sexta-feira, 10 de abril de 2009

A Páscoa e a humanização do mundo

Leomar Brustolin*
O sentido da morte de Jesus
“abrange toda a realidade humana alienada
de diferentes formas
pela força do mal.
Para falar da paixão de Jesus Cristo hoje,
portanto, será preciso encontrar
o significado
dessa morte para nós”.
A análise é do padre Leomar Brustolin. Em suas respostas, ele declara que “a beleza sempre nova da Páscoa, a passagem para as primaveras da vida, a libertação das amarras do presente e a ressurreição que dá sabor ao cotidiano ficam escondidas e somente são acolhidas por aqueles que esperam um tempo novo, um outro mundo possível”. Refletindo sobre o significado da Páscoa em nossos dias e sobre a importância de Jesus Cristo, Brustolin considera que “o que dá sentido à morte de Jesus é a sua total fidelidade ao Pai e ao seu projeto de salvação. A cruz é o fim de um processo”. E completa: “Seguir Jesus hoje significa não temer a estranheza entre o Evangelho e o estilo excludente de vida que se impôs entre nós”.
Leomar Antônio Brustolin é pároco da Catedral Diocesana de Caxias do Sul. Possui graduação em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mestrado em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), em Belo Horizonte, e doutorado em Teologia, pela Pontificia Università San Tommaso, em Roma, Itália. Atualmente, é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, onde é coordenador do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Teologia. De sua autoria, destacamos: Quando Cristo vem... a Parusia na Escatologia Cristã (2. ed. São Paulo: Paulus, 2001), Maria, símbolo do cuidado e Deus (São Paulo: Paulinas, 2004), Antonio Francisco. Caminho de fé. Livro do catequizando (São Paulo: Paulinas, 2006) e A fé cristã para catequistas (São Paulo: Paulinas, 2008). Ele estará presente na Unisinos hoje, dia 06 de abril, participando do evento de Páscoa promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, com a palestra “A paixão de Cristo hoje”.
Confira a entrevista.

O que significa, hoje, a Paixão de Cristo?
Leomar Brustolin - Vivemos num mundo marcado tanto pela beleza, pelo conforto e pelo prazer, quanto pela dor, pelo vazio e pelo mal. O sofrimento, entretanto, questiona o sentido da vida. Queremos justificar a presença intrusa do mal buscando seus responsáveis. Muitas vezes, a procura dos culpados nos faz esquecer das vítimas. Nem sempre é possível identificar a causa da dor. Em alguns casos pode ser o resultado de um processo violento cometido livre e conscientemente por grupos ou indivíduos. Assim se conhece a paixão causada em Auschwitz, Hiroxima e Nagasaki. Outras vezes, pode ser o que resulta da injustiça social. É o caso da fome e do desemprego causados pelo sistema econômico. Pode ser também a paixão de sentimentos enlouquecidos que matam o outro. Como o ocorrido com a menina Eloá, em São Paulo, mantida em cárcere privado e assassinada pelo namorado. Pode ser até a paixão da natureza destruída pela intervenção humana. Veja-se a situação da Amazônia brasileira. Enfim, pode ser também a fatalidade da vida que está sujeita aos acidentes naturais. Esse foi o mal experimentado pelas vítimas do tsunami, a onda gigante gerada por distúrbios sísmicos, que possui alto poder destrutivo quando chega à região costeira.

Como falar da paixão de Cristo diante de realidades tão plurais?
Leomar Brustolin - Poderíamos escolher um tipo de sofrimento para especificar o acontecido com Jesus: o martírio, que é uma dor provocada por uma causa defendida. Certamente, esse tipo de sofrimento remete a Jesus Cristo, mas o mistério da paixão vai além desse âmbito. O sentido de sua morte abrange toda a realidade humana alienada de diferentes formas pela força do mal. Para falar da paixão de Jesus Cristo hoje, portanto, será preciso encontrar o significado dessa morte para nós. Ora, o próprio Cristo na cruz não resolveu o problema do sofrimento inocente e nem respondeu a todos os enigmas que a morte impõe. Mais do que explicar e responder às indagações da existência, Jesus Cristo apresenta-se como Presença entre os sofredores e como solidariedade para as vítimas que o mal produziu. Durante sua crucificação, Jesus pede que o Pai perdoe seus algozes, porque, diz ele: “não sabem o que fazem”. A irracionalidade da morte de Cristo faz com que ele mesmo perdoe, pois, para ele, mais importante do que encontrar os culpados e condená-los é derrotar o mal. Sua perspectiva de salvação supera tudo. A compaixão do Deus de Jesus Cristo não explica o padecimento. O Deus cristão, porém, não fica imparcial diante da ação do mal, ele toma posição solidária ao sofredor e julga, assim, o causador do mal, seja quem for. A paixão de Cristo hoje, então, implica em solidariedade e compromisso com as vítimas. Para isso, será preciso vencer a apatia diante da dor do outro. Será preciso amar, interessando-se pela dor do outro. É como escreve Erico Veríssimo : o oposto do amor não é o ódio, mas sim a indiferença.

