentido de se enforcar, mesmo. A comunidade alemã trata a morte dessa maneira, muito normal. Lá perto fica Viranópolis, a cidade com maior casos de suicídios no Brasil, e a terceira no mundo.

JB: Qual o papel da internet na vida dos jovens de lá?
IC: A internet é muito forte lá, é uma revolução. Acho que funciona como um alívio, porque os adolescentes não se sentem mais sozinhos. Na minha época, eu tinha meus problemas e minhas vontades, que eram só minhas, já que não tinha com quem compartilhá-los. Eu era o cara errado da escola e pronto. Todo adolescente se sente isolado em seu mundo. Hoje, você entra numa sala de bate-papo e encontra 50 pessoas com as mesmas questões.
*Escritor gaúcho.
Reportagem de CARLOS HELI DE ALMEIDA, Jornal do Brasil - 30/09/2009
http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/09/30/e30099778.asp

Zelaya, o diabo e o bom Deus

Roberto Romano*
O mundo assistiu um ato comum entre ditadores e monarcas do mundo moderno. Recordemos a cena: na embaixada brasileira de Honduras, o deposto Zelaya recebe, boca aberta, uma hóstia dada por sacerdote. O que é dito na foto? Deus estaria com Zelaya e não com os que o expulsaram do poder. Que um líder empreenda instrumentalizar o fato religioso, não é novidade. Basta a memória de Henrique IV, protestante que, para assumir o trono, abandonou sua crença. Na hora decisiva ele teria afirmado: “Paris vale a missa”. Para garantir o mando, a religião se define como um trampolim. A blasfêmia foi partilhada pelo dono da ordem civil e pela Igreja. A “conversão” tardia transforma um serviço divino em comédia. A peça terminou de maneira sangrenta, pois o ator foi assassinado por Ravaillac, fanático que agiu em nome do ser divino.
Napoleão, que supostamente herda as formas democráticas da Revolução Francesa, não abriu mão da comédia religiosa ao ser entronizado. Para deixar bem claro o papel subalterno da Igreja, ele arrancou das mãos pontifícias a coroa imperial e a colocou na própria cabeça. Humilhação para o Papa, antigo titular da plenitude de todos os poderes na defunta República Cristã. No século 20, tanto Mussolini quanto Hitler aproveitaram a vacilação eclesiástica e a busca vaticana de recuperar poderes, abençoando celerados. Depois tivemos os ditadores que usaram a Igreja para se legitimar: Franco (Cruzada do Cristo Rei), Salazar, Peron, Vargas e militares brasileiros.
Nada pior do que o encontro de João Paulo 2 e Pinochet. O fato é narrado por Berstein e Politi, na sua biografia do Sumo Pontífice. Quando o Papa e o ditador estavam na porta do último, surgiu uma senhora com a pele queimada pela tortura. O papa virou-lhe as costas e, abraçado ao algoz, entrou na casa de quem, parece, salvou a “civilização cristã e ocidental” com meios piores do que os inquisitoriais.
Essas recordações nos conduzem ao golpe (ou contragolpe) ocorrido em Honduras. Quando Zelaya, sem nenhum pudor, comunga “urbi et orbe”, com evidente instrumentalização do culto em proveito político, ele evidencia o quanto seu governo ou estilo de mando é ligado à pior tradição autoritária da modernidade. Quando se fala em golpe, vale citar o clássico livro de Gabriel Naudé, as Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado (1640). Ali, o defensor do mando absoluto diz com evidência solar: “Nada ajuda mais os assuntos de um príncipe, do que a crença de sua união com Deus”. Esta é a divisa da Razão de Estado e dos regimes modernos e malditos. O governante deve mentir e dissimular quando se trata de convencer os dominados: “quem não sabe dissimular, não sabe governar” dizia o rei Luis 11, não por acaso apelidado “rei aranha”.
E por falar em Naudé, ele enuncia com clareza o que se passa nos golpes de Estado (ou contragolpes). Naqueles atos tudo se inverte “as matinas são ditas antes de serem anunciadas, a execução precede a sentença e tudo se faz (...) ao inverso. Um sujeito recebe o golpe, quando imaginava dá-lo”. Todos os golpes de Estado são ditos, pelos que os perpetram, contragolpes preventivos. Assim, os nazistas golpearam a República de Weimar porque, diziam eles, os comunistas dariam um golpe na Alemanha, à semelhança de 1917 na Rússia. A mesma desculpa é fornecida pelos citados Franco, Salazar, Peron, Vargas, militares e civis da “Redentora” em 1964.
Em Honduras não existe lobo mau nem Chapeuzinho Vermelho. Zelaya tentou dar um golpe e, como já avisara Naudé em 1640, recebeu um contragolpe. Quando ele ia com o milho golpista, os adversários apareceram com o angu de caroço de um regime difícil de ser definido. Fanáticos, como Ravaillac, enxergam Deus de um lado e de outro o Diabo. Mas esta é a comédia maniqueísta do poder, nada mais. Quem pensa com a própria cabeça conhece o truque de Zelaya e os recursos de seus oponentes. Os democratas não precisam, nem devem, preferir um ou outro, mas recusar os dois, meros irmãos gêmeos quando se trata de impor tiranias.
*Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia Política na Unicamp.
http://cpopular.cosmo.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1654778&area=2190&authent=68CBC4C9F273325059FC5BCAE10AC2 - Correio Popular, 30/09/2009

terça-feira, 29 de setembro de 2009

A máquina de fazer salsichas

Rubem Alves*
O aprendido é aquilo que fica depois
que o esquecimento fez o seu trabalho.
O objetivo será avaliar o que sobrou

UM HOMEM RESOLVEU dedicar-se à produção de salsichas. Aconselhando-se com técnicos e cientistas, foi informado de que o que havia de mais moderno para tal fim era uma máquina importada de fazer salsichas. Ele não titubeou: comprou a dita máquina porque queria ser um produtor de salsichas bem sucedido.
A máquina era assim: numa extremidade, havia um grande funil onde a carne deveria ser colocada. Apertava-se um botão e a máquina começava a funcionar. Na outra extremidade, fim do processo, saíam as salsichas gordas e vermelhas.
Mas não basta que a máquina produza salsichas. É preciso que a produção seja comercialmente vantajosa. E como se avalia isso? Comparando-se os quilos de carne colocados no funil inicial com os quilos de salsicha que saem na extremidade final da máquina. Se, na entrada, se colocam cem quilos de carne e saem 95 quilos de salsichas, a máquina é ótima. Mas se só saírem dez quilos de salsichas, a máquina não presta.
Não estou procurando sócios para uma aventura econômica. Minha coisa é a educação. E pensei que a educação poderia ser avaliada por um exame parecido com a máquina de salsichas -que comparasse os "quilos" de saberes que as escolas colocam nos olhos, ouvidos e memória da "máquina" chamada "aluno" com o que "sobra" ao final.
As escolas colocaram muita coisa dentro do meu funil, nos 17 anos que as frequentei. Quatro anos no curso primário, um no curso de admissão, quatro no ginásio, três no curso científico e cinco no curso superior.
Multipliquei o número de meses, pelo número de dias, pelo número de horas, pelo número de anos: cheguei a 16.830 -o número de horas que passei assentado em carteiras ouvindo a fala dos professores.
O exame -um tipo de Enem- seria assim: Primeiro: o programa para o exame seria constituído de tudo o que se pretendeu ensinar nesses 17 anos, do primeiro ao último ano. O que foi colocado no funil.
Segundo: os alunos não assinarão os seus nomes porque não são eles que estão sendo avaliados, mas o desempenho da máquina, isto é, do sistema escolar.
Terceiro: não haverá "cursinhos" preparatórios para tais exames. Será proibido também recordar a matéria. Guarde isso: o aprendido é aquilo que fica depois que o esquecimento fez o seu trabalho. O objetivo do exame será avaliar o que sobrou.Eu me sairia muito mal. Não me lembro das classificações das rochas. Lembro-me dos nomes "dolomitas" e "piroclásticas", mas não sei o que significam. Esqueci-me do "crivo de Erastóstenes". Não sei fazer raiz quadrada. Não sei onde se encontra a serra da Mata da Corda.
Também me esqueci das dinastias dos faraós. Não sei a lei de Avogadro.
Sei pouquíssimo de análise sintática. Acho que, dos 100% de saberes que as escolas tentaram enfiar dentro de mim, só sobrariam uns 10%.
Você depositaria suas economias mensalmente num fundo de investimento, por 17 anos, se você soubesse que depois desses 17 anos receberia só 10% do que você depositou?
Alguns concluirão que a culpa é dos professores. Outros, que a culpa é dos alunos. Não creio que a culpa seja dos professores ou dos alunos.
Acho mesmo é que a culpa é da carne que se põe na máquina: ela está estragada. As salsichas cheiram mal.
O nariz as reprova. O jeito é vomitá-las, isto é, esquecê-las.
Concluo: a performance das escolas melhorará se a carne estragada for substituída por uma carne que produza salsichas apetitosas...

