sábado, 3 de janeiro de 2009

A humanização das máquinas

Severino Francisco
Bem, não sei se isso já ocorreu a vocês, mas eu já liguei várias vezes para a minha casa e a voz de uma máquina respondeu, com uma entonação de alma do outro mundo: “Esse número não existe”. O que mais me impressionou foi a convicção com que a voz sobrenatural anunciou a inexistência do número para o qual eu ligo todos os dias.
Nelson Rodrigues escreveu uma inspirada crônica sobre uma suposta viagem do amigo Otto Lara Resende à Noruega. Segundo Nelson, antes de viajar para a Noruega, Otto era um feroz adepto do desenvolvimento, mas depois da visita ao país nórdico, ele mudou radicalmente de ideia. Otto chegou à conclusão de que o desenvolvimento humaniza as máquinas e maquiniza os homens. Nelson escreveu a referida crônica na década de 1960, mas ela nunca esteve tão atual, pois a nossa relação com as máquinas tornou-se surreal, absurda, tragicômica, alucinatória.
Experimente ligar para uma operadora de celulares ou para a central de atendimento de um banco, pois terá uma experiência inesquecível. Você pulará de ramal em ramal, sempre conversando com máquinas . Para adquirir um celular, acione 1; para cartão de crédito, tecle 2; para reparos técnicos, tecle 3; para… E as máquinas são mais educadas do que a maioria dos humanos atuais, sempre fazem questão de dizer: “A sua ligação é muito importante para nós”. O pior é que, depois de meia hora, quando finalmente você consegue falar com um dos consultores, supostamente humanos, eles se comportam como máquinas impecáveis em seu discurso programado. A palavra mágica é sistema: “Sinto muito senhor, mas o sistema não reconhece”. Ora, a gente tenta falar com um consultor precisamente porque o sistema não resolve os problemas.
Irritado com o absurdo das máquinas e dos discursos corporativos mecânicos das atendentes, um amigo resolveu dar o troco. Quando recebeu uma ligação de uma operadora de telefonia, oferecendo produtos, ele conversou por alguns instantes e solicitou: “Só um instante, porque eu vou consultar a minha mulher para ver se ela se interessa pelo produto de vocês. Por favor, não desligue, pois a sua ligação é muito importante para nós”. Neste ínterim, trabalhava, saía, tomava cafezinho e voltava depois de uns 15 minutos: “Por favor, não desligue querida, a sua ligação é muito importante para nós”.
E as máquinas se intrometeram até nas relações amorosas. Há algum tempo, circulou a notícia de que um homem e uma mulher começaram a ter um caso pela internet. Os dois se apresentaram com nomes falsos, mas as afinidades foram se revelando e a coisa começou a esquentar, mesmo quando atingiu os limites do erótico. Em princípio, o território virtual proporciona segurança, anonimato, liberdade de se inventar, sem a fragilidade, a ausência de controle e a complexidade de uma relação cara a cara. No entanto, o mundo dá voltas e… Em determinado momento, ambos ficaram indignados, pois descobriram que estavam traindo um ao outro, ou seja, que eram respectivamente marido e mulher. De minha parte, estou esperando o dia em que uma máquina me anunciará: sinto muito, o sistema está dizendo que o senhor não existe. Obrigado, pela ligação.

http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 03/01/2009

Nenhum comentário:

Postar um comentário