quinta-feira, 30 de abril de 2009

Léxico da (anti*) desilusão

Naomi Klein*
Nem tudo vai muito bem na Obamafãslândia. Não se sabe ainda exatamente como explicar a mudança de humor. Talvez seja o fedor rançoso que vem do mais recente banco 'resgatado' pelo Tesouro. Ou das notícias de que o principal conselheiro de Economia do presidente, Larry Summers, recebeu milhões dos mesmos bancos e corretoras de "hedge funds" de Wall Street que, agora, ele tenta proteger contra a re-regulação. Ou talvez a coisa tenha começado antes, quando Obama silenciou, durante o ataque de Israel a Gaza.

Seja quem for que pague o mico, número cada vez maior de Obamamaníacos começam a entrever a possibilidade de que seu herói talvez não consiga salvar o mundo, se só contar, para ajudá-lo, com nossa esperança... por mais sincera e firme que seja.

Se esperamos que a cultura de "fã-clube" que levou Obama ao poder venha a converter-se em movimento político independente, suficientemente potente para produzir programas que efetivamente dêem conta dos atuais problemas e crises que os EUA enfrentam, é hora de todos pararmos de esperar-com-esperanças e começar a exigir.

O primeiro passo, contudo, tem de passar por todos entendermos completamente os interespaços muito estreitos nos quais muitos dos movimentos progressistas são obrigados a viver, nos EUA. Para entender isso, é preciso construir outra linguagem, específica para esse momento-Obama em que estamos. Aqui sugiro um começo de um novo léxico.

Super-esperanças. Como nas ressacas, a super-esperança resulta de super-excesso, ontem. Acontece sempre que mergulhamos fundo demais em qualquer sensação prazerosa que, contudo, seja ou pecado ou crime ou faça mal à saúde ou ao meio ambiente. E depois vem o remorso. A culpa. Às vezes, muita vergonha. É o equivalente político da larica por hipoglicemia. Frase exemplar, de caso de super-esperança é: "Ao assistir ao discurso sobre economia, de Obama, meu coração disparou. Depois, quando quis contar a um amigo sobre os planos de Obama para resolver a vida dos milhões de desempregados e sem-teto... eu só gaguejava. Surto muito brabo, de super-esperança."

Esperança-sobe-e-desce. Como se vivesse numa montanha-russa, o esperador de esperança-sobe-e-desce vive um intenso sobe-e-desce emocional nesses dias de Obama, entre a euforia de ter um presidente que apoia que se ensine sexo seguro nas escolas, e o fundo do poço emocional de sentir-se excluído da discussão, só porque se é segurado individual de algum plano de saúde privado... e é como se não existíssemos e ninguém nos ouve. Frase exemplar, nesse caso, é: "Surtei de alegria quando Obama disse que Guantánamo será fechada. Mas agora estão dizendo que, na prisão de Bagram, ninguém tem direito algum, a nada. Parem a montanha-russa!! Eu preciso sair daqui!"

Esperança-intoxicação. Como quem morre de saudade da casa da mãe, os esperadores de esperança-intoxicação são indivíduos intensamente nostálgicos. Não entenderam que a campanha eleitoral não passou de um surto de otimismo, pensaram que duraria para sempre. Agora, vivem para reencontrar aquela emoção, aquele calor... quase sempre super-exagerando o significado de manifestações quase insignificantes da decência humana de Obama. Frases exemplares: "Eu fiquei gravemente intoxicado de esperança-tóxica sobre a escalada no Afeganistão. Depois, quando assisti a um vídeo no YouTube, em que Michelle ensina jardinagem orgânica, foi lindo e tudo passou. Foi como se estivesse outra vez assistindo à cerimônia da posse. Depois, soube que o governo Obama está boicotando uma importante conferência da ONU contra o racismo... E desabei, outra vez, de saudades dos bons tempos. Foi pior que antes! Sorte que, em seguida, assisti a um desfile em que Michelle só usou vestidos desenhados por estilistas independentes, das minorias étnicas e, ufa, melhorei."

Esperança-fissura. A esperança-fissura, como a fissura de drogas, é terrível e arrasta a fazer qualquer coisa para pôr fim à fissura. (Intimamente relacionada à esperança-intoxicação-saudade-dos-bons-tempos, mas mais severa; afeta sobretudo machos de meia idade). Frase exemplar: "Joe contou que realmente acredita que Obama deliberadamente escolheu Summers especificamente para estragar o resgate dos bancos; assim, Obama teria uma desculpa para fazer o que realmente deseja fazer: nationalizar os bancos e convertê-los em cooperativas de crédito. Que esperança-fissura!"

Esperança-deprê. Como um certo tipo de amante-deprê, a obamita esperadora de esperança-deprê não é doida; é horrivelmente pessimista e está muito triste. Ela (a maioria são elas) projetou poderes messiânicos em Obama. Agora, sofre de desilusão inconsolável. Frase exemplar: "Acreditei meeeeeeeeeeeeesmo que Obama nos obrigaria a encarar o passado escravagista dos EUA e que teríamos discussão nacional séria, nos EUA, sobre raça e racismo.
Agora... ele já nem fala em raça e só faz distorcer argumentos legalistas para evitar a devassa em todos os crimes dos anos Bush. Cada vez que ouço Obama dizer que "temos de avançar"... é como se meu coração levasse uma chicotada, tudo outra vez."

Esperança reversa. Como no coice reverso de um chicote, que tem de ser bem manejado para não chicotear o chicoteador, a esperança reversa é o perfeito reverso, um giro de 180 graus, em tudo que tenha a ver com Obama. As vítimas de esperança reversa foram seguidores apaixonados, verdadeiros evangelistas, carne da carne de Obama. Hoje, são seus piores inimigos, os mais acérrimos criticadores! Frase exemplar: "Com Bush, pelo menos, todos sempre souberam que era perfeito idiota. Agora, taí: as mesmas guerras, as mesmas torturas nas mesmas prisões sem lei, a mesma corrupção em Washington, e os panacas festejam, como esposa enganada de novelão, que nada sabe, nada vê. Precisam é de umas boas chicotadas!"

Agora, tentando encontrar nomes para designar nossos padecimentos nacionais por causa da esperança, lembrei-me do falecido Studs Terkel**, e do que diria dessa ressaca nacional pós-eleitoral que acomete os EUA. Com certeza diria que não desesperemos. Folheei um de seus últimos livros Hope Dies Last [A esperança é a última que morre]. Nem precisei procurar muito. As primeiras palavras do livro são "a esperança nunca morre como nasceu: ela sempre deixa algum benefício".

Aí se diz quase tudo. A esperança foi excelente slogan, que acompanhou um candidato que fez aposta alta, de longo prazo. Contudo, como mote e postura que acompanhe o presidente da nação mais poderosa da terra é perigosamente reverente.

A tarefa, para avançar (expressão que Obama adora), não implica abandonar a esperança. Implica, sim, encontrar melhores pontos nos quais apoiar a esperança – nas fábricas, nas comunidades, nos bairros, nas periferias, locais e espaços em que comícios, reuniões, manifestações de rua e ocupações começam já a renascer.

Sam Gindlin, cientista político, escreveu recentemente que o movimento de trabalhadores pode fazer muito mais do que apenas tentar preservar para si algum status quo.

Os trabalhadores podem, por exemplo, exigir que fábricas falidas e desativadas sejam convertidas em instalações 'verdes', onde se fabriquem veículos de transporte coletivo e se criem tecnologias não poluidoras e sistemas de energia renovável. "Ser realista significa arrancar a esperança dos discursos e metê-la nas mãos dos que trabalham", escreveu ele.

Com o quê chegamos à última entrada desse léxico.

Esperança em movimento. Sentença exemplar: "Basta de crer em esperança que cai do céu. É preciso ativar a esperança em movimento, nos movimentos, de baixo para cima."

* Naomi Klein (Montreal, 1970) é uma jornalista, escritora e ativista canadense. A carreira de escritora de Klein começou cedo com contribuições ao jornal The Varsity na Universidade de Toronto, escrevia sobre feminism
* Essa é uma tradução de guerrilha. A quantidade de neologias cria risco imenso, para qualquer tradutor. O que aí vai é uma das muitas possibilidade de traduzir esse tipo de discurso e há inúmeras outras. Correções e comentários são bem-vindos para caia.fittipaldi@uol.com.br
(ed. impressa nas bancas dia 4/5/2009; na internet dia 15/4/2009, em http://www.thenation.com/doc/20090504/klein?rel=hp_currently
http://www.novae.inf.br/site/modules.php?name=Conteudo&pid=1262

Mendigo não é gente

Conceição Freitas

Escrito assim assusta. Mas esse é um sentimento coletivo, que está alojado sem disfarce em muito mais gente do que nenhuma pesquisa de opinião é capaz de estimar.
Mendigo de hoje merece bem menos compaixão do que os de antigamente. Os da minha infância eram, na grande maioria, os doidinhos do bairro ou os que chamamos hoje de portadores de necessidades especiais. Eram os aleijados. Paraplégicos, corcundas, leprosos, gente sem perna, sem braço, com feridas pútridas, com bócio, elefantíase. Uma legião de humanos deformados e desassistidos convocava a piedade dos não deformados e não desassistidos.
Homens e mulheres em situações de tão extrema devastidão humana, tão corroídos no corpo, tão despossuídos de humanidade, que nós, os humanos em perfeitas condições, nos curvávamos condoídos com tanto padecimento.
Mendigo de hoje tem cabeça, tronco e membros. Anda, ri, conversa, tem amigos, bebe, come, ocupa os espaços públicos, pratica atos libidinosos. E ganhou um novo nome, mais respeitoso: morador de rua.
Mas é um respeito de fachada.
Morador de rua sem nenhuma deficiência física ou mental claramente perceptível é, aos olhos dos moradores de casa e de apartamento, e de mansões e de aviões, um subumano. Não é nem um cão nem um cavalo ou um gatinho vira-lata. Não é bicho nem é gente. É da família do lixo.
Vou arriscar uma comparação terrível, mas o morador de rua é hoje, para o morador de casa, um ser tão execrável quanto os judeus foram para os antissemitas. Para a sorte do “de rua”, a possibilidade de genocídio é remotíssima, dado que o sentimento de rejeição a eles não é publicamente bem aceito.
Tudo isso pra dizer que o servidor do Banco Central José Cândido do Amaral Filho, 48 anos, casado, pai de três filhos, disparou os tiros que estavam engatilhados no tambor do .38 de muita gente que nem .38 tem.
Amaral Filho surtou? Tem transtorno bipolar? A psiquiatria vai dizer. Mas com certeza não era apenas ele que carregava — e carrega — ódio mortal de morador de rua, especialmente quando ele tem o acinte de empestear as cercanias de nossas vidas tão honradas e perfeitas.
Tem gente que investiga morador de rua pra saber se ele precisa mesmo pedir esmola. Como se ficar nos semáforos esperando uma moeda de 10 centavos cair de uma janela de carro fosse um divertimento, um esporte (ou um crime).
O que me faz lembrar o documentário Arquitetura da Destruição, de Peter Cohen, um dos mais certeiros e inquietantes estudos sobre o nazismo. Artista medíocre, Hitler era apreciador da arte clássica e perseguia a beleza absoluta. Rejeitava a arte impressionista e colecionava, à custa de saques inclusive, a arte grega e romana, com sua representação figurativa do belo. Hitler queria “aperfeiçoar” o mundo e os homens. Queria expurgar as impurezas, destruir a fealdade e as doenças. Teria destruído tudo o que tivesse a mácula da imperfeição, se tivesse vencido.
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 23/04/2009