Dois dedos de conversa

João Pereira Coutinho*
Aquele cumprimento firme, gentil, reforçado
pelo contato visual direto,
isso acabou

A REVISTA VIRTUAL "Slate" analisou há tempos um fenômeno que me intriga há séculos. Apertos de mão. Nenhuma metáfora: falo mesmo do momento banal em que duas pessoas se encontram, estendem as respectivas mãos e apertam-nas como sinal de reconhecimento social.
Para a revista, a arte está em declínio, e não necessariamente por culpa da gripe A. Está em declínio porque em declínio estão os cultores rigorosos do aperto. Posso confirmar o diagnóstico. Todos os dias, nas minhas aventuras citadinas, a evidência estende-se literalmente à minha frente. Alguém oferece a mão. Eu ofereço a minha.
E, quando o aperto se dá, tenho a desagradável sensação de que agarro um órgão mole e amorfo, muito parecido com um pênis em estado flácido. A sensação de repugnância é extrema, e a minha vontade é fugir dali: no aperto de uma mão, revela-se um caráter. A maioria dos meus interlocutores não tem caráter nenhum. E o oposto também acontece: gente que não aperta, mas esmaga os ossos do parceiro. Como se um cumprimento fosse o pretexto ideal para descarregar toda a insegurança de uma vida.
O equilíbrio perfeito de que fala a "Slate", aquele cumprimento firme, gentil, sempre reforçado pelo contato visual direto, isso acabou. As pessoas apertam com muita força ou com nenhuma força. Por vezes, nem sequer apertam a mão toda; só os dedos. E raramente fitam o outro olhos nos olhos.
Mas a crise das mãos não está apenas no aperto. Está sobretudo na caligrafia. Sou professor há vários anos e testemunho a evolução estilística do fenômeno: estamos a regressar à caverna, e a pintura rupestre ameaça substituir séculos de refinamento visual.
São raros os exames legíveis. Pior: cresce o número de alunos que, chamados ao gabinete, têm de ler em voz alta os textos que escreveram.
Por vezes, nem eles próprios reconhecem o que escreveram, como se a própria letra fosse um elemento estranho. Todos, ou quase todos, preferem escrever no computador e entregar trabalhos na única caligrafia que estimam. Não a caligrafia do João, da Maria ou do Francisco.
Mas a caligrafia do sr. Times New Roman.
Como explicar a crise das mãos?
Não pretendo vestir o traje de ludita moderno e apontar o dedo à tecnologia reinante. A história da técnica é o cemitério dos luditas. Ou o anedotário deles: hoje, lemos as sentenças apocalípticas que se disseram sobre o telégrafo, a lâmpada elétrica, o telefone ou a televisão e sorrimos com o sentido de superioridade que define a nossa arrogância.
Mas também é impossível negar completamente que a tecnologia reinante tornou as mãos, como instrumentos tangíveis de reconhecimento ou comunicação entre seres humanos, largamente dispensáveis.
Uma sucessão de redes sociais permite que as pessoas se "conheçam", se "falem", e até se "cumprimentem", sem sentirem verdadeiramente que está um ser humano do outro lado. Ninguém aprende a apertar mãos porque, desde logo, não existem mãos para apertar.
E as teclas de um computador explicam o resto: a caligrafia, um exercício demorado que exigia concentração e disciplina, é vista hoje como perda de tempo quando o computador garante rapidez e eficácia.
Esse dogma esquece uma desconfortável verdade: escrever à mão era também pensar com as mãos. Pensar ao ritmo dos seus movimentos e desenhar palavras com a prudência e a precisão de quem não pode apagar tudo e começar tudo de novo. Escrever era inscrever. Uma aproximação à eternidade. Isso significa que estou pessimista sobre o futuro? Nem pessimista nem o contrário: o futuro, como dizem os ateus, a Deus pertence.
Pessoalmente, eu só conheço o passado: há 5 milhões de anos, os australopithecus desceram das árvores, experimentaram o bipedismo e libertaram as mãos. Nascia o Homo habilis, capaz de fabricar instrumentos, de os agarrar e, com eles, de caçar nas savanas. Estava aberto o caminho para que o Homo erectus, finalmente, descobrisse o fogo. E, com o fogo, a civilização. Cinco milhões de anos depois, desconfio de que o meio em que vivemos será tão importante como foi no passado para o desenvolvimento físico e intelectual dos homens de amanhã. Não digo com isso que o futuro será dos manetas. Mas não excluo que as mãos entrarão em atrofia e que dois dedos cheguem para a conversa.
*Filósofo. Escritor. Colunista da Folha.
Folha de São Paulo, 29/09/2009

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Dom Helder, Irmão e Profeta

Geraldo Frencken *

Recife, 28 de agosto de 1999, a partir das 17.00 horas: uma multidão acompanha o carro dos bombeiros desde a Igreja das Fronteiras, cuja sacristia tinha servido durante quase trinta e dois anos como morada de Dom Helder Camara. Em cima do carro o caixão, e nele o corpo do Dom. Um percurso de uns sete, oito quilômetros. O povo cantando, rezando e dando adeus ao seu eterno pastor. O caixão desaparece debaixo das flores de todas as formas e todas as cores, "as rosas da minha vida", como Dom Helder a elas se referia. Ao chegar à catedral de Olinda e Recife, em Olinda, a multidão aplaude ininterruptamente e, com horas de atraso, a Missa de corpo presente começa a ser celebrada. De repente, em meio às solenidades oficiais, uma pessoa se solta do meio da multidão e coloca a bandeira do MST sobre o caixão do Dom: um profundo silêncio, alguns olhares perturbados, o Núncio Apostólico, presidindo a cerimônia, pergunta a um dos padres concelebrantes: "Que bandeira é esta?!" ..... Mas ninguém ousa remover este símbolo por mais justiça e paz na terra. Mais tarde, ao sepultar o corpo cansado do Dom, a bandeira permanece onde fora colocada, e pouco a pouco integrar-se-á à terra junto com aquele que dedicou a sua vida à defesa daqueles que não "possuem um palmo de terra para sobreviver", como rezava em sua oração à Mariama na ‘Missa dos Quilombos’.

A bandeira do MST é vermelha. Mas perguntemo-nos: Helder Camara, padre recém-ordenado (15-08-1931) no seminário da Prainha, fundador da Legião Cearense do Trabalho, não tinha vestido, escondido debaixo de sua batina, a camisa verde dos adeptos ao Integralismo que estava em moda naqueles dias? Que mudança! Ele mesmo, em uma de suas muitas poesias, reflete sobre as guinadas que acontecem na vida da gente, dizendo:

"Aceita as surpresas que transformam teus planos,
derrubam teus sonhos,
dão rumo totalmente diverso ao teu dia e, q
uem sabe, à tua vida.
Não há acaso.
Dá liberdade ao Pai,
para que Ele mesmo conduza
a trama dos teus dias."

