segunda-feira, 18 de março de 2024

O que é teologia do domínio. E como ela aparece no Brasil

Por Isadora Rupp

17 de março de 2024(atualizado 18/03/2024 às 18h42)

Teoria é oriunda de movimentos evangélicos dos Estados Unidos. Pesquisadores explicam ao ‘Nexo’ como ela cria desafios à democracia brasileira

 Pessoas andam ao lado de um muro branco, onde está escrito em letras vermelhas a frase "Entrega teu caminho ao senhor". Ao lado, uma bandeira do Brasil verde e amarela.

FOTO: Pilar Olivares /Reuters 27.10.2022 Igreja evangélica Restauração, no Rio de Janeiro

A teologia do domínio, que prega a dominação do mundo pelo cristianismo ultraconservador, tem animado parte do poder político no Brasil e se manifestado em atos públicos. 

Com origem nos movimentos evangélicos dos Estados Unidos das décadas de 1970 e 1980, o conceito, aplicado à política, gera desafios à democracia, segundo pesquisadores ouvidos pelo Nexo

Neste texto, o Nexo explica, com a ajuda de dois teólogos e uma antropóloga, o que é a teologia do domínio, em quais espaços ela está presente no Brasil e como ela afeta o Estado Democrático de Direito. 

Conceito e origem

A teologia do domínio propõe dominar todos os campos da vida social e da esfera pública com a presença e influência do cristianismo ultraconservador. 

Segundo a antropóloga Christina Vital da Cunha, professora da UFF (Universidade Federal Fluminense) e colaboradora do Iser (Instituto de Estudos da Religião), a teologia do domínio tem raízes em interpretações bíblicas. A referência fundamental é o livro Gênesis. 

“Também disse Deus: façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra”

Gênesis (1:28)

trecho do livro

“A característica central dessa teologia advoga a dominação do mundo pelo cristianismo, seus valores e sistemas de crenças. E isso não é novo”, afirmou Cunha ao Nexo.  

O que ocorre de tempos em tempos, de acordo com a antropóloga, é a atualização dessa teologia para atender a necessidades espirituais ou a interesses institucionais e de poder. Isso é algo corriqueiro e presente também em outras formas teológicas. 

Nos Estados Unidos das décadas de 1970 e 1980, houve a ascensão de uma matriz reformada da teologia do domínio, chamada de reconstrucionismo, e uma pentecostal, mais conhecida como batalha espiritual, fundada pelo teólogo americano Charles Peter Wagner. 

Discursos da ex-primeira dama Michelle Bolsonaro, atual presidente do PL Mulher, seguem a linha de Wagner. Na campanha eleitoral de 2022, durante um culto evangélico na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte, Michelle afirmou que a disputa com o PT era uma “guerra do bem contra o mal”. 

FOTO: Ricardo Moraes/ReutersJair Bolsonaro está no palco ao lado de sua esposa Michelle Bolsonaro e recebe bençãos do pastor Marcos Feliciano

A teologia do domínio também se expressa na Doutrina dos Sete Montes, disse ao Nexo o pastor pentecostal e professor Kenner Terra, pastor da Igreja Batista Betânia, do Rio de Janeiro e doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. 

Criada pelos pelos americanos Loren Cunningham e Bill Bright, a premissa da doutrina é que a fé cristã precisa ocupar as sete áreas da sociedade, consideradas as principais: 

  • Governo
  • Educação
  • Religião
  • Família
  • Economia
  • Artes
  • Entretenimento

“Aparentemente, há certa coerência no entendimento de que o cristão precisa influenciar na cultura. O problema é a forma como isso é tratado, principalmente nos espaços da extrema direita cristã e neopentecostais, com uma postura de imposição”, afirmou Terra.  

A presença nas igrejas

Christina Vital da Cunha explica que há diferenças em como as igrejas Anglicana, Presbiteriana e outras identificadas como reformadas ou protestantes vivenciam a teologia do domínio em relação às igrejas pentecostais e neopentecostais. 