A universidade e o conhecimento

Mauro Santayana
Na entrevista que concedeu ao jornalista David Leonhart, do New York Times, o presidente Barack Obama tocou em tema delicado na civilização atual: para que mesmo servem as universidades? Obama defende uma educação de qualidade, do jardim de infância ao fim do curso médio, que prepare as pessoas para a vida comunitária e o trabalho. As universidades devem ser centros de reflexão e de alta pesquisa. Ele deu o exemplo de seus avós maternos, que não fizeram a universidade, tiveram êxito em sua vida profissional e foram felizes. A avó, lembrou o presidente, escrevia melhor do que muitos de seus colegas na Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, e, com um bom curso secundário, chegou a diretora de banco.
A graduação universitária, por si só, não garante o êxito profissional. O presidente lembrou que o desemprego entre os de formação universitária, em seu país, é três vezes superior aos que só têm o equivalente ao nosso segundo grau. Entre nós, os que não conseguem ocupação equivalente à sua formação são bem mais numerosos. Encontramos todos os dias egressos de universidades, em geral privadas, dirigindo táxis, jornalistas diplomados vendendo planos de saúde, bacharéis sem o exame da OAB vivendo de pequenos expedientes. Segundo o presidente, o mundo necessita de pessoas que sejam capazes de produzir durante a sua vida adulta, e que, para isso, bastam de 14 a 20 anos de boa escolaridade.

O ponto de vista de Obama é divulgado três dias depois que o mesmo jornal publicou instigante artigo do professor Mark C. Taylor, professor da Universidade de Columbia. Ele lamenta que as universidades estejam formando especialistas em coisas diminutas, pessoas que sabem o máximo sobre o mínimo. Conta que o melhor aluno de um de seus colegas fizera dissertação de mestrado sobre o método usado pelo filósofo medieval Duns Scotus a fim de escolher suas citações. Podemos acrescentar ao raciocínio de Taylor que, se a dissertação fosse sobre o pensamento do grande franciscano, que combinava a visão realista do mundo com a intransigente defesa da virgindade de Maria, já seria reduzir muito o campo de estudo. Ele poderia situar Scotus na razão escolástica do fim do século 13 – e ofereceria boa contribuição para o exame da história da filosofia cristã.

O afunilamento do ensino universitário pode produzir eruditos, mas não contribui para a disseminação do conhecimento e da sabedoria. Tenho repetido, algumas vezes, dois versos de Rocket, poema de T.S.Elliot, que me impressionaram pela sua lucidez, e Julien Green recomendou a todas as universidades do mundo inscrevê-los no frontispício de seus edifícios: "Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information?"

Elliot escreveu esses versos em 1934, quando o volume de informações que circulavam no mundo era infinitamente menor do que hoje. O ensino terá que buscar a sabedoria que o conhecimento oculta, e o conhecimento que a informação ofusca. Isso só se obtém com o hábito de pensar, com a capacidade crítica, ao comparar as fontes de conhecimento e, mediante a dialética, encontrar o juízo próprio sobre as coisas.

Segundo Taylor, o professor geralmente prepara o aluno para seguir seus passos na vida acadêmica, dele fazendo seu clone intelectual. Trata-se de uma repetição do mesmo, em que o conhecimento produzido é uma volta ao já feito, sem a intervenção do pensamento inovador. Trabalhos acadêmicos em ciências sociais, que custam dezenas de milhares de dólares, são reproduzidos em edições de 500 ou 600 exemplares, e aproveitados por um número bem menor de leitores – salvo quando alguns professores rompem o círculo de giz e publicam seus estudos em editoras privadas.

No passado, o ensino primário, no Brasil, era suficiente para que se aprendesse a ler e a escrever. Com isso, ao ingressar no antigo ginasial, os alunos estavam preparados para apreender o resto. O ministro Fernando Haddad tem identificado nas falhas do ensino de primeiro grau as dificuldades da educação como um todo. Daí a necessidade de, mediante seleção vestibular mais rigorosa, salvar o ensino superior. Sua proposta de vestibular unificado é um bom começo, porque obrigará as escolas secundárias a melhorar seu desempenho, mas é preciso mais. É preciso enterrar as cruzinhas.

Sem massa intelectual poderosa, que só as boas universidades podem produzir, perderemos o nosso lugar no mundo e no século.

Jornal do Brasil - Quinta-feira, 30 de Abril de 2009 - 00:00
http://jbonline.terra.com.br/leiajb/noticias/2009/04/30/temadodia/coisas_da_politica_a_universidadee_o_conhecimento.asp

quarta-feira, 29 de abril de 2009

O Brasil e seu futuro

Mauro Santayana

No ‘Ensaio para uma teoria do Brasil’, publicado em 1966 – e agora reproduzido em livro (Comunidade brasileira e outros ensaios, Editora da Fundação Alexandre de Gusmão, 2009), o filósofo Agostinho da Silva fez correção dialética à ideia de que o Brasil é o país do futuro. O pensador português, que aqui viveu muitos anos, mostra que a profecia antiga partia da suposição de que esse futuro seria atingir os módulos de civilização dos países ricos e centrais. Agostinho pensava o contrário. Já então, ele entendia que a civilização europeia, com sua projeção atlântica, entrara em decadência. O Brasil é, sim, o país do futuro, mas do futuro que a sua sociedade criará, com liberdade, tolerância e fraternidade.

"O que nos interessa, agora, é realmente o problema do Brasil e da sua capacidade de liderar o futuro humano, quando se desembaraçar de tudo quanto lhe foi inútil na educação europeia e exercer, com o esplendor e a vigorosa força de criação que pode demonstrar, as suas capacidades de simpatia humana, de imaginação artística, de sincretismo religioso, de calma aceitação do destino, da inteligência psicológica, de ironia, de apetência de viver, de sentido da contemplação e do tempo" – escreveu há 43 anos. Mesmo sob o látego do golpe militar, essas qualidades plurais do povo brasileiro eram evidentes. Esperava-se – e Agostinho também – que a arbitrariedade seria passageira, e o país retornaria logo à normalidade. Não poderia imaginar que, ao durar tanto, a ditadura deixaria sequelas terríveis na alma nacional.

Embora com todas as dificuldades que enfrentamos, o Brasil parece voltar a ser o país do futuro, não o futuro que então, e aqui, se imaginava. O texto de Agostinho é mais atual do que antes. Nós nos desviamos de nosso destino quando deixamos de inventá-lo. O culto à Europa e aos Estados Unidos, que teve o seu momento mais caricatural na passagem do século 19 para o 20, e se exacerbou grotescamente com o neoliberalismo, vem resistindo à lógica. Passamos a importar todos os modelos de fora, dos automóveis de luxo aos processos de administração pública, neles incluídas as leis, do sistema universitário às crises bancárias, da euforia dos cartões de crédito ao consumo de drogas.

Estamos diante da grande oportunidade de encontrar caminho próprio. O conceito do Brasil cresce no mundo, talvez porque seja, no imaginário da inteligência, o terreno – físico e espiritual – destinado a nova revolução histórica. É certo que, para isso, ele está sendo obrigado a fortalecer sua economia. Mas há, além do crafty power, com que a Newsweek o qualificou em matéria de capa, outras condições alentadoras. O Brasil, com sua biodiversidade, é o mais importante espaço para as pesquisas que contenham o aquecimento global e permitam também o usufruto da natureza sem lhe causar dano. Para isso, os transgênicos devem ser contidos a tempo. A Comissão Técnica de Bio-Segurança, ao permiti-los, está na contramão da lucidez.

A expressão maior da soberania de um povo é a independência mental. Não podemos, a pretexto de que já se inventou a roda, deixar de buscar outros meios de deslocamento. Somos chamados a ousar, se queremos aproveitar a oportunidade histórica. Ousar na reinvenção do Estado, nas pesquisas científicas e na criação de novos modos de convivência social, que sejam solidários e dinâmicos. Chegou o momento de romper com esse modelo de civilização que já se esgotou na História. Os países que sofreram a opressão do sistema, se souberem unir-se, poderão mudar o mundo. Nossa diplomacia, ao respeitar a autodeterminação dos outros, conquista amigos e não causa ressentimentos. A Espanha, orgulhosa de seu passado, tem sido muito arrogante, tratando com desprezo não só os viajantes da América Latina como os governantes hispano-americanos, como foi o caso de Duhalde, da Argentina, e Chávez, da Venezuela. Hoje, se esfalfa, buscando o apoio de nosso continente para ter assento no G-20, embora sem credenciais econômicas para tanto.

O passado é uma referência, mas não pode ser fardo a ser arrastado na escalada do tempo. Apesar do negativismo de alguns, o Brasil está em seu grande momento, e não pode perdê-lo. Daí a importância da reflexão de Agostinho da Silva: para fazer o futuro, devemos inventá-lo, com a alegria, o espírito universal de solidariedade, a inteligência criadora e a necessária consciência de que todos os brasileiros têm direito aos mesmos benefícios da civilização.

terça-feira, 28 de abril de 2009

A palavra que evoca...