É isso que Dom Helder deixou acontecer em toda a sua vida: deixar-se moldar e modular por Deus. Que Deus? O Deus dos pequenos, dos pobres, dos maltrapilhos, dos sem terra, sem teto, sem roupa, sem participação no assim chamado progresso do mundo. É o Deus dos povos da América Latina, chamada por Dom Helder de "a vila cristã do mundo pobre". Na sua "Sinfonia dos Dois Mundos", ele analisa que a miséria é a violência n.° 1 deste mundo pobre, afirmando: "Miséria que engloba sub-habitação, sub-trabalho, sub-diversão, sub-saúde, subvida, opressão: são estas as formas de violência que geram todas as outras".

Dom Helder via-se presente neste mundo. Era bispo da Igreja, mas era bispo para o mundo, tornando-se "sal da terra e luz do mundo" (cf. Mt 5, 13.14), como o Evangelho de Cristo manda ser todos os seus enviados. Por certo foi por isso que o nosso irmão, Padre Manfredo Araújo de Oliveira, disse, em 1999: "Dom Helder não cabe na Igreja!"

Ele, juntamente com o nosso querido e saudoso Dom Aloísio Lorscheider e tantos outros, era um dos arquitetos de uma Igreja presente no mundo a partir e no meio dos pobres. Teve participação nos grandes momentos da Igreja no século XX, como a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em 1952, o Concílio Vaticano II nos anos sessenta, e a Conferência do Episcopado Latino Americano em Medellín em 1968, colocando sempre como tema central o mundo dos empobrecidos. Na vida destes, ele não queria ser somente mais um que praticava a caridade, mas levava os próprios pobres a entenderem as causas da pobreza, da miséria, do descaso, apontando para as estruturas sociais, os mecanismos econômicos e a falta de compromissos políticos. Ele disse: "Homem, meu irmão, que fizeste dos pobres? Que fizeste da Ásia, da África, da América Latina da terra batida, da criança ensolarada?". Foi por esta opção radical e irreversível em sua vida pessoal, nas suas palestras e discursos pelo mundo afora, que chegava a dizer, entre outros: "Se eu dou comida aos pobres, eles me chamam de santo. Se eu pergunto por que os pobres não têm comida, eles me chamam de comunista", e, mais tarde, exclamou: "Dizem que é comunismo, mas é.... é Evangelho, Mariama!"

Nada o Dom fazia sem consultar seu maior amigo: o próprio Cristo, com quem manteve longas conversas na madrugada de todos os dias, diante do altar de quem dançava, inspirado por quem escrevia seus discursos, suas poesias, suas cartas e no altar de quem derramava lágrimas todas as vezes quando celebrava o amor de Cristo vivido na celebração eucarística, isto é na partilha do pão, gesto este que continuará "mistério", enquanto a humanidade toda não aprenda a partilhar seus dons espirituais e materiais.

Encontramos deste modo o profeta Helder.

Profeta é aquele que, na calada da noite, escuta seu Deus a fim de saber a quem se dirigir e o que falar, pois o profeta é aquele que empresta sua língua a Deus a fim de que Este fale.

O profeta é livre. Dom Helder, mesmo vivendo, como todos nós, dentro das rígidas estruturas da igreja e da sociedade, as mesmas para ele não pareciam existir, embora, como testemunha um amigo confidente dele, "ele tenha sofrido um bocado por causa de um determinado funcionamento delas." Um dia, Dom Jacques Gaillot, bispo de Partênia (Norte da África), amigo de Dom Helder, dizia: "Quando a gente tem medo não é livre, e quando é livre mete medo!" O Dom era livre, e aqueles que promoveram as injustiças e a opressão em nosso país, seja durante a ditadura como anterior e posterior a ela, exatamente por causa desta liberdade, o temiam, enquanto ele, Helder, não tinha o que temer! É nesta liberdade vivida, que nascera a denúncia nas palavras do Dom: denúncias contra todas as formas de sofrimento humano. E é na denúncia que o profeta faz germinar o anúncio, o anúncio da dignidade humana.

O profeta testemunha! Dom Helder optou livremente por uma vida austera, simples, junto dos seus irmãos, os pobres, seguindo os exemplos de dois gigantes do amor aos pobres na história: São Francisco de Assis e São Vicente de Paulo. O testemunho do Dom da Paz brotava justamente do perfeito equilíbrio, que havia nele, entre contemplação e ação.

Hoje nós temos saudade de profetas como Dom Helder, Dom Aloísio, as vozes e os testemunhos do passado recente. Mas não é só saudade que sentimos. Somos convencidos também de que o mundo sempre necessita de profetas. Nós deles precisamos!

Que a sociedade e, de forma especial, as igrejas permitam que haja sempre homens e mulheres que, livres, desimpedidos e com os pés no chão, na vida real, possam testemunhar o dom da "vida em abundância", cantado por Padre Reginaldo Veloso de Recife, como "o sonho mais lindo de Deus". Dom Helder realizou aquela parte deste sonho de Deus que lhe coube. A concretização da nossa parte do sonho de Deus será a nossa homenagem verdadeira a Dom Helder Camara.

Dom Helder nos dignifica a todos, cearenses ou amantes desta terra. Neste sentido havemos de promover sempre ações relevantes que tornem viva a memória deste homem, junto a todos que buscam por mais vida.
ADITAL - Fortaleza, setembro de 2009
* Holandês, residente no Brasil desde 1973. Padre casado, teólogo, ex-professor do Instituto de Ciências da Religião (ICRE) na Prainha. Membro de "O GRUPO"

Seriam as funkeiras neofeministas?

Márcia Fonseca Amorim*
Que motivações levaram a professora e linguista Márcia Fonseca Amorim a pesquisar o funk, manifestação rejeitada por parte significativa da sociedade? Ela diz que tentou lançar um olhar acadêmico sobre o que o funk realmente representa na sociedade brasileira. Para Márcia é possível, por meio do funk, constatar que a mulher reivindica um papel social, já percebido por alguns organismos internacionais que têm convidado funkeiras a participarem de eventos, pois as vêem como representativas de um movimento neofeminista. Além disso, constata ela, o funk brasileiro circula através de grupos de artistas pela Europa, EUA, América Central e está ganhando uma representatividade não percebida pelos que não dão atenção ao movimento.
Márcia se propôs a estudar qual o discurso que as mulheres do funk estão assumindo e como ele se situa na sociedade em geral. As letras das músicas revelam um discurso de liberdade sexual, enfatizada por coreografias sensuais. Ela analisa o discurso da mulher para a mulher, do homem para a mulher e aquele gerado em outros segmentos sociais como entidades religiosas, políticas e grupos intelectuais em relação a essa representação.

O trabalho deu origem à tese de doutorado, apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, que analisa “O discurso da e para a mulher no funk brasileiro de cunho erótico: uma análise do universo sexual feminino”. Na pesquisa, orientada por Jonas de Araújo Romualdo, Márcia relaciona a cultura às ações que a sociedade vai promovendo, independentemente de seu grau de letramento, situa o contexto do carnavalesco e considera a manifestação como decorrente da realidade social brasileira. Na opinião da pesquisadora, as letras das músicas traduzem o falar cotidiano de grande parte da sociedade brasileira, principalmente de grupos situados nas periferias dos grandes centros urbanos, e se inscrevem na literatura atual, em programas humorísticos, no teatro, entre outros.

Jornal da Unicamp – O que seu trabalho acabou mostrando de mais significativo?
Márcia Fonseca Amorim – Nas considerações finais do meu trabalho, digo que a mulher vem talhando a sua imagem em todos os segmentos sociais, o que se revela mais amplamente na vida profissional e na mídia, por exemplo, e isso é inquestionável. Mas as mulheres que se situam em atividades não consideradas relevantes para determinados setores da sociedade, porque envolvidas em uma série de tarefas que lhe são atribuídas e não socialmente valorizadas, mesmo essa mulher de periferia, estão buscando a construção de uma identidade e querendo mostrar que elas existem. E ela se mostra mesmo através da música que muitas vezes não é aceita fora do seu meio. Essa mulher tem necessidade da busca de prazer, de relações com outras pessoas e vai construindo uma imagem de um sujeito que participa do mundo, que tem alguma coisa a dizer, mesmo que esse dizer não seja o esperado pela Igreja, por algumas instituições e/ou organizações sociais. E, apesar de tudo, ela diz: “minha vida é assim e eu trato a minha sexualidade da mesma forma que muita gente trata, mas camufla. Não tenho medo de dizer o que faço e, se preciso, digo isso publicamente”. Ela se mostra como uma pessoa que não tem medo de se assumir perante a sociedade.

