terça-feira, 3 de março de 2009

O Deus do coração e o Deus do poder

Afirma que
"defender o Estado laico [...]
é [...] um dever
que os cidadãos religiosos
deveriam ter
no coração".
Libertar o Estado da religião significou consentir que a religião se expandisse livremente na sociedade, reforçando a sua própria força atrativa.

Esse é um dos ensinamentos que a história da Europa moderna nos oferece. E libertar o Estado da religião foi possível quando o estado de direito venceu a própria batalha contra o estado confessional. Em um livro interessante sobre a idade do secularismo, Charles Taylor, talvez o filósofo católico mais notável e representativo do nosso tempo, mostrou muito bem como a idade secular não foi, de fato, uma idade de incredulidade, mas sim uma idade de renascimento religioso justamente pelo respeito afirmado pela liberdade individual, como liberdade de consciência e liberdade religiosa, que é tanto liberdade de acreditar quanto liberdade de escolher em que acreditar.

Pré-modernidade e modernidade denotam, segundo Taylor, dois modos de ser da religião: de um lado, uma religião na qual os fiéis “pertenciam a Deus”, e a sua fé era identificada com ritos, práticas eclesiásticas e hierarquias. De outro, uma religião que, espécie de crítica da velha fé em nome da autonomia moral individual, considerou possível o afirmar-se da religião como “fenômeno de fé” – um fenômeno pelo qual “Deus pertence a nós”, como criaturas que desejam a eternidade e a transcendência e, portanto, acreditam por escolha.

Nesse sentido, o humanismo serviu à causa da religião, e o secularismo foi um trabalho não antirreligioso, mas sim a condição para que a religião voltasse a viver no coração humano, em vez de viver nos ritos e nas hierarquias. Quando a religião constituída dá um passo atrás, a religião como crença dá um passo adiante: essa foi, desde o século XVI, o ensinamento da filosofia da liberdade religiosa e da tolerância, uma filosofia graças à qual as comunidades políticas podem ser lugares de tranquilidade e de respeito recíproco.

Defender o Estado laico – ou seja, o Estado de direito – é, por isso, um dever que os cidadãos religiosos deveriam ter no coração de modo particular, não menos do que os outros. Estado laico não é estado secularista, mas Estado que se dá como critério para legislar e julgar a separação do justo do bem. A arte da separação não é a arte da negação ou da hipocrisia: separar os nossos critérios de juízo quando raciocinamos como cidadãos e quando raciocinamos como indivíduos sociais não significa, de fato, silenciar as razões éticas para que as razões políticas triunfem.
A arte da separação é a arte que permite que quem tenha uma dimensão religiosa de vida viva em coerência com essa sua crença e que não imponha, com a arma da lei, a sua visão do bem. E fazendo isso, não respeite só ou simplesmente quem não tem crenças religiosas particulares, mas antes de tudo quem tem uma forte crença religiosa e, por isso, também a si mesmo. Como é verdade que só quem é livre crê – se é verdade que o crer é um ato de liberdade pessoal fundamental –, então quem crê não pode ver o próprio credo traduzido em um artigo do código penal. Não é pela lei que a nossa crença terá a certeza de ser respeitada, mas sim pela nossa responsabilidade e escolha pessoais.

Não é a ausência de uma lei que garante à mulher decidir responsavelmente a própria maternidade que liberta a mulher do dever da escolha, e a sociedade, do aborto. Estamos verdadeiramente certos de que silenciaremos o nosso sentido de dever com relação à vida quanto algum representante político encontre um compromisso com esse ou aquele procedimento? E como um crente pode aceitar que se delegue a alguns – em tudo semelhantes a ele – o fato de tomar decisões que só ele poderá e deverá tomar na realidade?

Em um Estado de direito, a lei não impõe a todos aquilo que alguns (não importa quantos) pensam que seja bom fazer em um campo, o moral, onde só a consciência do indivíduo tem o dever da escolha. É essa lei, não uma lei ética, que protege a dignidade do crente. E aquilo que é bom para o crente é também para o cidadão, nesse caso.

Que a democracia seja um governo de iguais significa, de fato, nada mais do que dar um critério mais legítimo para decidir do que a contagem dos votos, e isso não porque a democracia seja medíocre ou vulgar, mas porque ela é humaníssima. A democracia presume que ninguém seja infalível e sábio acima de todos. Nenhum representante meu pode decidir por mim o que é bom que eu faça para defender a minha dignidade moral. É aviltante quando se assiste um Parlamento que se arroga o direito de nos tratar como crianças, que dita as suas máximas éticas e, além disso, e por necessidade, as condições ao compromisso e à contagem dos votos.

O crente religioso e o cidadão têm aqui o mesmo interesse: o de ter políticos que não tornem a vida um objeto de compromisso político. É justamente a dignidade, a de todos – mas sobretudo a dos crentes – que está em jogo quando se pede ao Estado que deixe de ser estado de direito para se tornar órgão de uma doutrina religiosa ou ética.
*Politóloga. Doutora pelo Instituto Universitário Europeu de Florença e professora nas universidades de Nova Iorque, Pennsylvania, Princeton e agora em Columbia, Nadia defende que "o crente religioso e o cidadão têm aqui o mesmo interesse: o de ter políticos que não tornem a vida um objeto de compromisso político". A tradução é de Moisés Sbardelotto. - IHU/03 de março de 2009.
http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=20333

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