sábado, 8 de novembro de 2008

OS ESPELHOS DE GALEANO

O escritor uruguaio Eduardo Galeano lança seu novo livro, Espelhos _ uma história quase universal, em sessão de autógrafos dia 13, às 20h30min, no centro Cultural CEEE Erico Verissimo (Andradas, 1.223), em Porto Alegre. Espelhos (L&PM, 360 páginas, R$ 42 _ ou R$ 33,40 com o desconto, na Feira do Livro) reúne 600 crônicas baseadas em relatos bíblicos e em fatos históricos. Apresentam a versão de Galeano para episódios que, segundo ele, muitas
vezes ficam escondidos no lixão da história.

Abaixo, trechos do novo livro do autor de As veias abertas da América Latina:

Aleijadinho
O homem mais feio do Brasil cria a mais alta beleza da arte colonial americana.
O Aleijadinho talha em pedra a glória e a agonia de Ouro Preto, a Potosí do ouro. Filho de uma escrava africana, esse mulato tem escravos que o movem,
o lavam, lhe dão de comer e atam os cinzéis aos seus cotocos de braço.
Atacado pela lepra, ou sífilis, ou quem sabe o quê, o Aleijadinho perdeu um olho e os dentes e os dedos, mas esse resto dele talha pedras com as mãos
que faltam.
Noite e dia trabalha, como vingando-se, e brilham mais que o ouro seus cristos, suas virgens, seus santos, seus profetas, enquanto a fonte do ouro é
cada vez mais avara em fortunas e mais pródiga em desventura e revoltas.
Ouro Preto e a região inteira querem dar razão à antecipada sentença do conde de Assumar, que foi seu governador:
Parece que a terra exala tumultos e a água, motins; as nuvens vomitam insolências e os astros, desordens; o clima é tumba de paz e berço de rebeliões.

Pedagogia do sangue
Enquanto os Estados Unidos e o Japão levavam adiante suas independências, outro país, o Paraguai, foi aniquilado por fazer exatamente a mesma
coisa.
O Paraguai era o único país latino-americano que se negava a comprar salva-vidas de chumbo dos mercadores e banqueiros ingleses. Seus três vizinhos,
Argentina, Brasil e Uruguai, tiveram que dar ao Paraguai, a sangue e fogo, um curso sobre os usos e os costumes das nações civilizadas, conforme
explicou o jornal inglês Standard, que era publicado em Buenos Aires.
Todos acabaram mal.
Os alunos, exterminados.
Os professores, falidos.
Tinham anunciado que em três meses o Paraguai levaria sua merecida lição, mas as aulas duraram cinco anos.
Os bancos britânicos financiaram essa missão pedagógica e cobraram caro por ela. Os países vencedores acabaram devendo o dobro do que deviam
cinco anos antes, e o país vencido, que não devia um centavo a ninguém, foi obrigado a inaugurar sua dívida externa: o Paraguai recebeu um crédito
de um milhão de libras esterlinas. O empréstimo foi feito para pagar a indenização aos países vencedores. O país assassinado pagava aos países assassinos
pelo muito que lhes havia custado assassiná-lo.
Do Paraguai desapareceram as tarifas alfandegárias que protegiam a indústria nacional; desapareceram as empresas do Estado, as terras públicas,
os fornos siderúrgicos, a ferrovia que tinha sido uma das primeiras da América do Sul; desapareceu o arquivo nacional, queimado com todos os seus
três séculos de história;
e desapareceram os homens.
O presidente argentino, Domingos Faustino Sarmiento, educado educador, comprou em 1870:
— Acabou-se a guerra. Não sobra mais nenhum paraguaio com mais de dez anos.
E celebrou:
— Era preciso purgar a terra de toda essa excrescência humana.

Ao vivo e em cores
O Brasil inteiro assiste.
Um espetáculo em tempo real.
A televisão não perde detalhe do momento em que o criminoso, negro como tinha de ser, transforma em reféns os passageiros de um ônibus no Rio
de Janeiro, certa manhã do ano de 2000.
Os espelhos de Galeano
Os jornalistas vão contando o que acontece como se fosse uma mistura de futebol e de guerra, a emoção explode-corações de uma final de Copa do
Mundo narrada no tom épico-trágico do desembarque da Normandia.
A polícia cercou o ônibus.
No tiroteio, morre uma moça. O público vocifera maldições contra a fera selvagem que não vacila em sacrificar inocentes vidas humanas.
No final, depois de quatro horas de muitos gritos e muita ópera, uma figura da ordem derruba o perigo público. Os policiais exibem seu troféu, o
criminoso, diante das câmaras.
Todos querem linchá-lo, os milhares que estão ali e os milhões que não estão mas vêem.
Os policiais o agarram.
Entra vivo no carro da patrulha. Sai estrangulado.
Em sua breve passagem pelo mundo, chamou-se Sandro do Nascimento. Ele era uma das muitas crianças de rua que dormiam nas escadarias da
igreja da Candelária, numa noite de 1993, quando choveu metralha. Oito morreram.
Dos que sobreviveram, quase todos foram mortos pouco depois. Sandro teve sorte, mas era um morto em gozo de licença provisória.
Sete anos depois, cumpre a sentença.
Ele sempre sonhou em ser estrela da televisão.
(Zero Hora, Cad. Cultura - Porto Alegre, RS - Sábado, 08/11/2008)

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