JU – Trata-se de uma ousadia?
Márcia Fonseca Amorim – Sim, e essa ousadia incomoda. Quem se sente incomodado em relação ao funk não é o funkeiro, que utiliza uma forma de expressão introjetada na sua realidade, mas os que acham aquela manifestação indigente, sem nada de intelectual, que consideram a batida muito pobre, um batidão, um pancadão, coisa repetitiva. Mas em outras instâncias da sociedade também ocorre repetição. Manifestam-se no funk grupos sociais que não circulam por outros escalões, que estão à margem da sociedade. Mas se verifica um fato paradoxal: no princípio, o funk era constituído apenas por afro-descendentes. Descendentes de outras etnias passaram a integrar o movimento porque encontraram nele uma forma de diversão. Viram nele uma forma de extravasar as emoções, a sexualidade, pois no funk existe espaço para que homens e mulheres de diferentes faixas etárias possam dizer o que pensam, o que muitas vezes não conseguem fazer em outros espaços sociais.

JU – Diante disso, como você situa seu trabalho?
Márcia Fonseca Amorim – É em torno dessa construção discursiva que meu trabalho se apóia; questiono, realmente, o que podemos considerar grotesco. É grotesco em que termos? Como não podemos definir um conceito de belo, também fica difícil definir um conceito de grotesco. Uma cena que ocorre comumente na periferia não tem naquele ambiente a conotação de grotesco, pois integra as diferentes práticas discursivas que ali se inscreveram. Ali se verifica uma reinterpretação que substitui o grotesco pelo real, porque aquelas pessoas vivem aquilo como particularidade de suas vidas, apesar do choque que possa provocar no olhar de quem chega. O funk reivindica um lugar entre os movimentos culturais porque traduz ou tenta traduzir a identidade de um grupo, e não importa que essa identidade seja construída à margem dos grupos mais intelectualizados.
O fato de eu trazer esse estudo para a academia não significa que o funk vá ter reconhecimento, pois ele pode continuar onde está. A intenção deste trabalho acadêmico é mostrar que esse movimento acontece no país, pessoas participam dele e ele faz parte daquilo que denominamos rea­lidade social brasileira. Tem uma representação expressiva, movimenta milhões na economia, influi na política e até na religião, pois temos o funk gospel e grupos de católicos carismáticos tocam, em ritmo de funk, músicas de louvor a Deus.

JU – O que lhe chamou a atenção inicialmente e a levou ao funk?
Márcia Fonseca Amorim – Meu interesse foi despertado a partir de reportagens apresentadas na TV. Mas o que mais me chamou a atenção foi o fato de que, enquanto o funk estava restrito à periferia, não incomodava muito. À medida que ele “desce o morro” e passa a circular por outras instâncias, desperta a atenção e passa a incomodar alguns segmentos sociais quando a “menina do asfalto” passa a frequentar manifestações antes restritas à “menina do morro”. Chamou-me a atenção o fato de mulheres que não são da periferia buscarem esses bailes que constituem uma festa como outra qualquer e como tal chama a atenção dos jovens.
Foi aí que resolvi estudar esse novo discurso em que a mulher assume, por meio das músicas que canta, a representação de uma cachorra, uma potranca, uma piranha, uma vadia. Vale lembrar que essa representação ocorre no interior do movimento e não condiz com a representação que essa mesma mulher assume em outras instâncias sociais. Ela está incorporando um discurso que antes era considerado machista. Mais ainda, de alguma forma está subvertendo esse discurso machista, como que dizendo: “agora eu digo de mim mesma o que eu quero”. Na verdade, ela assume esse discurso machista para romper com ele. Ao assumir a representação de piranha, ela se constrói discursivamente como adepta da prática sexual livre e se posiciona como uma mulher livre para atuar sexualmente na sociedade, rompendo com o conceito de piranha e adaptando-o à realidade sexual atual. Foi isso que me chamou a atenção.

JU – Isso não resvala para a baixaria?
Márcia Fonseca Amorim – É comum que pessoas, principalmente ligadas a certos grupos religiosos, a entidades de cunho feminista, entre outros, considerarem as letras baixarias. Trata-se efetivamente de um movimento musical que está tentando uma identidade social e procura se promover. Discute-se atualmente no Rio de Janeiro se o funk é cultura. Na verdade, o funk é apenas mais um movimento musical que vem buscando manter-se enquanto tal. O modo como se diz da sexualidade nesse movimento musical, embora possa incomodar a muitas pessoas, não difere muito de outras manifestações culturais. Por que o que se diz em uma peça teatral ou em um texto literário seria baixaria quando no funk? Os dizeres utilizados nas letras das músicas estão incorporados às comunidades. O estranhamento surge quando passam a circular no rádio e na TV aberta e pessoas que não se identificam com a proposta musical se sentem incomodas com o modo de dizer e de dançar inscrito no funk. Outras pessoas assumem a representação proposta pelo movimento apenas quando participam dos bailes, o que sugere que o funk é uma festa como as que envolvem o axé.

JU – Como a funkeira se vê?
Márcia Fonseca Amorim – São mulheres bonitas, de corpos bem definidos, que se produzem e cuidam da imagem. Essas mulheres costumam dizer que tudo se trata de uma brincadeira e consideram que muitas pessoas estão levando muito a sério a representação feminina no movimento. O que ocorre, segundo a MC Tati Quebra Barraco, é uma brincadeira com o que acontece no cotidiano não só da funkeira, mas de muitas mulheres. Não é o funk que está incentivando o sexo entre jovens, pois isso já ocorre independentemente do movimento. O funk é uma festa de natureza carnavalesca e, como tal, brinca com questões como a sexualidade, a representação social de homens e mulheres. No geral, constitui uma diversão. Hoje qualquer criança sabe quem é a Mulher Melancia e canta músicas funk. Essa manifestação está disseminada na sociedade.

JU – O que significam os nomes com que essas mulheres se autodenominam?
Márcia Fonseca Amorim – Surgiram com as mulheres que acompanham os cantores e estão relacionados com suas características físicas: Mulher Melancia faz destaque ao bumbum; Mulher Melão, aos seios grandes. Os nomes não projetam a mulher em si, mas algo que no corpo delas chama a atenção.

JU – E como o funk é tratado na mídia?
Márcia Fonseca Amorim – Muitos setores da sociedade tratam o funk como subcultura e o consideram um movimento musical marginalizado, associado geralmente ao trafico de drogas, à exploração sexual, à promoção da erotização de mulheres de diferentes faixas etárias, à incitação de crianças e jovens à prática sexual e à vulgarização da música brasileira. Esse tratamento pode ser encontrado em páginas de revistas e jornais de circulação nacional e entrevistas nos meios televisivos. Mas, paradoxalmente, o movimento ora é exaltado e ora é rechaçado pela grande mídia. A cultura funk está presente em grandes eventos como o São Paulo Fashion Week, o TIM Festival, mas também em matérias que tratam de mazelas sociais, do caráter muitas vezes considerado “vulgar/esdrúxulo” que permeia as letras das músicas e a dança, e do modo como a mulher se apresenta nos bailes e programas de televisão.

Oriundo dos EUA, gênero
ganhou os morros do Rio

O funk atualmente encontrado no Brasil tem suas raízes na junção da música negra e da musica gospel norte-americana. Chegou ao Brasil com uma batida mais leve que a atual e com letras que tratavam de temas diversos como paixões não correspondidas, desilusões amorosas, amores eternos. Encontrou sua maior expressão nos morros do Rio de Janeiro.

Nos últimos anos o funk carioca afastou-se da soul music e assumiu um ritmo semelhante ao encontrado na região de Miami (Miami Bass) com batidas mais rápidas, com músicas marcadas por protestos contra o tratamento dado pela sociedade em geral aos moradores dos morros e comunidades da periferia e por um teor mais acentuado de erotismo nas letras e no modo de dançar.

