quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

UMA NEGAÇÃO DO REAL (Instrumentos digitais)

Robert Solé comenta as idéias centrais do novo livro de Serge Tisseron, Virtuel, mon amour (Virtual, meu amor). Paris: Albin Michel, 2007, 230 p. Le Monde, 17-01-2008. A tradução é do Cepat.

Os instrumentos digitais favorecem “uma negação do real”, constata Serge Tisseron, psiquiatra e psicanalista. A própria maneira de se comportar é influenciada: “No mundo virtual, a hipótese não tem lugar: cada um é convidado a tatear e a experimentar todas as possibilidades que se oferecem a ele. O raciocínio não é mais hipotético-dedutivo, mas permanentemente intuitivo”. Os jovens, em particular, têm a tendência de agir assim em suas relações: eles experimentam tudo, sem prejulgar nada.

Os adolescentes não querem mais deixar o domicílio familiar. Com fones de ouvido ou trancados em seus quartos, eles levam uma vida paralela, mas em tudo continuando a se servir da geladeira. E quando os pais tentam se imiscuir nesses novos territórios, eles são rejeitados.

O telefone celular não é somente um instrumento, mas um interlocutor, sempre disponível. Quanto mais os corpos se extraem à comunicação, sublinha o autor, mais as emoções e as sensações são vividas com as máquinas.

Para procurar a alma gêmea na internet, cada qual constrói para si uma identidade, oferece a imagem que se faz ou procura dar de si. 'Fala-se' sem se ver, para experimentar saber se vale a pena se encontrar... O verdadeiro encontro, na seqüência, falha muitas vezes, porque 'os rituais preliminares que aprisionam os corpos e os encorajam a se tornarem confiantes não aconteceram'.

A vida digital, com seus jogos cada vez mais sofisticados e seus avatares, não é necessariamente uma calamidade, lembra Serge Tisseron. Alguns jovens se cuidam nos espaços virtuais, ao passo que outros se dão cada vez pior. O psiquiatra preconiza jogos de papel desde o maternal: “Quanto mais as crianças são convidadas precocemente a ‘imitar aparentemente’ num contexto que seja garante de seu jogo, menos serão ameaçados pela tentação de imitar ‘a sério’ as imagens que vêem, quer seja como agressores ou como vítimas”. (IHU/Unisinos, 30/01/2008)

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

A REVOLUÇÃO HUMANA

A crescente tensão entre a realidade biológica e a realidade tecnológica resulta na condição inumana. A opinião é de Ollivier Dyens, professor do Departamento de Estudos Franceses da Universidade de Concordia (Montreal), que estuda há mais de quinze anos o impacto das novas tecnologias na sociedade em entrevista ao Le Monde, 27-01-2008.
Dyens é autor do livro La Condition inhumaine (A condição inumana), assunto desta entrevista. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

IHU - O devastador aumento do poder da tecnologia digital vai transformar-nos profundamente?
Há alguns anos eu pensava que a tecnologia iria mudar o ser humano. Hoje, penso que vai mudar a percepção que temos do ser humano. Eu acredito cada vez menos no fantasma cyborg ou no homem-máquina. Mas a visão que temos de nós mesmos vai ter de mudar para se adaptar à realidade tecnológica de amanhã.

IHU - Seu último livro se intitula "A condição inumana". Por que o título?
O termo "inumano" não é usado aqui no sentido de crueldade, mas no sentido do que está para além do homem. Às questões essenciais que o homem se coloca desde o início dos tempos - Quem sou eu? De onde venho? -, a ciência e a tecnologia podem fornecer respostas que, cada vez mais, contrariam o que dizem nossos sentidos e nosso espírito. É essa crescente tensão entre a nossa realidade biológica e a nossa realidade tecnológica que eu qualifico de "condição inumana". Historicamente, consideramos as ferramentas e a linguagem como estruturas que existiam para atender às nossas necessidades. É fundamental repensar esta relação.

IHU - Por que a crescente interdependência destas duas realidades, biológica e tecnológica, nos perturba tanto?
Para explicar este mal-estar, um roboticista japonês criou uma imagem, a do ‘vale do desconhecido’. Tanto que robôs que continuam bem diferentes de nós, não nos perturbam. Mas se eles estão muito próximos caem no ‘vale do desconhecido’. A mão artificial se torna inquietante no momento em que ela se torna uma mão verdadeira, quando a podemos tocar ou fechá-la como se fosse natural. Estamos à volta com a revolução digital que está se tornando cada vez mais "inteligente", cada vez mais "viva"... Isso nos preocupa, porque se assemelha muito a nós.

IHU - A civilização das máquinas nasceu com este milênio?
Lembre-se do 31 de dezembro de 1999 e do famoso medo do bug do milênio. Este receio era real, inclusive entre as maiores empresas de informática do mundo. Naquele dia, a humanidade toda prendeu a respiração à espera do veredicto das máquinas, para saber se chegariam ou não à ‘compreensão’ dos três zeros da nova data. E o que aconteceu? Os softwares, em todo o mundo, conseguiram se adaptar, nenhuma catástrofe aconteceu. A moral da história é que os sistemas informáticos tornaram-se muito complexos para sermos capazes de determinar o que os torna eficazes ou não. Um pouco como a previsão meteorológica que se tornou muito complexa para prever para além de alguns dias.