Quais são as grandes lições existenciais e espirituais da Paixão de Cristo?
Leomar Brustolin - A sentença de morte não surgiu de repente na vida de Jesus. Ela foi o preço que Cristo pagou por sua opção pelo Reino de Deus e sua justiça. O que dá sentido à morte de Jesus é a sua total fidelidade ao Pai e ao seu projeto de salvação. A cruz é o fim de um processo. Pode-se dizer que a grande lição do martírio de Cristo é a da prova de amor pela vida. Ele veio para que todos tenham vida em abundância (Jo 10,10). Contudo, por defender a vida ameaçada, foi assassinado. Hoje, da mesma forma, o seguidor de Jesus há de colocar-se ao lado de todos que perdem seus direitos de viver. Essa tarefa há de ser uma causa coerente que cuide da vida, desde o seu início até o seu fim natural.
Outra lição que aprendemos com Jesus é que o amor subverte nosso pensar e nosso agir. Quem segue o Crucificado não pode recear o escândalo da cruz. Para os judeus, a morte de cruz era um sinal de maldição. Pela lei judaica, um homem crucificado era expulso do povo, maldito por Deus. Mas a cruz de Jesus não é a imagem do seu fracasso. Muito pelo contrário, ela é a imagem da maior prova do amor de Deus pelos homens: “Não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos!” (Jo 15,13). Na cruz, o Filho de Deus sofre e morre pelos últimos deste mundo: os pobres e injustiçados, doentes e rejeitados, mulheres marginalizadas, pecadores e prostitutas. Todos amigos de Jesus que o Pai ama e quer resgatar. Seguir Jesus hoje significa não temer a estranheza entre o Evangelho e o estilo excludente de vida que se impôs entre nós.
Finalmente, é preciso ver que no meio da cruz, brilha a luz. Não existe noite que impeça a aurora. Quiseram matar o Nazareno da forma mais vergonhosa possível, para acabar com Ele e a obra que havia iniciado. Porém, essa “hora das trevas” já havia sido anunciada pelo próprio Jesus diversas vezes. Através da sua paixão e morte, o Cristo manifestaria sua glória ao mundo. Para os cristãos, a cruz do Senhor é a verdadeira “árvore da vida”. Neste sentido, o sofrimento, a incompreensão, a perseguição e tudo que possa parecer a hora das trevas do cristão neste mundo está galvanizado de uma esperança maior: a ressurreição.

Como a Paixão pode inspirar a nós, homens e mulheres da pós-modernidade, a cultivarmos nossa espiritualidade e solidariedade?
Leomar Brustolin - O amor revelado sobre a cruz indica para todos – crentes e não-crentes que estão em busca da verdade – o bem que salva e se oferece como luz e força também para superar os tormentos do mal. O cristão deve ser, ao mesmo tempo, empenhado e desempenhado, cidadão da terra e do céu, plenamente disponível a cooperar para humanização do mundo e também crítico para esperar a novidade do reino que há de vir. Esta esperança o faz olhar sempre além das realizações. Empenhado, deve ajudar a produzir um futuro melhor para o mundo, mas, ao mesmo tempo, disponível, para acolher o dom de Deus que traz a consumação das esperanças humanas. A descontinuidade existente entre o progresso humano e o avanço do Reino de Deus no mundo apresenta estas exigências imprescindíveis. Isto não implica num dualismo na história (sagrada–profana), nem incompatibilidade, mas profundo realismo na avaliação das realidades terrestres. A evangelização cristã introduz no mundo um espírito novo que resgata e exalta valores e esperanças em vistas de um processo de humanização.

De que forma a Parusia de Cristo serve como uma fonte de inspiração para nossa atitude frente aos semelhantes e para a relação que temos com o cosmos?
Leomar Brustolin - O que mais ameaça a esperança é a crise. Esta faz com que se perca a confiança no tempo, pois não se sabe mais se haverá futuro. Perde-se a confiança na terra, porque se assiste uma desmedida exploração dos recursos naturais. Perde-se a confiança na humanidade quando se conhece os constantes extermínios que dizimam populações inteiras. A reação à crise se manifesta de diferentes formas, principalmente com o retorno do sagrado, não tanto para recuperar a esperança no futuro, quanto para resgatar terapeuticamente o presente. A crise de sentido possibilita refletir o presente da história na perspectiva de quem deseja “construir a esperança”. Para tanto, será necessário resgatar os enfoques teológico, antropológico e ecológico numa perspectiva de parusia.
A primeira exigência para uma práxis da esperança é esperar em Deus sem triunfalismos. O messianismo moderno assegurava: unidos a Deus, dominaremos a terra e com Cristo julgaremos os povos. Esse sonho entrou em crise porque não foi capaz de perceber que Deus não vem em nosso poder, mas em nosso sofrimento, mediante do seu Espírito vivificador.
Na dimensão antropológica, é preciso avaliar o projeto moderno de ser humano, convencido de que os homens são criados livres e iguais, e que a liberdade, a igualdade e a fraternidade estão estreitamente ligadas entre si. Isso tudo, no entanto, tornou-se apenas uma promessa jurídica e institucional que espera sua concretização. Ora, a esperança cristã supõe fraternidade e solidariedade numa humanidade que, queira ou não, terá um fim comum. Todas as raças e culturas, povos e nações participarão da glória de Deus. Nela, a convivência livre, igual e fraterna será realidade para todos que entrarem na comunhão da pátria trinitária, sem exclusão, discriminação ou castas.
Finalmente, a questão ecológica há de fazer-nos mais atentos à Terra. O projeto da civilização técnico-científica sacrificou muitas vidas, espécies e ecossistemas. O caminho tende à catástrofe planetária. E diante do iminente caos apocalíptico, a esperança parusíaca tem uma palavra para o hoje da terra. A preservação do ambiente e da vida humana não pode ser apenas em vistas de um futuro remoto. O tempo da salvação da terra é o presente. É hoje que se deve agir como se o futuro inteiro do gênero humano estivesse nas mãos da atual geração.