RUBEM ALVES *
No jogo linguístico
da Igreja Católica,
a palavra "camisinha" é
carta de baralho diabólica,
o pecado que
pode matar
a alma

RETORNO AO PAÍS de Lagado, país das universidades que Gulliver visitou numa de suas viagens. Estávamos nos familiarizando com uma hipótese levantada pelos cientistas do Departamento de Linguística quando o feriado interrompeu nossa excursão.
Pois os linguistas de Lagado afirmavam que as palavras, que o senso comum acredita serem meios de comunicação, na verdade são razão de todo o tipo de desentendimento. Na Torre de Babel não faltavam palavras. E, a despeito delas, veio a confusão...
Propunham então os cientistas da linguagem que as palavras fossem eliminadas. Palavras são "sinais" cuja função é representar as coisas. E é precisamente nesse ponto que o desentendimento acontece: quando as palavras, "sinais" para representar coisas, não as representam. Então, se eliminarmos as palavras para representar as coisas e passarmos a usar, no seu lugar, as próprias coisas, não haverá possibilidade de desentendimentos.
As ideias não caem do céu. Alguma situação provoca o seu aparecimento. Qual foi a situação que fez com que eu me lembrasse da hipótese dos linguistas de Lagado?Foi um lamentável desentendimento que sacudiu o mundo: o papa falou, usou palavras. Justamente ele, infalível representante de Cristo que só fala aquilo que o Espírito Santo segreda aos seus ouvidos, ele, grande mestre desse fascinante "jogo de contas de vidro" que se chama "teologia" e que, colocando a modéstia de lado, eu mesmo jogo com razoável habilidade... Pois ele usou uma única palavra e estabeleceu-se o pandemônio. Ele usou a palavra "camisinha"...
No jogo da ciência e do senso comum, quando se usa a palavra "camisinha" entende-se um artefato técnico que serve para controlar a natalidade e também para impedir doenças, a Aids em especial. A palavra "camisinha", assim, numa linguagem matemática, pertence ao "conjunto" de coisas práticas, tais como aspirinas, ataduras, desinfetantes, sabonetes, bicicletas, cortadores de unha e computadores. São objetos que se usa por aquilo que podem fazer. Simples ferramentas: não são virtudes, não são pecados.
Aí é que está o nó. Porque, no jogo linguístico da Igreja Católica, a palavra "camisinha" é carta de baralho diabólica. Só pode ser pronunciada como uma maldição. Ela, a camisinha de aparência inocente, é mais letal que a Aids -a enfermidade que pode matar o corpo. A camisinha é o pecado que pode matar a alma.
E foi assim que o "magister ludi", S.S. Bento 16, fiel às regras do jogo da teologia católica, declarou em Iaundé (Camarões) que a distribuição de camisinhas não ajuda, "pelo contrário, as camisinhas aumentam o problema (da Aids)".
A declaração universal do papa na África, continente onde mais de 20 milhões de pessoas estão infectadas com o vírus da Aids, revela a transcendental importância que a camisinha ocupa no pensamento católico oficial, como lugar estratégico na luta que se trava entre Deus e o Diabo.
Ah! Como a igreja mudou! Outras são as palavras que se usam! O amado e saudoso papa João 23 será lembrado como o papa que falava as palavras do ecumenismo, da fraternidade, da justiça social. Mas quais serão as palavras que evocarão a imagem de S.S. Bento 16? Espero que não seja aquela... Os católicos se envergonhariam...
*Escritor. Teólogo.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2804200903.htm

A tentação de ensinar

Gabriel Perissé*


As tentações existem. São diferentes das que nos acossaram outrora, mas continuam aprontando confusão.

Cada profissão tem suas peculiares tentações.

A tentação do escritor é escrever o dia inteiro e a noite toda até que lhe doam a mente e as mãos.

A tentação do psicólogo é mergulhar na alma alheia, mar sem fim, e ali perder a respiração.

A tentação do pescador é pescar o tubarão.

A tentação do cozinheiro é não sair do forno e fogão.

A tentação de cada um é ser o que é para além de todo e qualquer limite, e então perder sentido e noção.

A tentação do professor é ensinar tudo e um pouco mais, dar todas as lições do livro e da apostila, sempre com as melhores intenções.

O professor é tentado pelo demônio diplomado, pelas excelentes idéias pedagógicas que povoam sua inteligência, sua memória e imaginação.

O professor é tentado a cuidar da avaliação, como se avaliar pudesse todas as dimensões do ser humano, esse mistério em mutação, microcosmo em rotação, poço sem fundo em constante ebulição.

O professor é tentado a resolver os mais diversos problemas que invadem sua sala — da Aids às drogas, do tédio ao suicídio, do pavor à depressão... mas não só grandes questões, também problemas menores como infestação de piolhos, gripes, briguinhas, bagunça, conversa paralela e xixi no chão.

O professor vive caindo em tentação porque acredita possuir, sempre, para tudo, a melhor solução.

O professor é tentado a aceitar humilhações em nome do dever, do amor e da paz, e do perdão... tudo por abnegação.

O professor é tentado a gemer um "não" quando deveria gritar "sim", ou a conceder seu "sim" quando seria hora de dizer, apenas, "não".

O professor é tentado no deserto a definir o errado e o certo, a ser representante da ética, e a repartir com todos o seu pão, e a repetir, parafraseando Pessoa, que tudo vale a pena quando não é pequeno o coração.

O professor é tentado a acreditar em ilusões e esquecer a realidade, ou a só pensar no real e colecionar desilusões.

O professor é tentado a prometer a salvação, liderar revoluções, promover a pedagogia da libertação.

Ó professor, não se deixe cair em tentação! E que nós nos livremos do pressuposto equivocado de que aprender é, tão somente, ouvir instruções.

Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP –
Web Site: http://www.perisse.com.br/
http://www.correiocidadania.com.br/content/view/3217/53/ 27/04/2009

Por uma educação amorosa

Marcelo Barros *



Nos últimos dias, alguns jornais de TV têm divulgado estudos de pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) sobre a evasão de jovens de salas de aula. A pesquisa aponta que a incidência de jovens que abandonam a escola ainda é muito alta. 43% destes jovens declaram que fazem isso por não ter motivação para estudar.
Evidentemente, os fatores que levam a isso são diversos, mas uma constatação inevitável é a de que a escola ainda se mantém um tanto rígida e separada do cotidiano da vida, além de presa a conteúdos nocionais e métodos superados em um mundo no qual a juventude está envolvida em internet, orkut e jogos eletrônicos.

A realidade da educação tem mudado em toda a América Latina. Agora, além de Cuba, mais dois países foram reconhecidos pela UNESCO como territórios livres do analfabetismo: Venezuela e Bolívia. Outros estão no caminho. No nosso país, o programa "Brasil Alfabetizado" visa universalizar a alfabetização dos maiores de 15 anos. Já conseguiu alfabetizar mais de nove mil adultos. Apesar disso, ainda temos uma taxa de 16% de analfabetos. E o mais doloroso é que as pesquisas mostram: a maior parte das pessoas analfabetas no Brasil já passou por alguma escola e saíram sem aprender a ler, ou como dizia Paulo Freire, a reinterpretar o mundo.
Não se pode negar que a atual gestão do Ministério da Educação esteja fazendo, em todos os níveis, um trabalho positivo pela transformação das estruturas da educação. Está havendo um aprimoramento das estruturas da educação infantil, integrando creche e escola e formando pedagogicamente as professoras encarregadas da primeira educação. Os exames que comprovam o rendimento educacional de cada classe e de cada escola expõem a competência e opção das professoras. Uma escola de periferia recebe uma avaliação positiva, enquanto outra, no mesmo bairro, com as mesmas condições e lidando com crianças da mesma classe social, recebe avaliação negativa. Isso revela que as condições sociais não explicam tudo e as professoras precisam sempre rever sua dedicação e cuidado. De fato, a criança dos primeiros anos aprende, não por alguma opção intelectual ou ambição pessoal, mas para agradar e receber aprovação e amor da pessoa adulta que a acompanha. Também no nível da escola média e universidade, vários programas cuidam de melhorar a universidade. A "escola aberta" e "a conexão de saberes" aprofundam a relação da escola e da universidade com movimentos e comunidades populares.

Todos sonhamos com uma escola que parta da realidade da juventude, se construa de amor e ofereça a uma juventude muitas vezes sem perspectivas e sem rumos na vida, motivos não só para viver, mas para ser pessoas boas e solidárias.

Gandhi dizia: "A verdadeira educação consiste em pôr a descoberto ou fazer com que desabroche o melhor de uma pessoa". Toda educação deveria levar a pessoa a assumir a consciência de sua dignidade humana e do seu papel de sujeito e não de objeto na construção da sociedade. É certo que vivemos em um mundo no qual os governos são incapazes de acabar com a fome e a miséria de multidões, mas empregam milhões do dinheiro público para salvar bancos falidos e grandes empresas, vítimas de esquemas desonestos. Entretanto, apesar de tudo, as políticas públicas existem e são fundamentais. Elas têm sido aprimoradas, mas não bastam. A escola precisa ser assumida por todos os cidadãos, como algo que pertence a todos e não somente ao governo ou ao/à diretor/a do estabelecimento. Este processo de apropriação da escola por parte de toda a comunidade local é essencial para a educação da juventude, integrando-a na realidade. É este processo que possibilita a escola assumir e até promover a educação a partir de uma verdadeira diversidade cultural. As tantas escolas que, por todo o Brasil, são bilíngües (ensinam em português e na língua indígena da comunidade), assim como as que se inserem nas culturas afro-descendentes e ensinam a história da África e das comunidades negras no Brasil mostram a riqueza a que se pode chegar. Mais dificilmente, a evasão escolar se dá nestes estabelecimentos.
Para quem tem fé e vive uma busca espiritual, o compromisso com a educação faz parte da missão de testemunhar o amor de Deus por todos os seus filhos e filhas. Assim como o de colaborar para que todos, jovens e adultos, participem da ação criadora de Deus, ao transformar este mundo em uma sociedade mais justa e em comunhão de respeito e amor com todo o universo.
* Monge beneditino e escritor - ADITAL, 27/04/2009

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Por que você trabalha?

Professor conta como ficou surpreso
com seus alunos
ao perguntar
se salário motiva alguém.

Definitivamente, eu não aprendo. Outro dia fui cair na besteira de dizer aos meus alunos de Administração da Faculdade que salário não motiva ninguém e quase fui linchado. Um dia isso ainda vai acontecer. E será bem-feito para mim. Não é a primeira vez que digo isso e, mesmo tendo sempre a mesma reação da maioria dos alunos, continuo fazendo a mesma coisa. É como diz o ditado: o burro pede a Deus que o mate e ao diabo que o carregue.