É na mulher que o funk brasileiro atual encontra sua maior expressão em relação ao modo de vestir e aos movimentos corporais, o que o levou a ganhar cada vez mais espaço na mídia brasileira. Neste particular, tem sido muito questionado o tratamento dado à mulher nas músicas e no modo como ela constrói sua representação no movimento.

Márcia Fonseca Amorim em seu estudo trata o funk como um movimento musical/social que integra música, coreografia, modo de se vestir e de se portar socialmente, e não apenas como um gênero musical.

Ela considera que o movimento tem uma identidade própria que o distingue de outras manifestações da música negra norte-americana, como o rap e o hip-hop, que se manifesta na forma como seus adeptos se posicionam em relação a si mesmos e à sociedade. Constata que o funkeiro geralmente se apresenta como o sujeito da favela que gosta de cantar e dançar de forma própria, despojada, utilizando o linguajar das periferias.
*Línguista.
Reportagem de CARMO GALLO NETTO - Postado no Jornal da Unicamp, 28/09/2009

O amor é uma dor de cabeça

Moacyr Scliar*
Quando, de carro, ele se aproximava do prédio
em que Carmen morava,
a cabeça começava a doer

O estresse psicológico e o esforço físico de manter uma relação extraconjugal podem dar origem à "cefaleia dos amantes", segundo o neurologista italiano Lorenzo Pinessi. "Esse tipo de cefaleia afeta sobretudo os homens, com uma intensidade proporcional à excitação", explicou o médico, que é presidente da Sociedade Italiana para o Estudo da Cefaleia. "Neles, o estresse psicológico devido à relação extraconjugal desencadeia fortes cefaleias, que podem durar até três horas", declarou o pesquisador italiano. Equilíbrio Online
PAULO JÁ tinha 15 anos de casado e se considerava feliz no matrimônio quando Carmen veio trabalhar na empresa. Era uma morena de olhos verdes, linda, sensual -tão logo a viu, Paulo sentiu que encontrara a grande paixão de sua vida. Dois dias depois, convidou-a para almoçar, e naquela mesma noite foi ao apartamento em que a moça morava sozinha; ali tiveram uma relação extraordinariamente fogosa, algo como Paulo nunca tinha experimentado antes.
Tornaram-se amantes. E isso foi também o início de uma série de tormentos para Paulo. Homem honesto, decente, nunca tinha traído a mulher, nunca tinha mentido para ela; agora, se via obrigado a inventar histórias: "Desculpe, querida, mas essa noite teremos mais uma daquelas chatas reuniões de trabalho", coisas assim. Se a mulher acreditava ou não, ele não sabia, mas o remorso era grande.
Pior, contudo, era a dor de cabeça. Homem sadio, Paulo raramente tinha qualquer problema físico. Agora, contudo, passara a sofrer de cefaleia, uma dor de cabeça fortíssima, tão forte que se viu obrigado a procurar um médico. O doutor pediu exames, que nada revelaram de anormal e apontaram para uma conclusão óbvia: aquilo era uma coisa emocional, resultado de estresse. Um estresse, disse o médico, cuja causa Paulo deveria descobrir e removê-la.
Ele sabia qual a causa do estresse: era a ligação extraconjugal que estava mantendo. Quando, de carro, se aproximava do prédio em que Carmen morava, a cabeça começava a doer. Sentia-se mal -e sentia-se mal por causa daquela paixão escondida, clandestina. Precisava fazer alguma coisa. E sabia o que tinha de fazer: tinha de parar com a mentira. De modo que confessou à mulher o que estava acontecendo e pediu o divórcio. Ela chorou muito, mas, mulher admirável, reconheceu que ele tinha o direito de rever sua vida. A filha única, já adolescente, concordou e disse que continuaria amando os pais.
Paulo foi morar com Carmen. A dor de cabeça cessou. Mas, coisa estranha, a paixão também diminuiu. Agora, o sexo era uma coisa rotineira, mecânica, insípida. Pior, ele descobria que a única coisa que o atraía em Carmen era isso, o sexo. Numa tarde de sábado, no supermercado, encontrou a ex-mulher. Cumprimentaram-se afavelmente, ele convidou-a para um café.
Enquanto conversavam ele a olhava, nostálgico -e apaixonado. Sim, apaixonado. Seria ela o grande amor de sua vida? De repente, voltou-lhe a dor de cabeça. Mas, dessa vez, ele a recebeu com júbilo, com emoção. Não era uma simples cefaleia. Era a paixão. Que ele estava redescobrindo.
*MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha. moacyr.scliar@uol.com.br
Folha, 28/09/2009

No Sinai

Luiz Felipe Pondé*
O perdão é maior do que a justiça,
ele cabe ali onde a justiça não seria suficiente

QUANDO VOCÊ estiver lendo esta coluna no dia 28 de setembro, caro leitor, eu estarei de jejum, na sinagoga. Hoje é o Dia do Perdão, data máxima do calendário judaico. O que significa o Dia do Perdão? Um bom ponto de partida para pensar em seu significado é a passagem da Bíblia hebraica quando os hebreus, ao pé do monte Sinai, aguardam o retorno de seu líder Moisés com as tábuas da Lei.
Mas nem tudo saiu como se esperava: Moisés atrasa seu retorno (fica 40 dias na montanha) e o povo perde a paciência. Quando volta, encontra os recém libertos da escravidão no Egito adorando um bezerro de ouro. Deus, irritado, mata a metade ali mesmo. A outra metade será condenada a vagar perdida pelo deserto do Sinai até que morram todos e seus filhos possam, enfim, entrar na terra prometida. E aí está o perdão.
Dirá o leitor irritado: "Mas onde?". Antes de tudo, caro leitor, tenha em mente que perdão e justiça não são a mesma coisa. O perdão é maior do que a justiça, ele cabe ali onde a justiça não seria suficiente. Você pode ser justo com alguma pessoa, sem perdoá-la.
Claro que muitos de nós, pessoas educadas, não acreditam que esta seja uma narrativa histórica, mas sim mítica. O que é um mito? Muita gente boa estudou isso: os psicólogos S. Freud e C.G. Jung, os historiadores das religiões M. Eliade, J. Campbell e K. Armstrong, e o filósofo E. Cassirer. Um modo minimamente correto de entender é pensar que o mito não descreve necessariamente um fato histórico, mas sim vivências humanas ancestrais que falam do significado da vida.
Pessoalmente prefiro ler textos bíblicos como narrativas literárias, além, é claro, de lê-los como livros sagrados, caso a leitura seja confessional, que não é meu caso aqui. Minha restrição a leitura psicologizante ou marxista de textos bíblicos é porque estas leituras pecam por ferir a própria "trama", a fim de reafirmar a teoria que usamos para lê-lo. Explico-me.
O crítico Anatol Rosenfeld escreveu um ensaio em sua coletânea "Texto e Contexto" (ed. Perspectiva) chamado "Psicologia Profunda e Crítica", no qual ele dá boas dicas do por que não abordar um texto literário reduzindo-o a excessos psicologizantes. Sua crítica cai sobre a tentativa de ler, por exemplo, Hamlet como mais um rapazinho que queria transar com a mãe e matar o próprio pai. Ou ler Santa Tereza d'Ávila em chave junguiana e ver em seus escritos místicos mais um processo de individuação.
Acho que no caso freudiano a redução é ainda pior porque o conceito de inconsciente coletivo em Jung preserva um drama maior nos personagens do que uma mera "historinha de uma menina esquisita e sua mania neurótica por Deus". E, por isso, ele sustenta a dramaticidade para além da "mera" sexualidade neurótica da menina.
Para Rosenfeld, não devemos psicologizar personagens porque, ao fazer isso, vamos a "Hamlet" apenas para reencontramos a teoria de Freud e assim perdemos "Hamlet" e ficamos apenas com seu "mesquinho" complexo de Édipo. O mesmo, digo eu, acontece quando lemos a Bíblia à cata de interpretações marxistas ou políticas: lemos a Bíblia para rever a luta de classes e a disputa política, e o drama específico narrado se perde, junto com a força de seus personagens.
Neste sentido, se não entendermos a relação entre o "personagem" Deus de Israel e os heróis bíblicos para além de reduções psicológicas ou políticas, perdemos a força do perdão dado no Sinai.
Deus não precisa perdoar ninguém porque Ele não precisa de ninguém. Este é o personagem. Quando o povo trai a aliança depois de tudo que Ele fez, Ele poderia simplesmente destruir tudo. Fosse Ele apenas justo, o sol pararia de brilhar. A ideia que Deus seja misericordioso nasce do fato que Ele nos criou e é paciente conosco sem precisar sê-lo. Daí a afirmação comum na Bíblia hebraica de que Ele carrega o mundo na palma de Sua mão enquanto nós somos uma sombra que passa.
O filósofo judeu A.I. Heschel (século 20) diz, num texto dedicado ao Dia do Perdão, que neste dia estamos de pé diante de Deus. O sentimento é de "pahad" (medo em hebraico). Devemos abaixar a cabeça e tremer, desnudando um coração que diante de Deus é sempre nu. Evidente que, além do temor, está em questão as grandes virtudes hebraicas, a gratidão, a coragem e a humildade. O pó em nós estremece diante da imensidão infinita que é Deus. Ao ouvir o coração disparado de medo, devemos escutar nele a alegria que é existir.
* Luiz Felipe Pondé - Possui graduação em FIlosofia Pura pela Universidade de São Paulo (1990), mestrado em História da Filosofia Contemporânea pela Universidade de São Paulo (1993), DEA em Filosofia Contemporânea - Universite de Paris VIII (1995), doutorado em Filosofia Moderna pela Universidade de São Paulo (1997) e pós-doutorado (2000) em Epistemologia pela University of Tel Aviv. Atualmente é professor assistente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor titular da Fundação Armando Álvares Penteado. Outros vínculos significativos em pós-graduação: Escola Paulista de Medicina, Unifesp, professor e pesquisador convidado (2007) , University of Warsaw, professor convidado (2007), Universität Marburg, professor e pesquisador convidado (2002 e 2003) - University Of Tel Aviv, pesquisador (1999 a 2000) - Universite de Paris VIII, pesquisador (1994 a 1996) - Universidad de Sevilla, professor convidado (2005) - Universite Catholique de Louvain (2002 até o presente) e colunista exclusivo do Jornal Folha de S. Paulo. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Ciências da Religião e Filosofia da Religião, atuando principalmente nos seguintes temas: religião, mística, santidade, angústia, modernidade/Pós-modernidade e epistemologia
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2809200917.htm