IHU - Sendo assim, podemos ser esquecidos pelas máquinas que nós mesmos criamos, assustador não?
Para alguns, sim. Mas outros acreditam que este é um processo normal da evolução. Que o importante é a dinâmica da vida, que se encontra no DNA ou no silício. De qualquer forma, a tecnologia já nos obriga a redefinir o nosso lugar na hierarquia mundial. A nos situar não mais no topo da pirâmide, mas numa dinâmica tendo em conta as máquinas como parte integrante da espécie humana.

IHU - E se não chegarmos a isso?
Então corremos o risco de, num futuro mais ou menos próximo, desembocar num mundo polarizado, maniqueísta, violento, no qual a maioria da humanidade encontrar-se-á descolado de um mundo cheio de representações, idéias, teorias e da cultura. Um mundo de frustração e desespero e de uma nova alienação: aquela do conhecimento. Esse risco já está acontecendo: temos uma crescente dificuldade para distinguir claramente a informação de sua síntese – dito de outra maneira, do conhecimento.

IHU - Por quê?
Porque a cultura gerada pelas máquinas nos ultrapassa. Para usar uma imagem marítima: a quantidade de informações disponíveis na Net é um oceano, mas não conhecemos mais a arte de navegar. É cada vez mais claro que permanecemos na superfície desse oceano - "surfar" tornou-se uma questão de sobrevivência. Mas os seres humanos ainda navegam como antigamente tanto o conhecimento nos parece ligado à idéia do aprofundamento. A superfície e o profundo: vamos ter de aprender a conciliar essas duas noções.

IHU - A "condição inumana" terá conseqüências positivas?
Menos guerras, talvez. Quanto mais países estiverem enredados economicamente e culturalmente, menos razões teremos para ver os outros como estranhos, e, portanto, para combatê-lo. As tecnologias digitais e da Web são uma aproximação entre os seres. O e-mail, os chats, os blogs podem nos unir para além da geografia do corpo, da cor da pele. Em nossa história, nunca se gastou tanto tempo para se comunicar, mas também para enriquecer-nos e debater através das redes.

IHU - A internet vai gerar novas formas de inteligência coletiva?
Estou convencido de que sim. Os meios de comunicação oferecidos à humanidade, as redes digitais instantâneas parecem ter um objetivo principal: alimentar ou criar uma coerência global. Um blog adquire a sua legitimidade se for identificado com outros blogs, e o primeiro sítio que surge no Google é aquele que é ‘hyperligado’ pelo maior número de sítios... Essa legitimação por parte da coletividade carrega os seus perigos: ela se defende contra o individual e despreza aquilo que é marginal ou fora dos padrões. Mas também representa um enorme potencial que pode mudar profundamente a nossa relação com o mundo. O humano da condição inumana está bem mais próximo da formiga - que vive, existe e compreende o universo através de sua coletividade – que não é o de um indivíduo autônomo, consciente e singular. (IHU/Unisinos, 29/01/2008)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

A felicidade nos falta

"A felicidade nos falta; a felicidade está perdida. Por quê? Temos de partir do desejo. Não apenas porque o "o desejo é a própria essência do homem" como escrevia Spinoza (Étique, III,def.1 das afeições (trad.fr. appuhn, G. F., 1965, p.196), mas também porque a felicidade é o desejável absoluto, como mostra Aristóteles (Éthique à Nicomaque, I, 1-5(1094-1097 b) e X,6(1176 a 30- 1177 a10), e enfim porque ser feliz é - pelo menos numa primeira aproximação - ter o que desejamos. Encontramos está última idéia em Platão, em Epicuro, em Kant e, no fundo, em cada um de nós. (...) Na medida em que desejamos o que nos falta, é impossível sermos felizes. Por quê? Porque o desejo é falta, e porque a falta é um sofrimento. Como você pode se feliz se lhe falta, precisamente, aquilo que você deseja? No fundo o que é ser feliz? Evoquei a resposta que encontramos em Platão, Epicuro, Kant, em qualquer um: ser feliz é ter o que se deseja. ( COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. Martins Fontes, 2001, Pg.26-27)

A pessoa individualista, mais focada em si,é mais livre?

"O indivíduo focado em si é aparentemente mais livre porque escolheu com valor principal de sua conduta o interesse próprio, mas isso também faz que suas ações sejam motivadas por esse interesse e, portanto, pela tentativa de superar o interesse do outro. Ele não vive uma liberadade completa. Para atender ao interesse próprio, que é o individualismo muito exagerado, ele tem de se preocupar muito em superar os outros. Por isso é que nossa sociedade é de competição. Você só atende seu interesse quando supera alguém. Isso vem desde o vestibular, passa pela faculdade, pela seleção para entrar no emprego etc. É preciso sempre passar por alguém e esse preocupação com os outros, de certo modo, prejudica a sua atonomia. Para poder se realizar é necessário se preocupar muito com os outros, de maneira negativa, não uma preocupação no sentido de ser solidário. A preocupação é um superar e isso é uma coisa que limita a liberdade, mesmo deste indivíduo. Ele não é inteiramente livre porque tem essa preocupação. (FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA. Entre a singularidade e a homogeinização - Entrevista - Revista Ciência & Vida - Filosofia, N.17/2007, pg. 11, Ed. Escala,SP)