Na verdade, a pergunta inicial, e que acabou incitando os protestos, foi sobre qual era o verdadeiro significado do trabalho na vida das pessoas. Pergunta tola, como se sabe, já que, como bem disse o primeiro da fileira, rindo muito, e no melhor estilo da Escolinha do Professor Raimundo: “Todo mundo aqui sabe que as pessoas trabalham pelo salário, para sobreviver”.

Olhei para o restante da turma, pois aquele “todo mundo aqui” comprometia o restante do grupo, buscando uma única alma que fosse capaz de se apresentar para desfazer o que penso ser um equívoco. (Minha esperança veio da lembrança de que até nos programas humorísticos, como o citado anteriormente, tem sempre um gênio de plantão para explicar, com pormenores, a resposta certa. “Eu queria ter um filho assim...”, como dizia o jargão do Chico Anísio).

Porém, diante do silêncio de todos, fui obrigado a continuar a olhar para o aluno da primeira fila que, sem vacilar, lascou uma nova observação, ainda mais contundente: “E o senhor, Professor. Vai me dizer que o senhor trabalha porque gosta?”. São de fato interessantes as perguntas que começam com “Vai me dizer...”, porque elas têm o poder de tornar o interlocutor um perfeito idiota, caso ele se arrisque a responder qualquer coisa: Vai me dizer? Eu não!

Como eu já me confessei burro e, como diz outro ditado, para burro velho, capim novo, resolvi continuar desafiando o corpo discente e respondi que sim. Sim, eu trabalho porque gosto. E daí? Ele riu novamente, e diante de sua autoridade de primeiro da fila, acabou concluindo que se eu trabalho porque gosto isso deve ser sinal de que também seria capaz de trabalhar de graça para alguém. Lógico que sim, por que não?

Tem muita gente aí que faz isso, caro pupilo. E tem mais: conheço gente que trabalhando de graça para alguém ou alguma instituição é muito mais feliz que muitos executivos que ganham milhares de dólares trabalhando para uma empresa com fins lucrativos. Perguntei a ele se alguma vez ele já tinha ouvido falar num sujeito chamado Betinho. Não, ele não conhecia o Betinho. Irmão do Hen... Esquece. Dona Zilda Arns. De novo, nenhum rosto se iluminou na classe. Arrisquei uma dica, na esperança de que alguém se lembrasse, dizendo que ela é irmã de D. Paulo Evaristo Arns. Afinal, não somos um país de maioria Católica? Dom o que? Esqueçam. Viviane Senna!!! Aí alguém disse: por acaso, ela não seria alguma coisa do Ayrton Senna? Isso!
Ela tem uma empresa que trabalha – nesse momento fiz questão de grifar a palavra “TRABALHA” com um grito, antes que alguém concluísse que o Instituto que ela dirige se trata apenas de um hobby sem importância que ela costuma utilizar para se divertir nas horas vagas. Eis aí um bom exemplo de pessoa, cara pálida, que trabalha por uma causa, por uma missão, por um significado maior do que simplesmente comprar e revender algo com lucro para o mercado ou em troca do salário no final do mês – nesse momento eu estava vociferando, não de ódio, mas de emoção – que é muito mais nobre e digno que o lucro!
Pois dizer que se trabalha por dinheiro seria como dizer que as pessoas vivem para respirar. Alguém aqui vive para respirar? 4 levantaram meio-braço. Respirei fundo e continuei: o oxigênio é importante, mas ninguém vive em função dele, espero. Aliás, já repararam que a gente só percebe que o ar existe quando falta? O mesmo acontece com o dinheiro. Entenderam? Novo silêncio. O dinheiro deve vir como conseqüência da aplicação inteligente de nossos melhores talentos, competências e valores. É isso que deve dar sentido para tudo aquilo que fazemos. O dinheiro...
Nesse instante, uma aluna levantou o braço direito e perguntou:
- Professor, são 9 horas. O senhor não vai fazer a chamada?
Por Gilberto de Moraes (psicólogo, coach, consultor e professor universitário. pós-graduado em planejamento estratégico de recursos humanos). HSM Online - 27/04/2009

"A beleza salvará o mundo!"

Em seu romance “O Idiota” Dotosoievski nos deixou esta bela frase. Mas é o mesmo autor que também questiona: “Qual beleza salvará o mundo?” Diante de um quadro de Jesus crucificado, o autor nos diz que ele pode nos fazer perder a fé, sobretudo quando não vemos nele o grande sinal do amor de Deus por nós. É certo que nosso Deus se manifestou com os traços mais belos e maternos nos momentos de dor e sofrimento do povo, restabelecendo a vida ameaçada (na escravidão do Egito, no exílio da Babilônia, na morte do Filho na cruz). A superação dos tantos “caos” indica que o Senhor quer vida, quer beleza que salva. Precisamos de um mundo de beleza, mas não a beleza do luxo comercial. O belo não tem preço e nem se pode comprar com dinheiro. Não devemos cair nas tentações da beleza fugaz e falsa, pois como nos ensina Gogol ( o poeta russo) “ o diabo também se traveste de beleza”.
(PERONDI, Ildo. “Farei passar diante de ti toda a minha beleza” (Ex 33,19ª), in Revista Estudos Bíblicos, nº 101- 2009/1, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, p.33).

O fenômeno da mudança de religião

Pe. Juan Botasso*
Como deve ser interpretado o fato de que, na América Latina, católicos abandonam sua religião e mudam para outras igrejas?
Pe. Juan - Em minha avaliação, a Igreja Católica, na maioria das vezes, está perdendo fiéis porque se trata de pessoas que não possuíam uma real pertença e participação na comunidade católica. É de se duvidar que realmente estivessem dentro dela. A ligação fraca se deve ao fator cultural, isto é, por ser católicos apenas por tradição familiar, mas sem convicção profunda. Agora, com a explosão demográfica e por causa da falta de assistência religiosa por parte do clero, que é em número insuficiente, muitos católicos se sentem pouco motivados a permanecer em sua Igreja. Estes também acabam dando ouvidos a críticas contra sua religião, muitas vezes atraídos por promessas e acolhendo outras propostas: assim, vão deixando o catolicismo e aderindo a outros grupos cristãos e, às vezes, não cristãos.
Também conflitos ou escândalos que acontecem na comunidade desanimam aqueles que são católicos, influenciando-os para uma "troca de ambiente".
Nos últimos anos, por exemplo, 1% da população brasileira passa por essa mudança. O Brasil tem 180 milhões de habitantes: a cada ano, é considerável o número de um milhão e oitocentas pessoas que procuram outras igrejas.
A própria Igreja Católica está acompanhado este fato: constata tal situação e percebe que não consegue segurar entre suas fileiras tantas pessoas que migram para outra religião. A mudança fica determinada, me parece, pelo relacionamento tênue e pela falta de sintonia com a Igreja de origem.
A razão da desistência de muitos católicos reside, então, no fato de não se sentiram membros de seu grupo religioso?
Pe. Juan - É isso mesmo! Nós últimos anos, tivemos o fenômeno de uma urbanização intensa: grandes concentrações humanas se formaram nas periferias das cidades.
A igreja não estava preparada para dar atendimento a essa população e se depara com uma nova situação. Há demora em instalar uma nova paróquia, às vezes por falta de padres. Por outro lado, a paróquia é uma estrutura de atendimento apropriada para as áreas rurais. É bom lembrar como surgiu: antigamente, o bispo que atendia às cidades achava por bem enviar o clero e seus representantes para as aldeias do interior e ali estabelecer as paróquias. Porém, ocorreu uma transformação enorme, pois com a urbanização temos metrópoles com bairros populosos. Procura-se a Igreja para realizar batizados, enterros, missas de sétimo dia, ou casamento. A paróquia tornou-se um centro administrativo e um lugar de sacramentos. Muitas vezes, as visitas missionárias e o contato pessoal não acontecem; com isso, o relacionamento dos fiéis com a comunidade e seus responsáveis é formal e reduzido.
(...)
Em resumo, qual é o fator principal para conscientizar nossos católicos?
Pe. Juan - Tem de haver uma profunda experiência de encontro com Jesus Cristo. Aí nasce a alegria da fé que é contagiante. Eles têm de se sentirem amados por Deus, chamados por Jesus Cristo e incumbidos da missão de testemunhar a vida a ser irradiada aos outros.
Precisamos estar bem enraizados; só assim, com pesoas imbuídas do compromisso com Deus e os irmãos, não teremos a surpresa de ver fiéis abandonando.
Quando a convicção tem profundidade, a educação da fé se torna consistente e verdadeira. Este é então nosso desafio: formar pessoas conscientes de seu seguimento a Cristo e cristãos missionários para ser "sal da terra e luz do mundo!".
*Pe. Juan Botasso é professor de antropologia na Universidade Salesiana de Quito (Equador).
Parte da Reportagem/Entrevista do O Mensageiro de Santo Antônio, Portugal, ed.n.3 - abril de 2009, pp.24/25.

O tipo de desenvolvimento que nós queremos

Herman Daly*
Como organizar a economia
para gerar riqueza e c
onforto sem exaurir
os recursos naturais da
Terra

O dilema ambiental de hoje é o resultado de uma lógica econômica que ignora os limites naturais para o crescimento. O economista americano Herman Daly foi o primeiro a reconhecer esse problema, quando estava no Banco Mundial, em 1988. Hoje, professor da Universidade de Maryland, ele propõe saídas para o impasse.

A maioria dos economistas não entende um fato simples que para os cientistas é óbvio: o tamanho da Terra é fixo. Nem a superfície nem a massa do planeta crescem ou encolhem. O mesmo vale para a energia: a quantidade absorvida pela Terra é igual à quantidade que o planeta irradia. O tamanho total do sistema – a quantidade de água, solo, ar, minerais e outros recursos presentes no planeta em que vivemos – é fixo.

A mudança mais importante que aconteceu na Terra nos últimos tempos foi o enorme crescimento da economia, que tem consumido cada vez mais recursos do planeta. Desde que eu nasci, a população mundial triplicou, e o número de cabeças de gado, carros, casas e geladeiras aumentou ainda mais. Nossa economia está agora alcançando um ponto em que vai ultrapassar a capacidade da Terra de sustentá-la. Os recursos acabam e os reservatórios de lixo lotam. O mundo natural que nos resta não pode mais suportar a economia atual, muito menos uma que continue a se expandir.

A economia é como um organismo faminto em fase de crescimento. Ela consome recursos naturais como árvores, peixes e carvão. Deles, produz energia e bens úteis e cospe resíduos como dióxido de carbono, lixo e água suja. A maioria dos economistas está preocupada com o sistema circulatório do organismo e em como a energia e os recursos podem ser eficientemente alocados. E tende a ignorar seu sistema digestivo: os recursos que o organismo consome e o lixo que produz. Os economistas pressupõem que ambos sejam infinitos.