Os pés do defunto

José de Souza Martins*



Morrer é muito mais complicado do que se pensa. Mesmo na modernidade de São Paulo, em que muitos presumem que quem morreu "está morrido", e ponto final. Ritos muito antigos sobrevivem por aqui, infiltrados no suposto racionalismo que cerca, entre nós, a banalização da vida e, em consequência, a banalização da morte. Tudo remanescente de um tempo em que se concebia a vida como um dom, o corpo como instrumento simbólico do sagrado.

A morte, incontornável, pedia e pede ainda ritos apropriados para o cumprimento do que os protestantes estrangeiros, que por aqui andaram nos séculos XVIII e XIX, registraram surpresos como o imaginário do "tenebroso transe", a passagem do mundo da luz e da vida para o mundo da morte. Os cuidados rituais, como o da vela acesa numa das mãos do moribundo, tinham e têm ainda a função de prover a alma do morto com a luminária que alumiará o seu caminho até o ponto de destino, o mundo encantado dos mortos. No Hospital do Câncer, conheci um paciente que, na falta de vela, acendia em desespero um fósforo atrás do outro, da caixa de fósforos de seu colega de quarto, para pôr-lhe nas mãos, fumante inveterado, que morria derrotado por um câncer na garganta, a luz dessa travessia.

Luís da Câmara Cascudo discorreu, num de seus livros, sobre a oposição entre a espacialidade dos vivos e a dos mortos. Porque nascemos, via de regra, com a cabeça para fora e os pés voltados para dentro do corpo da mãe, a ordenação do espaço do velório do morto e a saída do seu enterro é exatamente oposta à do nascimento. O defunto, em seu caixão, fica com os pés virados para a porta de saída do recinto ou da casa. A casa na nossa cultura é uma casa uterina e feminina, por isso lugar da vida que precisa ser constantemente descontaminado dos resíduos da morte. Sempre houve, justamente, muitas resistências à participação da mulher nos enterros e, sobretudo, a que segurasse uma das alças do caixão do morto, com a exceção dos funerais de crianças que, sendo anjos, propriamente não morrem.

Evidências desses ritos existem por aqui mesmo, em nossas casas. Praticamente em todas elas existe a precaução de situar as camas de maneira que os pés não fiquem posicionados em direção à porta da rua, à porta de saída da casa ou do apartamento, que é a posição do morto. Mesmo em barracos de favela notei esse cuidado. As camas são colocadas de maneira que os pés de quem dorme fiquem voltados para o interior da casa, a mesma posição de quem está nascendo em relação ao útero da mãe. Exorcismo preventivo da morte praticado mesmo por quem não acredita nessas coisas nem as teme. Já a posição do morto, no velório, tem por objetivo expulsá-lo do meio dos vivos, indicando-lhe a porta de saída, para que não fique assombrando os que permanecem.
*José de Souza Martins, sociólogo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 28-09-2009 e no IHU/unisinos.

Teste não dá certeza, aponta tendências

Roberto Recinella*

No último século, surgiu mais um dilema shakespeariano para o ser humano solucionar e que vem se agravando com o passar dos anos, bem ao estilo de Hamlet: ser ou não ser, eis a questão.
Atualmente, milhões de jovens às vésperas de ingressarem no nível superior tentam responder a essa simples, mas enigmática, pergunta.

A verdade é que mesmo aqueles que já se decidiram profissionalmente mudam de opinião largam a faculdade e até o trabalho após formados e se aventuram em outro curso para iniciar outra carreira, às vezes totalmente diferente da anterior. Não há vergonha nenhuma em fazer isso.

São engenheiros que desejam ser psicólogos, advogados que querem ser dentistas, veterinários que pretendem ser atores e até médicos que abandonam seus consultórios para se tornarem músicos.

Na minha opinião, não existe uma regra ou receita para escolher uma carreira, do mesmo modo que não há receita para a vida ou para o casamento. Existem possibilidades e todas elas motivadas pelo coração, pela paixão de fazer o que se gosta. Mas somente essa paixão não garante sucesso – é preciso muito esforço e dedicação também!

Se compararmos a carreira com o casamento, percebemos que existem algumas semelhanças.
A primeira são dogmas sociais, as pessoas preferem ficar infelizes a trocar de casamento ou de carreira.
Segundo: somente a paixão não basta, ela termina e passamos vivenciar o dia-a-dia. Então, lembre-se de que tudo na vida tem um lado chato e na sua carreira não será diferente; nem tudo serão flores.
Terceiro: você nunca deve parar de evoluir, senão acabará tanto com a sua carreira como com seu casamento.
Como não existem fórmulas mágicas, seguem dicas daquilo que não devemos fazer:
Não ceda a pressão de seus pais e parentes, seja para dar continuidade à geração de médicos da família ou porque o sonho da sua mãe é ter um filho doutor. A carreira é sua, então a decisão também.

Competência não tem profissão, nem idade, por isso não pense em dinheiro quando for escolher sua carreira. Ele é consequência.

Não gere expectativas errôneas sobre as carreiras. Se você, por exemplo, quer ser um designer de games, procure alguém que faça isso e acompanhe seu trabalho por um período para conhecê-lo. Pesquise.

Também é fundamental saber quais são suas vocações. Todos possuem aptidões distintas que podem e devem ajudar na escolha da carreira. Procure saber quais são as suas. Para isso, procure um profissional competente para orientá-lo, pois ele é essencial nessa fase do processo. Isso facilitará a sua escolha, ajudará a descobrir as suas motivações e habilidades e, com certeza, lhe dará mais segurança, diminuindo assim as chances de uma escolha equivocada.

