segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

A volta do PEDESTRIANISMO


Matthew Shirts

Vendi o carro há meses, com a ajuda do meu filho mais velho, o Lucas. Parecia ser um passo lógico no meu projeto de pedestrianismo. Quem lê estas mal traçadas com alguma regularidade sabe que procuro andar a pé em São Paulo. Não só a pé. Vou de táxi, também, como cantava a Angélica, com insistência, numa outra década, e de metrô e de ônibus, sem falar das caronas. Mas na medida do possível, tentei retirar o automóvel do meu cotidiano.
Não prego o pedestrianismo, embora tenha convencido minha vizinha, a escritora Maria Rita Kehl, a aderir ao movimento (não foi difícil), e ainda ando pela Sumaré, sempre que possível, com o professor Antônio Pedro Tota. Mas, para dizer a verdade, já havia esquecido o assunto. Virou rotina.
Isso até a semana passada, quando me vi fuçando os títulos nas estantes da Livraria da Vila nos Jardins. Chegara cedo, para variar, ao lançamento do bonito A Olhos Vistos, uma iconografia de Machado de Assis feita por meus amigos Hélio Guimarães e Vladimir Sacchetta. Lindo mesmo. Não pretendia comprar nada além do Machado. Havia uma fila de livros em casa, aguardando leitura como os aviões esperam a vez de pousar em Congonhas.
Mas eis que me salta de um canto obscuro da loja uma pequena obra em capa dura, com o título, em inglês, de A Arte Perdida de Andar: A História, Ciência, Filosofia e Literatura do Pedestrianismo. Minha primeira reação foi de espanto, seguida de inveja e curiosidade. Queria eu ter escrito esse livro, pensei, antes mesmo de abri-lo. Levei-o até a máquina de calcular o preço: 80 reais! Nem que a vaca tussa! Mas estava ali sem nada para fazer, aguardando minha mulher Luli. Mal não havia em dar uma olhada. Afinal, ninguém é de ferro.
Bom, o livro, do escritor inglês Geoff Nicholson, que passa a maior parte do seu tempo em Los Angeles, onde anda a pé, diga-se, é uma delícia. Lera, certa vez, num dicionário brasileiro, a seguinte definição de pedestrianismo: "esporte praticado ao ar livre no século 19, sobretudo por poetas". Adorei essa explicação e logo incorporei a palavra ao meu vocabulário. Alguns leitores chegaram a protestar. Escreveram dizendo que utilizava o conceito indevidamente. Mas eu estava gostando da brincadeira. Preciso confessar que nada conhecia da história do pedestrianismo. Até agora.
Foi um esporte mesmo, dos mais excêntricos, que atraía multidões e movimentava apostas. "Ser um pedestre no início do século XIX significava que se corria a pé e não a cavalo ou de carroça." As regras eram reinventadas a cada evento. Alguns pedestres ficaram famosos. Parece que o maior de todos foi um certo capitão Barclay, inglês. Existe até uma biografia dele, The Celebrated Captain Barclay, de Peter Radford. Em 1807, Barclay desafiou outro pedestre ilustre, Abraham Wood, a uma "corrida" de 24 horas. Ganharia quem andasse mais nesse período. Arrogante, Wood deu a Barclay uma vantagem inicial de 30 quilômetros e os deuses acabaram punindo tamanho húbris. Durante o percurso, Wood sofreu "dificuldades físicas", parou após seis horas e meia e, em seguida, morreu.
O mais famoso pedestre americano foi Edward Payson Weston. Suas caminhadas atraíam multidões. Ganhava comida e hospedagem, ao longo dos seus trajetos, e beijos das garotas locais. Faturou US$ 25 mil em 1869 por uma caminhada de 8 mil quilômetros, uma fortuna. Em 1871, andou 300 quilômetros em "marcha à ré".
Eram outros tempos. Mas os pedestres de hoje podem ser tão divertidos quanto os de antigamente. Arthur Blessitt já deu uma volta e meia no planeta Terra, a pé, carregando uma cruz de 18 quilos. Você pode acompanhar seu progresso no site: http://www.blessitt.com/. Na última vez que olhei, na semana passada, havia alcançado a marca de 61,319 quilômetros.
Os mais excêntricos, entre muitos, convenhamos, talvez sejam os da turma do Temporary Travel Office em Brooklyn, Nova York. Eles, nas suas próprias palavras, "investigam a realidade do pensamento utópico tal como materializado no espaço mundano e pragmático de estacionamentos públicos". Juro. Está no livro do Nicholson, que dedica páginas ao projeto, feito a pé.
Li A Arte Perdida de Andar quase que numa só tacada. Não foi na livraria. Morri com os 80 reais mesmo. Mas valeu. Nicholson definiu, para mim, um dos principais prazeres do pedestrianismo na grande cidade. Diferentemente de quem enfrenta o trânsito no automóvel, ou utiliza o transporte público, quando se anda a pé, é você quem manda.

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