Por causa disso, eles não reconhecem limites na capacidade de crescimento da economia. Num relatório publicado no início do ano, a Comissão de Crescimento e Desenvolvimento (apoiada pelo Banco Mundial) revisou a experiência de 13 países, incluindo Botsuana, Brasil, China e Japão. Esses países cresceram 7% ou mais ao ano durante décadas. A comissão sugere que o mundo deveria seguir esse exemplo. No entanto, se a economia global crescesse nesse ritmo, em 25 anos ela estaria cinco vezes maior que hoje. Eles não dizem o que aconteceria depois disso. Presumo que deveríamos simplesmente almejar repetir o feito.

Geralmente, quando o custo de uma atividade começa a se sobrepor a qualquer benefício, nós a interrompemos. Comprar um sorvete faz sentido se isso nos traz prazer e sacia o apetite. Uma vez que já comemos dois ou três sorvetes, contudo, não compramos mais nenhum, porque, apesar do sabor agradável, começamos a passar mal. Esse botão de desligar não está funcionando para a economia como um todo, porque nossa contabilidade não separa os custos da atividade econômica de seus benefícios. Em vez disso, ambos são contados como Produto Interno Bruto (PIB). Contamos como crescimento desejável tanto o benefício da atividade que gera poluição quanto o serviço de limpeza dessa poluição, por exemplo. E, quando a derrubada de árvores e a venda da madeira inflam o PIB, nada subtraímos pela perda de florestas.

A escala da economia global está se aproximando dos limites com os quais o planeta pode arcar. À medida que os oceanos ficam sem peixes, as florestas encolhem com o desmatamento e os níveis de poluentes e de gases de efeito estufa na atmosfera aumentam, os custos ambientais e sociais do crescimento tendem a aumentar. Até que alcancemos um ponto em que o preço que pagamos por unidade extra de crescimento se torna maior que os benefícios que desfrutamos.
"Poderíamos substituir o
Imposto de Renda
por uma taxa
sobre o consumo de recursos.
Isso incentivaria
o melhor uso da natureza"

Há evidências de que já passamos desse ponto, ao menos em países ricos como os Estados Unidos e o Reino Unido. Já que nosso PIB não revela se isso aconteceu ou não, acadêmicos deram um jeito de monitorar outros potenciais indicadores, como saúde, bem-estar e o estado do meio ambiente. Criaram medidas como o Índice de Bem-Estar Econômico Sustentável, o Indicador de Progresso Genuíno, a Pegada Ecológica e o Índice do Planeta Feliz. Esses acadêmicos descobriram que, à medida que o PIB cresce, esses outros indicadores se estabilizam ou caem. O crescimento econômico pode já estar nos deixando mais pobres que ricos.

Porque nosso sistema econômico é baseado na corrida pelo crescimento econômico acima de tudo, estamos rumando para um desastre ambiental – e econômico. Para evitar esse destino, é preciso mudar o foco do crescimento quantitativo para o desenvolvimento qualitativo e estabelecer limites estritos para a taxa de consumo dos recursos da Terra. Numa economia estável desse tipo, o valor dos bens produzidos ainda pode crescer, por exemplo, por meio de inovação tecnológica ou melhor distribuição. Mas a escala física da economia deve ser mantida em um nível que o planeta seja capaz de sustentar. É possível transformar nossa economia de um avião acelerado para um helicóptero pairando no ar? Após 200 anos de crescimento econômico, é difícil imaginar como seria uma economia estável. Ela não precisa significar passar frio no escuro sob uma tirania comunista. A maior parte das mudanças pode ser aplicada gradualmente, em pleno voo.

Podemos substituir o Imposto de Renda por uma taxa sobre o consumo de recursos naturais. Por exemplo, cobrando pelo óleo bombeado do fundo da terra ou pelo peixe tirado do mar. Isso incentivaria as empresas e as pessoas a usar melhor esse material. O excesso de embalagens no supermercado desapareceria. Também poderíamos criar um imposto sobre o carbono emitido. Viagens com combustíveis fósseis ficariam proibitivas, o que estimularia o transporte público e os veículos com tecnologias limpas. As empresas venderiam menos produtos e ofereceriam mais serviços. Em vez de comprar, alugaríamos o carro ou o tapete. A empresa fornecedora seria responsável pela manutenção e pela reciclagem do produto.

Como uma economia que não cresce afetaria nossa qualidade de vida? Psicólogos e economistas descobriram que a relação entre renda e felicidade é limitada. Depois que as necessidades básicas são atendidas, a felicidade depende mais da renda relativa – como nós estamos em relação a nossos pares – que da absoluta. Ter menos coisas não significa ser menos feliz. É possível até que traga mais felicidade. Além do prazer de deixar um planeta inteiro para nossos netos.
*Herman Daly é economista da Universidade de Maruland. Ele criou as políticas de desenvolvimento sustentável do Banco Mundial nos anos 80.
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI69696-16270,00.html - Reportagem da Revista Época n.571 - 27/04/2009, p.132/133.

sábado, 25 de abril de 2009

A amante Chatterley

JOAQUIM ZAILTON BUENO MOTTA
Há meio século, no ano de 1959, influenciado pela nova definição de obscenidade da Suprema Corte dos EUA, um juiz federal suspendeu a proibição do romance O Amante de Lady Chatterley na América. Um ano depois, o livro também foi liberado na Inglaterra, quando os britânicos passaram a render homenagens de reconhecimento ao talento e à coragem do autor, D. H. Lawrence.
Já se vão 81 anos (1928) que a obra polêmica foi publicada e logo depois proibida na Inglaterra. A publicação foi sustentada em Roma, em outras capitais europeias também, mas permaneceu longos anos como um trabalho secundário, obsceno, pirateado para as nações de língua inglesa.
Para os britânicos, entre a data da primeira edição e sua liberação, 32 anos depois, livro e autor foram qualificados de modos diametralmente opostos. Antes, o “mais sujo da literatura inglesa”, vergonha dos valores morais e hierárquicos; depois, o texto “seminal da literatura moderna”, um marco genial da arte literária.
D. H. Lawrence acreditava que devido aos séculos de ofuscamento, a mente ficou “subdesenvolvida”, incapaz de avaliar devidamente as características do erotismo. Faltava uma “reverência adequada pelo sexo e uma admiração apropriada da experiência estranha do corpo”. Então, criou lady Chatterley, uma heroína que desperta sexualmente e ousa desnudar o ventre do amante para conferir o mistério da masculinidade.
A história é uma trama que apela para o adultério, pois a protagonista estava casada quando se envolve com o jardineiro do palacete onde vivia com o marido. Apesar do impacto da infidelidade, Lawrence estava convencido de ter escrito um livro afirmativo sobre o amor físico, que ajudaria a libertar a mente puritana do “terror do corpo”.
Antes dessa obra, existia a exposição da mulher nua como prerrogativa de artistas e pornógrafos. Porém, o pênis costumava ser obscurecido ou disfarçado, e jamais revelado em posição ereta.
A intenção de Lawrence foi mesmo de escrever um “romance fálico”. Várias vezes, ao longo do inspirado enredo, lady Chatterley concentra sua atenção no pênis do amante, segura-o nas mãos, afaga-o com os dedos, acaricia-o com os mamilos, toca-o com os lábios, observa o seu intumescimento, estende as mãos para acariciar os testículos, e mede a carga sustentável da virilidade.
Na época, a descoberta excitante e assombrosa da protagonista descrita por Lawrence aguçava milhares de leitores. Os do sexo masculino participavam com sua própria excitação sexual, imaginando uma equivalência de prazer através do toque de uma mulher semelhante, e experimentavam pela masturbação uma intensa sensação vicária.
O texto erótico que leva à masturbação foi, por muito tempo, para os reacionários moralistas, motivo mais que suficiente para tornar este romance controverso e condenável.
Mas foi essa audácia do autor, ao glorificar a alegria dos corpos durante o sexo, o que para ele é uma das leis eternas da natureza, que o conectou aos vanguardistas que abriram os horizontes da sexualidade.
Quando pressionado pela rançosa censura vitoriana, Lawrence afirmou que os que atacavam o erotismo não passavam de hipócritas: “Metade dos grandes poemas, quadros, obras musicais e histórias deste mundo tem sua grandeza no apelo sexual. Em Ticiano ou Renoir, no Cântico de Salomão ou em Jane Eyre, em Mozart ou em Anne Laure, a beleza surge impregnada de apelo sexual...”.
A arte transformadora é mais feminina, tem vigor libertário maior do que a masculinidade da ciência. A (r)evolução erótica e amorosa da humanidade depende dessas heroínas, reconhecidas ou anônimas, fictícias ou verídicas. Os homens cuidarão de narrar o que elas fizerem...

*Bueno Motta é médico psicoterapeuta e sexólogo.
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1630876&area=2190&authent=677619FA3A9DD25FE42168020FEACD

Lygia Fagundes Telles revê sua obra completa

Juliana Krapp, JB Online

RIO - – Na minha infância descabelada ganhei no Natal uma lupa. Assim – à guisa de quem abre um conto – Lygia Fagundes Telles começa a narrar como se enamorou pela caça das miudezas.
– Então passei dias e dias examinando a vida dos bichos através daquela lupa – prossegue. – Não os gatos e cachorros, porque esses eu já conhecia bem, mas minha curiosidade concentrou-se no mundo dos insetos, formigas, aranhas, borboletas. As minúcias, ah! me apaixonei tanto. Essa memória distante está nos símbolos que talvez acabei por aproveitar nesse mistério da criação.
Com 86 anos recém-completados (o aniversário foi no último domingo), a grande dama da literatura brasileira mantém a lupa em riste. Passou os últimos meses com a atenção especialmente aguçada, a mira não nos insetos da infância, mas em páginas e páginas de literatura. A sua literatura, que o crítico Antonio Dimas chama de uma inclinação à “microscopia” (“ela enxerga miúdo e no escuro”), e cuja força o poeta Carlos Drummond de Andrade – seu grande amigo – disse estar no “psicologismo oculto sob a massa de elementos realistas assimiláveis por qualquer um”. Literatura que agora está sendo toda passada em revista, num trabalho de extrema consideração aos detalhes – como é do feitio da autora. Os primeiros resultados de tal esmero chegaram quarta-feira às livrarias: as reedições de As meninas (1973), Antes do baile verde (1970) e Invenção e memória (2000). Revistos por Lygia, marcam a sua estreia na Companhia das Letras, após longas estadas na Nova Fronteira e na Rocco, respectivamente; e marcam também a reedição de grande parte de sua obra (ficarão faltando seus primeiros livros, que a autora rejeita como “prematuros”, e ainda alguns títulos pertencentes à Rocco), em um projeto editorial de pompa.

