domingo, 11 de janeiro de 2009

Quem determina o fato histórico?

Jaime Pinsky*
Embora não se possa confundir pesquisa com docência, é muito bom quando o pesquisador tenha preocupações didáticos e o professor se aprofunde na investigação. Ocorre, então, retroalimentaçao salutar entre a sistematização e o aprofundamento — uma, fundamental nas aulas; o outro, imprescindível na pesquisa. Ambos úteis nos dois casos.
Há perfis que não se amoldam a uma ou outra das tarefas: o investigador competente porém “travado” ou o mestre brilhante mas incapaz de aventuras de espírito mais profundas, por exemplo. Há, contudo, certo esnobismo por parte de uma série de pesquisadores que acham que sua fala deve, necessariamente, ser inacessível ao comum dos mortais.
Convencer esses espécimes a praticar a modéstia da clareza é tarefa inglória. Pior ainda são os medíocres, por sinal a imensa maioria dos acadêmicos, a descer dos saltos e escrever, ou falar de modo a serem compreendidos. Nesse caso há um medo compreensível: se seu discurso for entendido, a pobreza dele ficará mais à mostra. Ele é o especialista em relatórios, o campeão da burocracia. Não é intelectual, senão o burocrata do conhecimento.
Há poucos anos um grupo de historiadores de talento, preocupados com o divórcio então (e ainda) existente entre a universidade e o ensino de história escreveu um pequeno livro que já teve numerosas edições e tem influenciado gerações de professores e estudantes. O ensino de História e a criação do fato (o nome do livro) não questionava apenas o modo pelo qual alguns fatos são considerados “históricos” e outros não, ou quem determina a historicidade dos fatos, mas ia fundo na discussão sobre que história interessa ensinar num país como o nosso.
Vinte anos após a primeira edição do livro, os autores decidiram atualizar formalmente os textos, mantendo, contudo, o conteúdo. Sua atualidade (mais triste do que animadora em alguns casos) poderá nos ajudar a compreender melhor a história. Não resisti e extraí da obra frases reveladoras que transcrevo abaixo para (espero) o prazer intelectual dos meus supostos leitores, aos quais, evidentemente, desejo um ano de paz e alegria.
“Da maneira como a maioria dos manuais insiste em nos apresentar a História, esta parece ser, efetivamente, a ‘a ciência do passado’.”
“A transmissão da ideia de um passado separado de viver social articula-se com o sentido de um tempo imutável, dogmático.”
“Cada nação conta uma história diferente. O que é guerra de libertação para uma é de opressão para outra.”
“Outro valor que aparece em nossos livros de história é a ideia de um Brasil sem preconceito racial, onde cada um colabora com aquilo que tem para a felicidade geral. O negro com a pimenta, o carnaval e o futebol; o imigrante com sua tenacidade; o índio com sua valentia. Negando o preconceito, guarda-se o fantasma no armário ao invés de lutar contra ele.”
“Esmagado duplamente, de um lado pelo herói, de outro pelo ‘processo’ do qual era vítima passiva, o homem começa ser descoberto como agente real da história, como aquele que atua para que ela possa ocorrer.”
“Fazer história pode começar pelo que seria a inversão de um quebra-cabeças: o acontecimento pronto e acabado, que sempre compõe uma imagem que ambiciona abranger a totalidade, deve ser decomposto para denunciar aos espectadores o arbítrio de sua construção, como se alguém mostrasse à plateia os fios invisíveis que sustentam os truques do ilusionista – tão sobrenatural quanto qualquer um de nós.”
“A tarefa da escola pública torna-se mais complexa ao se ver obrigada a introduzir, para alunos provenientes de diferentes setores sociais, formas de socialização comuns a todos.”
“Repensar na história como disciplina escolar requer dos professores um momento de reflexão que envolve considerações que vão além dos conteúdos, metodologias de ensino e recursos didáticos. Trata-se de refletir sobre o sentido político e social da disciplina histórica.”
“A heroização do povo pode ser consoladora, mas não ajuda a compreender a realidade e, portanto, a transformá-la num sentido favorável às classes populares. Ao contrário, pode ser tão mitificadora quanto a história tradicional, que enaltecia os ‘grandes homens’ das camadas dirigentes.”
*Jaime Pinsky. Historiador, professor titular da Unicamp, é diretor da Editora Contexto.
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 11/01/2009

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