Enquanto presbiterianos preferem um projeto de poder silencioso, contínuo e exercido por influência, pentecostais e neopentecostais  preferem o enfrentamento público, a visibilidade e a perseguição ostensiva aos identificados como inimigos. 

31% da população brasileira se declara evangélica, segundo pesquisa Datafolha de 2020

A antropóloga exemplifica essa diferença observando a postura pública e a estratégia de líderes como o ministro do Supremo Tribunal Federal e pastor André Mendonça e o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, que são presbiterianos, e pastores como Silas Malafaia, o bispo Edir Macedo e o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), esses ligados a denominações pentecostais ou neopentecostais.  

“Na prática política é possível que esses atores reúnam forças, mas têm origens sociais e estilos distintos”, disse Cunha.    

Segundo o pastor Kenner Terra, a teologia do domínio não é um discurso potente na maioria das igrejas evangélicas, ou seja, não existe a substituição de outras teologias, como a da prosperidade, por exemplo, pela do domínio, e sim uma intersecção entre elas. 

“As igrejas neopentecostais têm interesse especial na teologia do domínio por causa da lógica de batalha cultural. Nessa lógica, de um lado, há figuras políticas e organizações que querem acabar com os princípios cristão e que estão ocupando espaços de poder. Do outro lado, estão os cristãos para salvar os fiéis, e proteger a moral e a família”, afirmou Terra. 

A Igreja Universal do Reino de Deus, fundada pelo bispo Edir Macedo, a Igreja Internacional da Graça de Deus, do pastor R. R. Soares, e a Igreja Batista Lagoinha, liderada pela família Valadão, são alguns exemplos de igrejas que são marcadas pela teologia do domínio. 

FOTO: Caetano Barreira/Reuters - 02.05.2007Fiéis fazem oração em Igreja evangélica em São Paulo. Pessoas estão de pé, de frente para um palco, com as mãos para cima. Ao fundo, um palco com uma imagem de um céu com nuvens, uma pessoa de branco desfocada com um microfone

Fiéis fazem oração em Igreja evangélica em São Paulo

“Mas não há um bloco de igrejas evangélicas com um projeto que leva em conta a teologia do domínio. A coisa é mais fluida. Há um horizonte em que é entendido que agentes políticos precisam dominar as esferas da sociedade. Não tem como aplicar a teologia de forma tão rápida. Não é um ato orquestrado”, disse Terra.  

Segundo o pastor da Igreja Betânia, a teologia do domínio é diferente de uma teonomia, quando se busca a implantação de um sistema legal com bases no texto bíblico, a exemplo do livro “O conto da aia”, romance de Margaret Atwood que trata de uma teonomia totalitária fundamentalista que derruba o governo dos Estados Unidos. 

“A teologia do domínio não chega a isso. Pode ser que algum radical tenha essa expectativa da Bíblia estar acima da Constituição. Em um Estado Democrático de Direito, isso não é possível. Mas o que há é, sim, uma tentativa de inserir e colocar na mesa de discussões perspectivas cristãs para temas que pertencem à esfera pública”, disse Terra. 

A presença na política

A mistura de política com religião foi defendida por Michelle Bolsonaro em diversas ocasiões públicas ao longo do governo do marido, e mais recentemente em seu discurso no ato em defesa do ex-presidente, no dia 25 de fevereiro. A Constituição de 1988 diz que o Estado brasileiro é laico, separado da Igreja e com liberdade religiosa para todas as crenças e denominações.

“Por um bom tempo fomos negligentes ao ponto de dizer que não poderíamos misturar política com religião. E o mal ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação. Porque eu acredito em um Deus vivo. Um Deus todo poderoso que é capaz de restaurar e curar a nossa nação. Não desistam, mulheres, homens, jovens, crianças. Não desistam do nosso país. Continue orando, continue clamando. Eu sei que o nosso Deus, do alto dos céus, irá nos conceder um socorro”

O historiador João Cezar de Castro Rocha, professor de literatura comparada na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), diz que o ato será enxergado por historiadores no futuro como um momento em que o projeto da teologia do domínio tornou-se explícito. 