– Confesso que me fez bem ficar ocupada nessa tarefa de rever os romances, os contos e as crônicas para as novas edições com as belas capas [que trazem ilustrações da prestigiada artista plástica Beatriz Milhazes] – diz Lygia. – Cortar aquela vírgula, mudar aquele adjetivo... Sim, detalhes, mas às vezes é no detalhe que está Deus.

Além da revisão feita pela autora, as reedições ganharam posfácios com textos inéditos de intelectuais e de outros escritores, além de depoimentos de Lygia e de trechos de sua fortuna crítica. Dessa forma, Invenção e memória nos chega com um posfácio de Ana Maria Machado e um depoimento de José Saramago, no qual o Prêmio Nobel português comenta a antiga amizade com a brasileira. As meninas traz alguns elogios que o romance recebeu, à época de sua publicação original (Otto Maria Carpeaux diz que Lygia “tem algo da delicadeza atmosférica de uma Katherine Mansfield”, enquanto Hélio Pólvora afirma se tratar de um romance “dos maiores da literatura brasileira”) e um texto de Cristóvão Tezza, entre outras adições; e Antes do baile verde apresenta um alentado posfácio de Antonio Dimas (que coordena o projeto editorial das reedições, ao lado de Alberto da Costa e Silva, Lilia M. Schwarcz e Luiz Schwarcz) e uma carta de Carlos Drummond de Andrade endereçada à autora, em 1966.

Reunidos, os posfácios vão ao encontro da inclinação de Lygia para manter sua lupa sempre a postos – embora essa posição estética, apontam, não dê conta apenas de miudezas. Estas, como afirma Dimas, não raro compõem uma “pista falsa”. Já Ana Maria Machado alerta: o que ocorre quando Lygia, que muitas vezes parece explorar a memória numa espécie de estado de entrega, a esmo, “faz com que neles [episódios supostamente autobiográficos] incida o relâmpago de uma ruptura evidentemente inventada”, num lampejo evidente? “Deixa de ser ficção ou apenas nos engana, a todos nós, seus leitores?” Pois quem nunca sentiu o bote certeiro de Lygia? Como bem lembra Dimas, a escritora é dona de malícia felina que, machadianamente, “disfarça, mostrando”. E assim, revela, a quem quer, “a verdade subterrânea das criaturas”, como lhe disse, em carta, Drummond.

As passadas de perna literárias, afinal, podem ser relacionadas a uma das máximas que a autora tem repetido ao longo da vida: escrever é uma luta. Para reiterá-la, cita o próprio Drummond:
– Os versos do poeta retratam com perfeição o escritor e o seu ofício:
“Lutar com palavras/
é a luta mais vã/
Contudo lutamos/
mal rompe a manhã.
E no final, os versos tentam explicar a luta inexplicável:
Luto corpo a corpo,/
luto todo o tempo,/
sem maior proveito/
que o da caça ao vento”.

Imersa na revisão de sua obra, Lygia confirma: ainda luta um bocado. Está escrevendo um novo romance, que irá integrar a coleção da Companhia das Letras (ela não revela detalhes do livro). E defende com unhas e dentes o seu direito a fazer as tais pequenas alterações em seus livros (“Todo escritor tem o direito de fazê-lo enquanto vivo, porque depois é o silêncio”).

O mesmo direito Lygia se assegura diante da difícil questão: dentre seus textos, quais são os preferidos?

– Penso que sou volúvel nas minhas preferências, mudo assim como a lua – explica. – Vamos lá: uma jovem estudante quis saber qual era o meu conto preferido e respondi, sem hesitação, “O moço do saxofone”. Ao jovem que desceu de uma moto abordando-me na rua respondi, acho que gosto mais do “Anão de jardim”. Na entrevista numa universidade veio o estudante com o microfone e respondi: o preferido é “A caçada”...

Se a lupa revelou a Lygia um outro mundo – o microscópico – a descoberta da literatura aconteceu algum tempo antes. Longe do papel, mas próxima de um universo de assombrações e enigmas.

– Tive uma pajem que sempre me contava histórias. Eram em geral histórias de fantasmas, eu tremia de medo, me escondia debaixo da cama, mas era uma ouvinte tão apavorada e deslumbrada – narra. – Quando a contadora de histórias faltou certa noite, tomei o seu lugar e inventei aquela procissão de caveiras andando à meia-noite pelas ruas, as velas acesas e cantando. Com que prazer imitei na perfeição a voz fanhosa das caveiras! Agora não era eu quem tremia, mas os que me ouviam. Fiquei poderosa, hein? Transferia para o próximo o medo e o resto.

De uma forma ou de outra, o fantástico permaneceu rondando a sua criação (vejamos, por exemplo, os contornos sobrenaturais de alguns de seus contos). Familiarizada desde a infância com a “procissão de caveiras” e outros elementos aterrorizantes, a escritora descreve assim, em um depoimento sobre As meninas, sua relação com as criaturas que inventa: “As personagens são como vampiros, cravam os caninos na nossa jugular e quando amanhece, voltam aos seus sepulcros até que anoiteça de novo. O fim do livro seria a pedra que ponho sobre esses visitantes. Definitivamente? Não. Um dia, de repente, com outro nome e outras feições e em outro tempo volta mascarada a mesma personagem, elas gostam da vida. Como nós”.

Lygia aceitou então resignadamente, num exercício permanente de paciência e disciplina, a sede de sangue de seus personagens. Assim como sua vocação para a literatura: pertencente a uma família de classe média, não pôde mergulhar exclusivamente na criação. Paulistana, filha de um advogado e de uma pianista, escolheu seguir a carreira do pai.

– Fui uma jovem pobre, tive que trabalhar como funcionária pública para fazer o curso na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. Bacharel, fui procuradora. Desconfio que não fui uma funcionária brilhante, mas cumpria as obrigações, afinal a minha vocação era escrever.

Vocação esta que, pode-se dizer, teve seu reconhecimento máximo com a conquista do Prêmio Camões, em 2005. Antes dele, já havia recebido diversos prêmios importantes, como alguns Jabutis, o Golfinho de Ouro, da Associação Paulista dos Críticos de Arte, e o Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras (onde, aliás, ocupa a cadeira 28). Hoje, Lygia não acredita que seja mais fácil a vida dos jovens escritores (“Em plena crise e com os leitores em processo de extinção, viver da literatura? Deixa-me rir”).

– Vivendo a realidade de uma escritora do Terceiro Mundo, considero minha obra de natureza engajada, ou seja, comprometida com a difícil condição do ser humano neste país de tão frágil educação e saúde. Uma profissional engajada e não alienada.

E, também, bem-humorada. Se foi difícil conciliar a profissão de advogada e a literatura? Ela não titubeia:

– Conciliar todo esse trabalho foi duro, sem dúvida, mas não estamos aqui neste mundo para passear.

A partir desta semana até meados de maio, Lygia faz uma pequena pausa na literatura. Não será exatamente de descanso: ela recebe homenagens pela reedição de sua obra, com debates e leituras dramatizadas. Depois retoma o ritmo de escrita e a revisão dos textos: em outubro, chegam às livrarias as novas edições de Ciranda de pedra, A noite escura e mais eu e Seminário dos ratos.

Para se referir ao momento que vive, recorre, mais uma vez, à poesia:

– Sobre a importância do sonho neste ofício é oportuno lembrar aqui o poema de um escritor português, Sebastião da Gama:
“É pelo Sonho que vamos/
comovidos e mudos./
Chegamos? Não chegamos?/
Haja ou não frutos/
é pelo Sonho que vamos”.

Reportagem de Juliana Krapp /JB Online - 16:56 - 24/04/2009
http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/04/24/e240423112.asp

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Os degraus

Mario Quintana


Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos — onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo.

http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 24/04/2009

quinta-feira, 23 de abril de 2009

As três pessoas

Gabriel Perissé

A gramática pode ser útil para a compreensão da condição humana, se a ultrapassarmos, se soubermos pensar para além das suas regras e classificações, tornando-a inspiradora.

Quando conjugamos os verbos, conjugamos de acordo com alguns parâmetros. Um deles são as pessoas. A primeira pessoa do singular, a primeira do plural, e a segunda do singular e a do plural, e a terceira do singular e a do plural...

Viajar na terceira pessoa — ele viajou, eles viajaram, eles conheceram Fortaleza, Paris, Cairo, Roma, Tóquio, eles deram a volta ao mundo. Tais viagens estão distantes de mim, distantes de nós. Podemos ler os relatos, imaginar como foi ou deixou de ser, pouco mais do que isso.

Viajar na segunda pessoa do singular — tu viajaste, você viajava — inclui o diálogo, as perguntas, os detalhes, as curiosidades, o olho no olho, em que vejo a sua viagem, em que vejo indiretamente o que você viu, o que você viveu em outras paragens.

Viajar em primeira pessoa — eu viajarei, nós viajamos —, tocar com os próprios pés outros chãos da mesma terra, ouvir com os próprios ouvidos outros idiomas, outras músicas, cheirar cheiros diferentes com o próprio nariz, este delicado órgão do conhecimento.

Aprender na terceira pessoa. É belo ver os outros aprendendo, renomados cientistas, sábios de cabelos brancos e olhos serenos, admiráveis pesquisadores.

Aprender na segunda pessoa pressupõe a relação, conduz ao encontro. Se você aprendeu, talvez eu possa aprender com você. Ou eu mesmo lhe ensinei algo sem saber. Quem sabe aprender aprende de tudo.

Aprender em primeira pessoa, prazer pessoal, insubstituível. Quando aprendo, eu não me arrependo, e me prendo a novas liberdades, desencadeio cadeados, destravo a alma, desprendo-me de mim mesmo.

Amar na terceira pessoa — ele ama, eles amaram, eles se amam. Este amor de telenovela, romance de outros personagens, histórias com final feliz ou trágico, amor dos outros, dicionário amoroso que posso apenas consultar.

Amar na segunda pessoa, amar o outro, amar-te aqui e agora, ou na China, ou em Marte. Amar-te até morrer-te. Amar-te com engenho e arte.