A vida de Cristo ainda pode ser compreendida como um grande exemplo a ser seguido em nossos dias?
Leomar Brustolin - Sim, a vida de Cristo, relatada pelos evangelistas, não exclui ninguém do convívio com Jesus. Hoje, como outrora, é preciso acolher essa Boa Nova que chega como apelo específico para cada pessoa na sociedade. O Evangelho de Jesus apresenta duas tarefas: se, de um lado, anuncia a Boa Nova aos pobres (Lc 4,18), a quem pertence o Reino de Deus (Mt 5,3), de outro, é um forte apelo de conversão aos ricos (Mt 6,24). A primeira coisa que o rico deve fazer diante da aproximação do Reino é reconhecer a própria pobreza, para inserir-se na comunhão com os pobres.
Converter-se significa viver na antecipação de um Reino de Deus que nos precede, e que realiza uma reviravolta da violência para a justiça, do isolamento à comunhão, da morte, para a vida. A conversão possibilita o seguimento de Jesus a homens e mulheres que representam um novo mundo que virá. Esta comunidade, nos primeiros tempos do cristianismo, era composta de pobres e ricos, de tal modo que estes últimos exercitavam o dever da misericórdia no confronto com os necessitados.

Nesse sentido, o que significa ser cristão hoje?
Leomar Brustolin - Os cristãos são “paroquianos” no mundo. Os paroquianos eram, no ambiente grego e romano, aqueles estranhos que passavam por algum território, aí se detinham um pouco, para em seguida prosseguirem a caminhada. Os cristãos sentem-se estrangeiros que vivem em terra estranha, porque já sabem que existe a pátria verdadeira e degustam das forças do mundo que virá. Eles vivem numa realidade nova dentro da velha e atual. Onde se perde a presidência do futuro, decai-se na administração do passado, na institucionalização repetitiva sem criatividade. Esperar o futuro é já permear o presente de uma força que renova o sentido da vida.
Contra todo desespero e ilusão, será necessário seguir criando e trabalhando por um mundo melhor. Apesar dos impérios da morte, da potência dos grupos violentos e das propostas que favorecem uma minoria mundial, o cristão não pode deixar de profetizar em favor da vida, da dignidade humana e da preservação do cosmos. A Páscoa há de possibilitar sonhar, como Isaías, esperando o novo céu e a nova terra. Há de proporcionar o início de um tempo onde justiça e paz se abraçam como canta o salmista. Há de valorizar, defender e conservar o grande cenário que é o universo, no qual a aventura da vida se expressa e se sustenta.

O significado da Páscoa se perdeu em nossos dias?
Leomar Brustolin - Páscoa é passagem. Os povos antigos de cultura agrícola a celebravam como a saída do inverno e a chegada da primavera. Os judeus celebram a passagem da escravidão para a libertação, conforme o relato do êxodo. Nós, cristãos, celebramos a passagem da morte para vida realizada na cruz e ressurreição de Jesus. Ora, em toda celebração pascal há uma dinâmica que impulsiona o ser humano para uma condição nova, desconhecida, maior e plena de esperança. É uma flecha que se lança ao futuro. Em nosso tempo, temos eternizado o presente, muitos não querem pensar uma situação nova, apenas desejam melhorar um pouco a atual. Por isso, a festa da Páscoa fica reduzida a feriado religioso que intensifica a economia: o turismo, o chocolate, o bacalhau. O fato de vivermos numa sociedade pós-cristã se traduz nessa ressignificação do tempo e da festa. Sexta-feira santa virou a festa do peixe e a Páscoa, a do chocolate. Essa situação, contudo, não chega a abalar as pessoas, até muitos cristãos aderem a essas práticas, sem preocupações com seu real sentido. E a beleza sempre nova da Páscoa, a passagem para as primaveras da vida, a libertação das amarras do presente e a ressurreição que dá sabor ao cotidiano ficam escondidas e somente são acolhidas por aqueles que esperam um tempo novo, um outro mundo possível.

Autor: Graziela Wolfart e Márcia Junges
Fonte: UNISINOS

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