domingo, 15 de março de 2009

A Saia Almarrotada

O monçambicano MIA COUTO com o livro
O Fio das Missangas* (Companhia das Letras)
traz 29 narrativas curta sobre mulheres:

Trecho
Na minha vila, a única vila do mundo, as mulheres sonhavam com vestidos novos para saírem. Para serem abraçadas pela felicidade. A mim, quando me deram a saia de rodar, eu me tranquei em casa. Mais que fechada, me apurei invisível, eternamente noturna. Nasci para cozinha, pano e pranto. Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei sentindo prazer em ter vergonha.
Belezas eram para mulheres de fora. Elas desencobriam as pernas para maravilhações. Eu tinha joelhos era para descansar as mãos. Por isso, perante a oferta do vestido, fiquei dentro, no meu ninho ensombrado. Estava tão habituada a não ter motivo, que me enrolei no velho sofá. Olhei a janela e esperei que, como uma doença, a noite passasse. No dia seguinte, as outras chegariam e falariam do baile, das lembranças cheias de riso matreiro. E nem inveja sentiria. Mais que o dia seguinte, eu esperava pela vida seguinte.
Minha mãe nunca soletrou meu nome. Ela se calou no meu primeiro choro, tragada pelo silêncio. Única menina entre a filharada, fui cuidada por meu pai e meu tio. Eles me quiseram casta e guardada. Para tratar deles, segundo a inclinação das suas idades.
E assim se fez: desde a nascença, o pudor adiou meu amor. Quando me deram uma vaidade, eu fui ao fundo. (A Saia Almarrotada)

*Miçangas - Ele prefere grafar a palavra com dois esses.
Reportagem de Ubiratan Brasil no Estadão impresso, 15 de março de 2009.

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