Amar na segunda pessoa já é amar em primeira pessoa. Amar no presente, no passado, no futuro. Amar imperativo. Amar em cada artigo. Amar em vocativo. Amar o amor em sua própria morfologia. Amar substantivamente. Amar embora, contudo, quando, porque...

Amar, enfim, com toda a riqueza das conjunções.

Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor.
http://www.correiocidadania.com.br/content/view/3192/53/ 22/04/2009

Gerações: navio e submarino

Alexandre Freire*
Está cada vez mais comum encontrar pessoas que falam muito bem sobre generalidades. Elas têm conhecimento sobre todos os assuntos do dia, desde a queda da bolsa de valores, passando pelas mortes ocasionadas no trânsito e até quanto custa uma viagem de turismo ao espaço. A internet, uma verdadeira biblioteca virtual, traz as noticias em tempo real, deixando bem informado qualquer cidadão durante todo o dia.
Acesso a informação não é mais privilégio de ninguém. Pobre, rico, criança, idoso, homem, mulher, latino, europeu, estamos todos a um click das noticias, entretenimento, jogos e o próprio trabalho. Destaque para a geração digital. .
Ela é composta por jovens de até 17 anos, onde a internet é a principal via para suas pesquisas, relacionamentos, comunicação, estudos, namoros, partilhas e entretenimento. Cedo, pela manhã, já vasculharam a rede, responderam emails, verificaram seus orkuts, assistiram ao ultimo vídeo do Youtube, fizeram uma rápida busca no google e se inscreveram no torneio mundial de matemática à distancia. Tudo que acessam é de maneira rápida, onde as chamadas são mais importantes que o conteúdo. É uma geração que tem uma inegável visão de 360º da superfície. É o que chamo de geração navio!
Quem não faz parte desta geração, até os 17 anos pesquisou pela Barsa, se comunicou por cartas, leu o jornal da banca, assistiu a filmes pela TV e participou de torneios presenciais e brincou de carrinho ou boneca. Alguns, mais afortunados, tiveram a oportunidade de trabalhar com a planilha Lótus 123. Lia-se todo o texto, até o fim. Transcrevia-se à mão a pesquisa para um caderno, recortavam-se artigos de jornais e revistas com a responsabilidade de debatê-los em sala de aula. O acesso a informação era restrito, mas o conhecimento do contexto era maior. Esses são parte da geração que tem uma inegável visão de profundidade. É o que chamo de geração submarino!
E daí? Você deve estar pensando... E daí que, a geração digital, está começando sua inserção no mercado de trabalho. Porem, são os profissionais da geração “profundidade” que contratam. Uma gerente de RH me confidenciou que durante as entrevistas, uma pessoa da geração digital discorre com facilidade sobre os acontecimentos do mundo inteiro. São versáteis, rápidos e decididos sobre o que querem.
Porém, quando confrontados com perguntas sobre o contexto dos acontecimentos, fazem cara de desentendidos ou dão respostas vagas sobre os assuntos. Essa gerente disse ainda que eles têm dificuldade para analisar as informações e sofrem com a necessidade de ter que iniciar em uma função que não esteja à altura deles.
Diante de tudo isso, acredito que no futuro, estas duas gerações entrarão em conflito no ambiente de trabalho. Por um lado, a geração “submarino”. Ela, no comando das empresas, exigindo análise detalhada do contexto para tomada de decisões na empresa. E, por outro lado, a geração “navio”, impaciente e acostumada a respostas na velocidade do Google, exigindo objetividade da liderança das organizações.
Mas um fato novo está acontecendo a despeito de tudo isso. As empresas estão chamando de volta muitos daqueles que foram considerados descartáveis: Os mais velhos! Talvez a resposta não esteja na profundidade ou na superfície, mas na sabedoria. A sabedoria é a visão de cima.
E daí? Você é submarino ou navio?

*Por Alexandre Freire (consultor sênior do Instituto MVC e professor dos MBAs Executivos da FGV. site www.institutomvc.com.br)
HSM Online23/04/2009
http://br.hsmglobal.com/notas/44225-gerações-navio-e-submarino

quarta-feira, 22 de abril de 2009

A ressurreição na pós-modernidade

Antonio Carlos Ribeiro

A ressurreição é uma realidade da fé e da esperança, e não da história. Por não ter referências, tende a ser vista como incrível que, em perspectiva pós-moderna, é uma categoria integrável à realidade. Diante desse conflito é preciso uma leitura pós-moderna do testemunho bíblico, defende o jesuíta Roger Haight.

É o que revelou Jeremy Kirk, em entrevista publicada no sítio Religion Dispatches, mestrando do teólogo e um dos que lamentam a decisão da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), tornando este o último semestre de Haight no Seminário Teológico União, o Union, por privar não apenas os católicos, mas toda a comunidade teológica da sua cristologia pós-moderna.

Jesus Symbol of God, a obra que gerou toda a polêmica, foi publicada em 1999 pela editora Orbis Books (Jesus, símbolo de Deus. Paulinas, 2003). A CDF abriu um processo de investigação da obra. Haight foi notificado a respeito de supostos erros teológicos.

Enviado o esclarecimento, o ex-Santo Ofício julgou as respostas insatisfatórias por não adotar o método teológico tradicional, mas responder aos seres humanos da atualidade. Condenado, o autor foi impedido de ensinar teologia em instituições católicas.
Nesta situação foi convidado a ensinar no Union, uma escola de origem presbiteriana que hoje é marcada pela diversidade cultural e presença de representantes das tradições cristãs em diálogo com a tradição judaica. Ademais se orgulha de ter tido como alunos e professores teólogos e teólogas reconhecidos como Reinhold Niebuhr, Paul Tillich e Dietrich Bonhoeffer, no século 20, as feministas Beverly Harrison e Delores Williams, e o pai da Teologia Negra da Libertação, James Cone.
A publicação das obras Dynamics of Theology, em 1999 (Dinâmica da Teologia. Paulinas, 2004), e The future of Christology, em 2005 (O futuro da Teologia. Paulinas, 2008), e a atuação no Union, o colocaram no centro do diálogo teologia e pós-modernidade, superando noções velhas como a guarda do mistério da salvação, da tradição católica, e a da inerrância bíblica, da tradição evangélica.

Com as punições a teólogos brilhantes se transformando em luta romana, como denunciou Moltmann, elas têm se tornado ineficazes e, à medida que se tornam severas, gerado solidariedade aos/às teólogos/as. Indagado sobre os erros em Jesus Symbol of God, Kirk respondeu que “isso depende de a quem você pergunta”, discordando que por não ter afirmado que Jesus é o logos, ou a palavra pré-existente de Deus, o teólogo possa ter rebaixado a divindade e a função soteriológica de Jesus.

E denunciou: “essa crítica minimiza e descaracteriza a discussão de Haight. Roma realmente rejeitou qualquer afirmação de que a crença no pluralismo das religiões, dentro ou fora do catolicismo, é válida e, por isso, merecedora de atenção teológica e eclesiástica”.
Para Kirk, esta obra trata das críticas pós-modernas ao cristianismo, que é a preocupação dos católicos norte-americanos. Haight afirmava a contínua relevância do cristianismo no contexto social e filosófico contemporâneo que apresentou tais desafios à legitimidade de certas reivindicações cristãs tradicionais. A falta de respostas adequadas a esse desafio levou muitas pessoas a deixarem a Igreja.

Sobre Jesus, afirma que Deus e o ser humano, ambos, são humanos e divinos. Só a cristologia dialética pode ser adequada e verdadeiramente fiel à tradição, como mostrou Calcedônia. Nesses dois pontos juntos, em tensão dialética que não pode ser resolvida, repousa o profundo mistério.
Assim, o cristão se acha existencialmente numa relação com Deus, por meio de Jesus. São aqueles que, pela fé, permitiram que Jesus fosse o seu acesso para Deus, a mediação privilegiada de Deus.
A ressurreição só pode ser entendida de um ponto de vista pessoal. Ela começa com as nossas esperanças em relação à nossa própria morte e as dos nossos entes queridos. “A esperança comum é a de que nós não morremos, mas continuamos existindo na esfera de Deus”.
A compreensão da ressurreição de Jesus só pode começar a partir da base da esperança, por isso para Haight não foi um evento histórico que aconteceu física e empiricamente no continuum espaço-tempo. Ao enterrarem um ente querido, cristãos “colocam o corpo na terra na fé-esperança de que a pessoa está ressuscitada de uma forma que não nega a historicidade do enterro físico”. Haight não afirmaria que o corpo de Jesus foi para algum lugar. “Não é a ressurreição de um cadáver. Não existe um Jesus zumbi”.
Entendendo a simbólica, especialmente no mundo ocidental, o jesuíta sustenta que “a ressurreição é uma ideia difícil de ser entendida porque nós não temos um referente sensorial. Sempre que falamos sobre coisas deste mundo, temos uma imaginação que trabalha em nossa ajuda. Mas com a ressurreição, a imaginação falha e na verdade começa a trabalhar contra nós. Então, assim que você a imagina, você faz dela algo incrível, um tipo de evento deste mundo. Você dá substância visual e tangível à ressurreição. Então, a questão de dizer que ela não foi um evento histórico é para assegurar que a ressurreição é uma realidade transcendente, que é uma questão de fé e de esperança”.
Kirk distingue “entre o que Haight diz em Jesus, Símbolo de Deus e como o que ele disse pode ser usado por outros estudiosos. O livro é uma discussão sobre como a fé cristã pode responder a certas críticas contemporâneas da fé e da tradição cristãs e não sobre a relativização de todas as crenças religiosas”.

Ele “pensou em termos do que ele achava que devia ser dito à luz da condição da Igreja contemporânea. Haight vê as pessoas deixando a Igreja simplesmente porque ninguém está respondendo às suas questões. Suas considerações eram dirigidas a essas pessoas, não aos riscos”.
Haight provavelmente “manifestaria otimismo com relação aos leigos. Se você olhar o catolicismo romano desde o começo, você vai ver um novo laicato culto. O corpo inteiro dos teólogos nos EUA será predominantemente formado por leigos, 80-90%, em poucos anos, e 65% desse corpo será de mulheres – será uma experiência completamente nova para a Igreja católica. Os leigos hoje estão conduzindo algumas paróquias com um padre que desempenha algumas funções especializadas. Há uma energia dinâmica totalmente nova na Igreja Católica Romana quando você a vê desde baixo”.
Mas esse ímpeto é refreado ao descrever o clero. “Quando você a olha de cima, vê sinais de declínio. Se considerarmos o número de pessoas nos seminários, a qualidade dessas pessoas nos seminários e as suas inclinações, não parece nada promissor. Quando você olha o episcopado e a oferta de possíveis candidatos, parece catastrófico. Eu acho que Haight reconheceria uma dialética como a existente entre o que os oficiais poderosos e conservadores em particular visam atingir e a força irrefreável dos leigos que constituem, em primeiro lugar, aquilo que definimos como ‘a Igreja’".
Diante da pergunta: Por que Haight permanece católico?, Kirk afirma que ele vê pessoas sofrendo à sua volta e por isso, “assume a responsabilidade pelas necessidades daqueles que estão ao seu redor e extrai a sua identidade da sua relação com eles”.