Testes vocacionais são válidos, mas eles apenas indicam tendências e não certezas. Além disso, em alguns casos, podem agravar ainda mais a nossa angústia se não tivermos antes feito a nossa “lição de casa”.

O que eu chamo de “lição de casa” é pegar um papel e dividi-lo em quatro partes iguais. Faça uma linha na horizontal e outra na vertical; depois, em cada quadrado, responda nesta ordem:
o que adoro,
odeio,
gosto e
não gosto.
É uma lição de autoconhecimento.

Pegue a folha e anote em cada um dos quadrantes as respostas. Por exemplo, se você odeia matemática, dificilmente será um engenheiro; por outro lado, se odeia sangue, com certeza não será um bom médico, dentista ou veterinário. Mas o simples fato de você amar música ou teatro não significa também que você tem vocação para ser um artista. O objetivo do exercício é descobrir quais são as suas motivações básicas.

Você deve ter um nível de autoconhecimento bom o suficiente que o permita responder sobre o que gosta de fazer, quais suas habilidades, o que espera do futuro, além de estar a par da situação do mercado atual.

Ao terminar de fazer isso, realize uma viagem mental, imagine-se exercendo a sua profissão pelas próximas décadas e depois, com 100 anos, sentado em uma poltrona, contando aos seus bisnetos como foi feliz na escolha de sua carreira.
* Roberto Recinella é consultor em Gestão de RH.
Jornal do Brasil - 23:39 - 27/09/2009
http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/09/27/e27098964.asp

domingo, 27 de setembro de 2009

Família ampliada: "É a fórmula preferida dos filhos".

O "terceiro genitor"?
Isso confunde as ideias das crianças, diz Bento XVI, não aprovando aquelas famílias ampliadas que a França gostaria de legalizar e que também na Itália continuam crescendo, chegando quase a um milhão. A culpa? Segundo o Papa, é do divórcio, que tornou possível o nascimento de segundas e terceiras famílias e a "partilha" dos filhos nascidos de casamentos anteriores. E não importa se os exemplos são quase ilustres, se Carla Bruni é fotografada nas Nações Unidas ao lado de Louis, o filhinho do marido Nicolas Sarkozy e da sua mulher Cecilia, enquanto, com olhar igualmente admirado, escutam o presidente. Nem se, no fim, até William e Harry acabaram aceitando a odiada Camilla Parker-Bowles, segunda mulher do princípe Charles e "usurpadora", no coração de muitos ingleses, das prerrogativas da loira e desventurada primeira mulher.

Uma viagem pela realidade italiana também permite que se verifique como os modelos "incertos" rejeitados pelo Vaticano já são realidade para muitíssimos jovens, se é verdade que pelo menos 800 mil italianos já se casaram uma ou mais vezes. Carmen Belloni, socióloga, professora da universidade de Turim, conduz uma pesquisa que já levou realizou centenas de entrevistas com crianças e jovens nas escolas. E ela comenta as palavras do Papa: "O divórcio em si mesmo não é nem bom, nem ruim. Pode ser doloroso assim como é doloroso viver em uma família onde se fica juntos apenas por obrigação, e as tensões continuam crescendo".
Mas a família ampliada, segundo a socióloga, é, pelo contrário, uma realidade protetora para os menores. "Não só o fenômeno está em crescimento – explica Belloni –, mas as crianças entrevistadas fala com extrema desenvoltura da sua vida 'móvel', do fato de que mudam de uma casa para a outra, de uma realidade para a outra... Em torno deles, há muitíssimos exemplos, especialmente nas grandes realidades urbanas, que permitem que eles não se sintam isolados. Assim, no seu diário, narram de modo extremamente natural tanto a sua divisão entre os dois pais biológicos, como os novos sujeitos, tanto adultos quanto crianças como eles, que começaram a fazer parte das suas vidas".
O mapa das "novas famílias" é feita de apelidos que já entraram no léxico familiar dos italianos: há o "papigno", a "mammastra", mas também o "nipotino" ou o "cugipote", para indicar aqueles rapazes de idade não distante que são sobrinhos e primos, como ocorria há um tempo com os irmãos por parte de um dos pais das grandes famílias patriarcais, principalmente no Sul, onde os homens que ficavam viúvos "deviam" se casar novamente e ter outros filhos.
Mas há também uma nova e prosaica realidade que sugere novas alianças e recomposições familiares o mais possível criativas. Chama-se crise econômica: "Os dados nos dizem que as mães que ficaram sós caem mais facilmente em situações de pobreza – diz Belloni –, e que as mesmas mulheres e seus filhos são mais protegidos por esse Estado se a mãe encontra um novo companheiro. Nesse sentido, a presença de novos adultos e novos menores no âmbito da realidade familiar modificada que intervém depois de um divórvio protege os menores do risco de ver cair o seu próprio padrão de vida, mas também da desvantagem educativa que pode derivar da pobreza e de um único genitor muitas vezes ausente, por ser muito comprometido a enfrentar as exigências cotidianas".
Também surgem réplicas do mundo laico e da sociedade civil que, nestes anos, se empenhou a dar dignidade às novas mães e aos novos pais chamados a se ocupar cotidianamente de crianças biologicamente distantes: "Na família recomposta há amor para todos e também responsabilidade", diz Simona Izzo, enquanto para Rossella Calabrò, fundadora do "Club delle matrigne" [Clube das madrastas] italiano, "é a fórmula preferida dos filhos, muitas vezes são eles mesmos que indicam o caminho da ampliação, até quando os adultos não são capazes disso".
*A reportagem é de Vera Schiavazzi, publicada no jornal La Repubblica, 26-09-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. IHU/Unisinos, 27/09/2009

'Luta por reconhecimento"

A dimensão moral
Axel Honneth, herdeiro da Escola de Frankfurt,
defende a existência de uma "luta por reconhecimento"
dos sujeitos e grupos em toda dinâmica social,
mesmo nos conflitos que parecem ser
puramente "materiais'
Os conflitos por redistribuição
representam formas implícitas de
luta por reconhecimento

Para o filósofo alemão Axel Honneth, um dos problemas para a superação da crise socioeconômica na Europa é a ausência de ideias novas na política: "Todos os caminhos parecem estar de algum modo obstruídos".Diretor do Instituto de Pesquisa Social, onde se desenvolveu a chamada Escola de Frankfurt, ele se refere à ineficiência econômica da social-democracia e à resistência dos liberais em limitar o mercado.Honneth, que faz palestra sobre o pensamento alemão contemporâneo amanhã (às 19h, no Instituto Goethe, em São Paulo, com entrada franca), ressalta que os intelectuais também precisam renovar o repertório.O pensador, representante da teoria crítica e ex-assistente de Jürgen Habermas, afirma à Folha que a fundamentação herdada dos frankfurtianos -"fusão" de Hegel (1770-1831), Marx (1818-83) e Freud (1856-1939)- envelheceu.O autor de "Luta por Reconhecimento" (ed. 34) defende, no entanto, que uma teoria crítica renovada deve ter um papel importante em repensar o capitalismo visando à emancipação dos indivíduos. Na entrevista abaixo, ele também comenta sua expectativa em relação ao presidente dos EUA, Barack Obama, e defende seu conceito de "reconhecimento" como fundamental para a compreensão dos conflitos sociais no mundo atual.

