quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

As cores do ódio

Roberto Romano
Algumas técnicas permitem dirigir multidões. Goebbels usou de modo inventivo a manipulação dos jornais, rádio e cinema para assassinar milhões. Voltemos ao pensamento platônico para entender a eficácia da ideologia. Na República (Livro 4) Platão mostra a forma de impor atitudes mentais aos protetores da cidade. A obediência será infalível se eles tiverem nas almas “a opinião garantida pela educação relativa às coisas que devem ser temidas”. Sócrates adianta uma figura que explica o seu dito. Os tintureiros, diz ele, se querem aplicar a cor púrpura em tecidos, escolhem o branco e o preparam para receber aquele matiz. O tecido é testado com detergentes, para ver se perde a cor. Caso seja usada uma lã não branca e a tinta não receba tratamento correto, a púrpura se gasta num ridículo descolorido.
Para formar os soldados, finaliza Sócrates, devemos fazer como o tintureiro que aplica a cor indelével. O tecido, agora, é o da alma. Esta última deve ser dócil e receber a opinião da lei, relativa ao que deve ser temido. Se a técnica é falha, a opinião perde força. Magnífica análise, a platônica, dos processos autoritários usados na era antiga e moderna. Doutrinas ideológicas aplicadas com perícia técnica na alma das massas, são indeléveis e se tornam “preconceito” ou “ética”. “Ética” se enuncia de muitos modos. Ela pode ser correta e saudável, ou mortal. Existe a ética médica para garantir vidas e, de outro lado, a exercida na máfia, agrupamentos políticos, etc. Ética é o conjunto de atitudes corporais ou anímicas aprendidas em determinado tempo que, de tanto repetidas, operam automaticamente. Elas podem se desbotar um pouco. Mas são passíveis de reavivamento, de modo a gerar certezas nos adoecidos de ideologia ou pior, nos educados apenas para seguir ideologia.
O antisemitismo é ideologia arraigada na mente de povos antigos e modernos. São inúmeras as tinturarias da alma que funcionaram em ritmo industrial na história do Ocidente, para aplicar nas almas o ódio contra os judeus. A Idade Média imprimiu ódio contra os judeus com a desculpa do deicídio. Entre os protestantes Lutero exagerou em textos como Os judeus e suas mentiras (1543). A atitude genocida encontra-se em outros textos do Reformador, por exemplo no terrível As últimas palavras de Davi. Quem deseja mais dados, leia o escrito de H. Oberman: The roots of anti semitism (Philadelphia, Fortress Press, 1984). Não por acaso aqueles textos de Lutero receberam enorme publicidade na Alemanha, entre 1933 e 1945. A receita de Lutero foi seguida pelos genocidas: queimar sinagogas, arrasar moradias, destruir livros de oração, expulsar os judeus do país.
O caso é estudado por analistas de hoje, recomenda-se aos honestos intelectualmente a leitura de M. U. Edwards Jr.: Luther’s Last Battles: Politics and Polemics, 1531–46 (Ithaca, Cornell Univ. Press, 1983). O antisemitismo do século 20 não foi monopólio dos cristãos. Os supostos ateus da URSS e países auxiliares nutriram ódio contra os judeus, encetaram pogroms e perseguições. A tinturaria das almas tem filiais espalhadas pelo mundo e forma o que M. Ponty denominou, ao falar de Maquiavel, “a comunhão negra dos santos”.
Na semana passada o mundo constatou, sem muita perplexidade dada a eficácia da propaganda contra os judeus, atos gravíssimos. Em primeiro lugar vem a notícia de que o pretenso bombardeio de uma escola da ONU não ocorreu. A mentira foi divulgada pelos jornais importantes com direito a fotos. A verdade aparece, tímida, oculta pelos mesmos periódicos. O governo de Chávez patrocina a destruição de uma sinagoga. No Rio Grande do Sul, outro local de culto judeu foi profanado com símbolos nazistas.
A tinturaria mentirosa opera rápido. Ela apenas revigora os desbotados matizes do ódio que, na vida democrática, pareciam perdidos. Apelo aos honestos: aceitar o antisemitismo de esquerda ou direita é seguir o rumo da barbárie. Esta não salva ninguém da morte coletiva, em especial os árabes que hoje espalham doutrinas racistas. Eles também serão vítimas do que hoje pregam de maneira automática.

*Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia Política na Unicamp
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1619738&area=2190&authent=2C56191066733214C421825EE10A86

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