É preciso reconhecer que “o pluralismo não vai diminuir em um mundo cada vez mais globalizado e interdependente que enfrenta crises cada vez mais complexas e coletivas. Se o cristianismo ainda pode atuar como uma fonte para a reflexão ética à luz das crises históricas – o que eu confio profundamente que ele consegue – , ele deve ser honesto e confiável para este contexto globalizado e pluralista contemporâneo”.
http://www.alcnoticias.org/interior.php?codigo=13896&format=columna -22/04/2009

terça-feira, 21 de abril de 2009

Carta a Francisco de Assis


Irmão Francisco:
paz e bem!
Já se passaram quase oito séculos e ainda continuamos a recordar teu nome, mesmo quando certamente terias preferido passar de maneira discreta pela história, porque na realidade eras, de coração, um cidadão do céu. Quase oitocentos anos ao longo dos quais a Humanidade continuou seu curso e voltamos a cair nos graves erros da tua época. De fato, continuamos a ver em ti, homem do teu tempo, curtido na lida cotidiana em um meio cultural, político, religioso e econômico determinado, alguém que tem muito a dizer-nos hoje. Nesse sentido, está claro que não perdeste nem um pouquinho de atualidade, de novidade e de originalidade.

Mas, ao mesmo tempo em que constato isto, nem por isso deixo de sentir uma espécie de saudade, e ao mesmo tempo de tristeza. Me explico. Sentimos saudades de alguém, de algo, de algum lugar, que identificamos como único, belo, essencial em nossas vidas. E o fazemos precisamente porque tememos tê-lo perdido, ou que já não volta mais, ou que nada volta a ser o mesmo. Minha saudade de ti consiste talvez em que sinto que a tua história de amor ficou empacada, estancada, perdida, como se tratasse de uma ilha, no oceano imenso da história, como se o que tu viveste já não pudesse ser vivido hoje, ao menos não da mesma maneira e com a mesma intensidade. E me refiro não à tua vida concreta que, ao fim e ao cabo, é única e irrepetível, mas à tua experiência de amor solidário e generoso, teu compromisso desde e pela paz, que hoje tanto necessitamos.

A saudade é positiva se nos faz renascer para o que há de melhor em nós mesmos, mesmo que seja a força de idealizar e sonhar com o belo. A tristeza me brota – te confesso – porque comprovo que o ser humano de hoje, na realidade, não evoluiu. É verdade que a tecnologia é deslumbrante. Certamente, te sobressaltava comprovar como se avançou no aspecto da técnica ou da medicina, mas de um modo injusto, já que convertemos o mundo num gigantesco leprosário no qual marginalizamos centenas de milhões de pessoas que necessitam sobreviver (e às vezes nem sequer isso) em meio aos açoites insultantes da miséria. Sim, sem dúvida, tu, hoje, novamente estarias aí, junto destes novos “leprosos”.

O grande avanço, o progresso do qual os políticos tanto falam, na realidade é um pouco fictício. Para algumas pessoas a vida é um pouco mais cômoda, têm (temos) muitos meios materiais, mas o coração continua sendo o mesmo, aquele que tu conheceste em teu tempo. As diferenças, aqui, são de mero matiz. No teu tempo vestias de um jeito, viajavas a cavalo, não tinhas televisão nem internet, mas o coração humano podia chegar a ser imensamente mesquinho, como hoje. A verdadeira revolução, a do coração, iniciada por teu Jesus e continuada por ti, ainda está inconclusa. É um grande fracasso, mas ao mesmo tempo também um estímulo para continuar construindo sonhos e esperanças, porque, como podes comprovar, ainda está quase tudo por fazer. É certo que houve belos acontecimentos, que o bem continua abrindo espaço no meio da história, que há pessoas maravilhosas que se parecem muito contigo, mas o mal segue sendo contumaz e resiste em abandonar o coração humano, em cuja terra brotam todas as sementes de confronto e violência. Das guerras de nosso tempo não quero nem te falar, de tantas formas de guerra muito mais cruentas que as de teu tempo, porque hoje é muito fácil matar: que horror!
Tua família religiosa – ainda que não quiseste fundar nada por não se sentir digno – foi e continua sendo, muito próspera, mesmo que tenha sido uma história de luzes e sombras, de luta para conquistar um belo ideal ao mesmo tempo que a realidade concreta se nos impõe uma realidade cheia de contradições e infidelidades. Hoje existem não sei quantos movimentos religiosos e culturais que seguem o teu caminho. A Igreja beatificou e canonizou várias centenas de seguidores teus (perdoa; seguidores do Evangelho). Também teus filhos e filhas ofereceram seu sangue em martírio, sem olhar para trás, sentindo-se herdeiros do Reino dos Céus, com essa liberdade da qual tu falavas com frequência, aquela que nos leva a fazer só aquilo que é contrário “à nossa alma”. E no meio do mar do mundo continuamos a nos referir à tua “perfeita alegria”, aquela que expressaste ao Irmão Leone a caminho de Santa Maria, quando o tempo piorava e confabulavam com o cansaço e a fome. Chegar à porta da tua casa e não ser recebido devia ser acatado com paciência, a ciência da paz, vencendo-se a si mesmo. É aí, na adversidade, onde vence a humildade da pessoa pacífica e enamorada da vida. Viver comprometidos com o amor é uma aposta na verdade caritativa que tu aprendeste na escola de Jesus de Nazaré.
A Igreja atual continua sendo, em parte, a Igreja do teu tempo, porque é formada por homens e mulheres frágeis. Ela está sendo muito criticada, ma não se quer ver mais do que aquilo que interessa ver. Graças a Deus – a quem tu tantas vezes davas graças por tudo e apesar de tudo – seguem se produzindo no seio da Igreja muitos gestos de entrega generosa pela causa do Evangelho, nem sempre compreendidos por algumas pessoas, e pelos poderes deste mundo, que não desejam ter próximos testemunhas da verdade, por medo de que descubram muitas mentiras sobre as quais se apóia este mundo.

Continua-se a falar de ti – e já sei que isso não lhe agrada muito –, vencedor de vaidades e prepotências, como um homem de coração nobre e espírito humilde, como um grande amante da criação, como testemunha e portador da paz. Anualmente, acodem a Assis, e a outros lugares que guardam a tua memória, muitíssimas pessoas provenientes do mundo inteiro. Por que será? Te lembro aqui as palavras daquele irmão teu que te perguntava por que todos iam ao teu encontro, se na realidade tu eras o contrário do paradigma de herói do teu tempo. A tua resposta foi simples e realista: porque Deus conhecia teu pecado e quis manifestar-se, como sempre, através de um homem frágil e consciente de suas limitações. “O homem é o que são os olhos de Deus, e isso basta”, costumavas dizer. Estavas muito consciente da tua indigência, mas também do grande amor de Deus para com as criaturas.

Te confesso também que em certo modo hoje voltamos a te decepcionar, posto que nos tornamos muito acomodados e pouco comprometidos. Inclusive te “sequestramos”, porque falamos muito de ti, em homenagem a ti erguemos monumentos e majestosos prédios, teu nome está em ruas e até há cidades que tem o teu nome. Plasmarei aqui, por escrito, o que tu dizias: “Os santos fazem as obras, e nós, ao narrá-las queremos receber honra e glória”. Talvez seja assim. É mais fácil falar dos outros do que fazer da própria vida um caminho de encontro com Deus e a bondade. (...).

Dizem que um dos personagens mais conhecidos da história do século XX chegou a dizer – depois de liderar uma revolução – que na realidade ele teria necessitado de uma dúzia de “Franciscos de Assis” para que se tivesse realizado o sonho. Afinal, o lobo que mora em nós sai feito bicho selvagem à procura de quem devorar. Tu foste um rebelde, um revolucionário do coração, e hoje te lembramos por isso, e eu, pessoalmente, te agradeço por isso. Sabes que em minha vida tu és muito importante. Cada vez que dirijo meus passos, caminhando pela rua que leva teu nome, para o convento de São Francisco de Santiago de Compostela, e contemplo a tua efígie de braços abertos no “monumento”, reconheço que me dá a impressão de que a pedra me sorri, de que tu estás presente, na pedra moldada, na água da chuva, nos pássaros que cantam, nos viandantes... na vida, no amor, na paz e na esperança.

Quero concluir esta improvisada carta de amigo, de irmão, com uma oração, para que a recitemos juntos. Trata-se da “oração da paz”, composta muito tempo depois de ti, mas que sem dúvida reflete perfeitamente o teu espírito e estilo de vida. Ficamos combinados para um novo encontro, quando Deus quiser. Já tenho vontade de estar contigo.
Até sempre, Francisco, “boamente”:

“Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor,
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão,
Onde houver discórdia, que eu leve a união,
Onde houver dúvida, que eu leve a fé,
Onde houver erro, que eu leve a verdade,
Onde houver desespero, que eu leve a esperança,
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria,
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais
consolar que ser consolado;
compreender que ser compreendido,
amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe
é perdoando que se é perdoado
e é morrendo que se nasce para a vida eterna”.
Por ocasião dos 800 anos do aniversário da fundação da ordem franciscana, Francisco J. Castro Miramontes, escreve uma carta a São Francisco de Assis, relatando suas preocupações, decepções, alegrias e esperanças.
Francisco J. Castro Miramontes é sacerdote franciscano, Licenciado em Direito Civil e Canônico e Diplomado em Sagrada Escritura. Miramontes é o delegado de Justicia y Paz da ordem franciscana e responsável pelo Lar de Espiritualidade São Francisco de Assis, que acolhe peregrinos, em Santiago de Compostela. É também autor de, entre outros livros, Alter Christus. Francisco de Asís, signo del amor. Madrid: Editorial San Pablo, 2009.
A Carta a Francisco de Assis, escrita por Francisco Castro Miramontes e publicada no sítio espanhol Religión Digital, 16-04-2009. A tradução é do Cepat. Publicada no IHU/Unisinos, 21/04/2009