FOLHA - O sr. chega ao Brasil no momento em que acontecem eleições gerais na Alemanha. Apesar da profunda crise econômica, a atual primeira-ministra, Angela Merkel, é a favorita e os debates eleitorais estão em baixa temperatura. Como entender isso? Estaria ligado a um processo mais geral de perda de vitalidade das democracias?
AXEL HONNETH - Vocês têm razão quando afirmam que, apesar dos crescentes problemas sociais, o interesse público nas próximas eleições continua muito pequeno, mesmo com toda a tentativa de se chamar a atenção com a encenação midiática.Uma explicação que me parece apenas superficial dessa atitude diz respeito à "grande coalizão", nesse período de governo que está chegando ao fim, entre democratas cristãos e social-democratas, a qual dificultava entrever alternativas programáticas entre ambos os partidos. Parece-me mais decisivo, no entanto, o fato de, em amplos círculos da esfera pública política, imperar uma certa perplexidade sobre os instrumentos apropriados para a superação da crise social.Todos os caminhos parecem estar de algum modo obstruídos. O recurso às velhas receitas de sucesso da social-democracia se tornou impossível, pois o aumento dos programas sociais tem por consequência o crescimento do desemprego.Desconfia-se das promessas dos partidos da "esquerda" porque pretendem realizar a justiça social desconsiderando o processo de unificação europeu. Em suma, não temos mais um conhecimento imediato do problema e concordamos apenas que temos de impor fortes limites ao mercado capitalista. Porém, com exceção dos liberais, todos os partidos concordam em relação a isso, a despeito das poucas polarizações e da falta de interesse.

FOLHA - Em tempos recentes, o termo "reconhecimento" adquiriu um papel importante na esfera pública e na vida cotidiana. Mas muitas vezes é empregado em sentidos bem pouco críticos, como quando pessoas se dizem reconhecidas simplesmente por terem mais dinheiro, mais poder ou mais prestígio do que outras. Como a ideia crítica de reconhecimento que o sr. propõe se distingue desse tipo de situação? Há casos de "falso" reconhecimento?
HONNETH - É claro que existem essas formas de "falso" reconhecimento. E elas inclusive aumentam nas sociedades capitalistas liberais do Ocidente porque seguem o programa neoliberal, que, ao apelar positivamente para sua flexibilidade e mobilidade, leva as pessoas a aceitarem relações desregulamentadas de trabalho.Também a história nos mostrou casos de uso "ideológico" da retórica do reconhecimento. Pensem nas imagens culturalmente difundidas da "boa dona de casa" ou do "bravo guerreiro", todas gestos públicos de reconhecimento que preenchem essencialmente a função de motivar as pessoas a consentir com posições de subordinação.Contudo, é difícil determinar o limite exato entre formas "falsas" ou "corretas" de reconhecimento. Eu diria resumidamente que todas as formas de reconhecimento que são adequadas e promovem a emancipação são aquelas que, com base em princípios já aceitos de reconhecimento, possibilitam ampliar social e substancialmente sua aplicação.Para falar mais concretamente: lá onde até então as qualidades desrespeitadas de uma pessoa ou grupo depararam socialmente pela primeira vez com reações afirmativas, lá onde grupos até agora excluídos foram providos de direitos que uma maioria já dispunha, em todos esses casos se trata de uma expansão de relações de reconhecimento que promovem a emancipação.

FOLHA - O sr. sempre formulou sua teoria do reconhecimento tendo como referência a teoria crítica, de nomes como Horkheimer, Adorno, Marcuse e Habermas. Em um texto de 1982, o sr. escreveu: "Embora frequentemente declarada morta, a teoria crítica demonstra uma espantosa capacidade de sobrevivência". Em 2007, o sr. inicia seu inventário da teoria crítica com palavras que parecem ir na direção contrária: "Na mudança para o novo século, a teoria crítica parece ter se tornado uma figura de pensamento do passado". O que aconteceu nos últimos 25 anos para que sua avaliação tenha mudado tão drasticamente?
HONNETH - Tenho a impressão de que não existe em absoluto uma oposição entre essas duas passagens citadas por vocês. Na última citação eu pretendi mostrar, sobretudo, que as figuras de pensamento da primeira geração da teoria crítica, com a fusão de Hegel, Marx e Freud, hoje certamente envelheceram do ponto de vista teórico. Não podemos agir como se esse instrumental conceitual ainda pudesse ser utilizado atualmente sem qualquer modificação.Por outro lado, porém, procurei mostrar na primeira citação que o interesse pela teoria crítica nunca foi abandonado, pois com tal postura crítica ainda vinculamos a esperança de uma análise dos males sociais a uma perspectiva emancipatória. Considerando juntamente as duas citações, podemos chegar à ideia de manter as fortes pretensões da velha teoria com meios teóricos modificados.

FOLHA - Recentemente, o sr. criticou a escassez de investigações críticas em torno de "um conceito emancipatório, humano de trabalho". E enfatizou que "uma parte crescente da população luta tão somente para ter acesso a alguma chance de uma ocupação capaz de assegurar a subsistência; outra parte executa atividades em condições precariamente protegidas e altamente desregulamentadas; uma terceira parte, por fim, experimenta no momento a rápida desprofissionalização e a terceirização de seus postos de trabalho, que anteriormente ainda tinham um status assegurado". O sr. vê contratendências a esses movimentos destrutivos? Ou um "trabalho dotado qualitativamente de sentido", como o sr. defende, é hoje apenas um ideal?HONNETH - Essa é uma pergunta muito complexa, que pode ser respondida empiricamente ou a partir de uma teoria social. Se nos detemos nas investigações empíricas, então se nota que o desejo de uma melhora nas condições de trabalho nunca foi abandonado pelos próprios empregados. Esse interesse, embora seja negativamente perceptível na forma de recusas de trabalho e de manifestações de insatisfação, estende-se não apenas à garantia de um salário capaz de assegurar a subsistência, mas a uma melhora qualitativa da situação de trabalho, ou seja, à criação de atividades suficientemente complexas e que não causam danos psíquicos ou físicos.Sob o ponto de vista da teoria social, creio poder mostrar que a aprovação de tais formas de trabalho "dotadas de sentido" está estruturada nos próprios princípios normativos do mercado capitalista: este promete aos empregados desde o início não apenas um salário adequado à manutenção da própria vida, mas também uma participação na reprodução social que seja abrangente e condizente com a divisão do trabalho.

FOLHA - A queda do muro de Berlim significou há 20 anos a bancarrota do socialismo de Estado. A atual crise econômica parece marcar o fim do neoliberalismo. Que balanço o sr. tiraria desse período? Na sua opinião, o presidente norte-americano Barack Obama representa o símbolo de um novo período?
HONNETH - Sim, eu estou otimista o suficiente para ver de fato em Obama algo como a forma histórica do impulso político por mudança -não apenas no que diz respeito à relação malograda e infeliz com o mundo islâmico, mas também com referência à necessidade de uma correção política da economia neoliberal.

FOLHA - Desde a publicação no Brasil de seu livro "Luta por Reconhecimento", em 2003, a recepção de seu trabalho tem passado em grande medida pela polêmica que o sr. travou com a teórica crítica norte-americana Nancy Fraser, que criticou sua posição dizendo que uma centralidade do conceito de reconhecimento acabaria por relegar a segundo plano as lutas por redistribuições materiais da riqueza. Que balanço o sr. faz dessa polêmica hoje?
HONNETH - Eu receio que as objeções de Nancy Fraser nunca modificaram realmente o meu modo de pensar. Além disso, estou convencido de que os conflitos por redistribuição representem formas implícitas de luta por reconhecimento porque, na demanda por uma maior participação no total da riqueza social, visam ao reconhecimento de um benefício que até então não foi adequadamente honrado nem tornado digno -quem insiste em aprofundar o vão entre os dois tipos de conflito social perde de vista a dimensão moral de todas as lutas por distribuição.
Tese de Honneth é marcada por polêmica
Reportagem de RÚRION MELO e o colunista da Folha MARCOS NOBRE - Folha - Caderno MAIS, 27/09/2009

DA REDAÇÃO
Axel Honneth explica os conflitos e a dinâmica social, em grande medida, pela luta por reconhecimento.Seu argumento parte das relações interpessoais: as definições de reconhecimento -"amor", "direito" e "solidariedade"- desenvolvem-se nas relações sociais em autoconfiança, auto-respeito e autoestima. A injustiça social, a desigualdade de direitos ou o preconceito ferem a busca por reconhecimento de cada indivíduo -e causam reações.
Nancy Fraser, professora da New School for Social Research, em Nova York, é a principal contestadora da centralidade do conceito de reconhecimento.Para Fraser, também afiliada à teoria crítica, as desigualdades sociais não devem ser pensadas com ênfase em seu valor simbólico, mas sim na distribuição de recursos materiais.