sábado, 22 de novembro de 2008

SIZÍGIA

Felipe Fortuna*

SEMPRE QUE ME ENVOLVO em alguma discussão sobre vanguarda ­ e sobre as frágeis fronteiras entre as artes ­ penso na palavra sizígia. Para muitos, sizígia deve ter o efeito de rosebud, a palavra enigmática que explica e traz novas dimensões ao filme Cidadão Kane (1941). Sizígia significa, em astronomia, a situação na qual três corpos celestes permanecem, em algum momento, perfeitamente alinhados. Assim sendo, quando a Lua, o Sol e o nosso planeta se encontram na mesma linha reta ­ surge a sizígia (cuja raiz grega significa, justamente, conjunção ou união). Uma parte considerável das vanguardas parece buscar esse instante aleatório de harmonia durante o qual, em vez de destruição ou aniquilamento, passa a existir unidade que cria um objeto ou um fenômeno inteiramente novo. Seja na pintura, na literatura ou na música, o artista tenta muitas vezes introduzir elementos inesperados e intangíveis: o cubismo seccionou as imagens em novos planos visíveis; o enredo de um romance passou a ser a aventura lingüística, não os episódios fictícios; o tempo da melodia também se traduziu por emissão de luzes.

A primeira vez que li a palavra sizígia foi em Wordplay (1992), do artista gráfico John Langdon. No livro, a palavra grafada em inglês ­ syzygy ­ ganhou contornos ainda mais espetaculares do que em português ­ uma vez que exibe três letras iguais alinhadas por três letras diferentes, ou vice-versa, como se trouxesse a definição do conceito na sua existência material. A palavra também serviu para que John Langdon exercitasse, uma vez mais, a arte em que se mostra magistral: a do ambigrama.

O ambigrama é uma palavra estruturada a partir das suas relações de simetria, podendo ser lida, sem mudanças, de pelo menos uma posição oposta. Um aviso como o que se encontra, em inglês, numa academia de ginástica (Now no swims on mon, "agora não se nada na se- gunda-feira") pode ser perfeita- mente lido de cabeça para baixo, uma vez que é simétrico a partir de um eixo horizontal. Em Wordplay, John Langdon se confessa inspirado pela representação de opostos e por sua harmonização, segundo conceitos que remontam ao taoísmo e à filosofia zen. O logotipo fundamental para a sua visão de simetria e do ambigrama é a representação do yin e yang, a circunferência que contém seus espaços igualmente preenchidos pelo branco e pelo preto e, dentro de cada uma dessas cores, dois pequenos círculos com as cores opostas. Com base nesses princípios, o artista gráfico começa a pesquisar modelos matemáticos e chega às obras de M. C. Escher, quando finalmente reconhece: ao pesquisar os pólos opostos, "sem qualquer surpresa, eu tentei fazer com as palavras o que Escher tinha feito com prédios, pássaros e peixes".

Considere-se um ambigrama como seagulls ("gaivotas") e toda a sua expressiva idealização do reflexo sobre a superfície do mar, além das linhas leves e arredondas que se equiparam a asas. Considere-se também bridge ("ponte") com sua tipografia a lembrar o material bruto da construção, que ainda sustenta, pequena, a letra i. A palavra bridge é em si mesma simbólica da conexão que se pode fazer entre um lado e o outro lado. Ambos os ambigramas podem ser encontrados, entre muitos outros, na página que seu autor atualmente mantém em , sempre lembrando que ele conseguiu construir um ambigrama com seu próprio nome.

Na época em que li Wordplay, porém, dois belos ambigramas chamaram a minha atenção: Sometimes/Never e Perfection, que se utilizam da forma circular e da repetição ao infinito.
Em nenhum momento do livro ­ e tampouco em Inversions (1989), de Scott Kim, e Ambigrammi (1987), de Douglas Hofstadter ­ se menciona o poema visual ou o poema concreto. O princípio motriz das pesquisas de todos esses desenhistas gráficos, matemáticos e filósofos é a existência da sizígia entre, por exemplo, o taoísmo, a física e a palavra. Por vias completamente desconhecidas da série literária, e sempre de modo inesperado, as criações surgidas dessas pesquisas passam a ter evidente relevância para o debate sobre vanguarda e sobre os rumos do poema, este com o peso quase secular da "crise do verso".
Por ora, parece importante lamentar a persistência daquilo que o cientista e romancista C. P. Snow chamou, em 1959, de "as duas culturas": a separação entre os saberes científicos e os saberes humanistas. Talvez a vanguarda histórica ­ e, a partir de então, todas as vanguardas ­ possa demonstrar esse impulso de religação de tudo o que, na vida e na arte, deveria constituir um só elemento. Paradoxalmente, até mesmo a poesia concreta mereceria ser questionada em sua ambição verbivocovisual, pois estaria confundida a muitas outras manifestações semióticas: Marjorie Perloff, em Radical artifice (1991), livro no qual comenta a poesia na era da mídia, não pressente diferenças entre o poema "Código", de Augusto de Campos, e algumas placas de carro americanas que estampam outros jogos de palavra. Controvertidas como sejam as vanguardas (bem como suas intenções e seus resultados), não se deve esperar a predominância de uma linguagem que descarte as demais: utopicamente, só mesmo um alinhamento em sizígia evitaria a cizânia.

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