“Quando Michelle diz que chegou a hora da libertação, o que ela está dizendo é: chegou a hora do Estado civil subordinar-se à fé, não à espiritualidade, mas à crença deles. Pensando nisso, no nosso país tudo começa a ficar bastante claro e muito preocupante”, afirmou Rocha em entrevista à Agência Pública no domingo (10). 

FOTO: Carla Carniel /Reuters 25.02.2024Michelle e Jair Bolsonaro em ato na avenida Paulista. Os dois estão em cima de um trio elétrico, estão abraçados e sorriem. Ele usa camiseta amarela da seleção brasileira. Ela usa camiseta verde e amarela com a frase "ore pelo Brasil"e um boné branco

Michelle e Jair Bolsonaro em ato na avenida Paulista

Ronilso Pacheco, teólogo pela PUC-Rio e diretor do Iser (Instituto de Estudos da Religião), disse ao Nexo que o ato na Paulista não foi um ápice da teologia do domínio. “Os movimentos de extrema direita e ultraconservador evangélico acontecem há muito tempo e de diversas formas, com um intercâmbio educacional e think tanks que financiam várias missões no Brasil.”

Embora o discurso religioso de Michelle e de outros políticos, como o senador Magno Malta (PL-ES), tenha sido direcionado aos evangélicos, a maioria dos presentes não seguiam a religião, de acordo com estudo do Monitor do Debate Político Digital da USP (Universidade de São Paulo).  

Segundo o levantamento, que entrevistou 575 pessoas, em toda a extensão da manifestação na avenida Paulista, 43% dos presentes declararam ser católicos. 

29% dos participantes do ato pró-Bolsonaro na Paulista eram evangélicos, segundo o Monitor do Debate Político Digital da USP

A maioria dos presentes eram homens (62%), brancos (65%), na faixa etária entre 55 e 65 anos (25%). Um perfil distinto da massa evangélica, que é majoritariamente feminina, preta e periférica. 

De acordo com Christina Vital da Cunha, a manifestação pró-Bolsonaro realizada no final de fevereiro revela um comportamento religioso que não é novo, embora venha se fortalecendo com o crescimento da extrema direita como fenômeno político, e buscava blindar a manifestação. 

“Qualquer tentativa de deslegitimá-la [a manifestação] ou impedi-la seria tomada como intolerante, uma afronta à liberdade religiosa. Ao mesmo tempo, ela tinha o objetivo de conduzir emocionalmente as pessoas como se estivessem todos envolvidos em uma guerra do bem contra o mal, na qual a dominação religiosa da política se justificaria”, afirmou a antropóloga. 

Pacheco afirma ainda que a teologia do domínio esteve presente durante todo o governo Bolsonaro, com a presença em ministérios como o da Educação, da Justiça, Direitos Humanos e Relações Exteriores. 

“Isso é teologia do domínio: conquistar o Ministério da Educação para determinar qual é o conteúdo, os livros. Pautar o que são direitos humanos. Isso é teologia do domínio. Na Paulista, é muito mais uma grande caricatura”, disse o teólogo. 

Os danos à democracia

A antropóloga e os dois teólogos ouvidos pelo Nexo concordam que o uso da teologia do domínio pela política traz riscos e desafios para a democracia brasileira. 

Para o pastor e teólogo Kenner Terra, os ataques antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 são um exemplo concreto da fragilidade da democracia no Brasil, pois fizeram uma “simbiose perigosa” entre o discurso religioso e a implantação de um golpe de Estado. 

“As instituições do Brasil são fortes, e só um golpe religioso poderia destruir nosso Estado Democrático de Direito para que ele vire um Estado religioso. Mas, mesmo que não se chegue nisso, a postura desses agentes religiosos na esfera pública cria uma dificuldade maior para a promoção de direitos coletivos”, afirmou Terra. 

FOTO: Joedson Alves/Agência Brasil - 08.jan.2023Multidão sobe a rampa de acesso ao palácio

Multidão sobe a rampa de acesso ao palácio em 8 de janeiro de 2023

Ronilso Pacheco avalia que a inserção da ideia é um “risco total” à democracia. “A teologia do domínio compõe a ideia do nacionalismo cristão, de que o Brasil deve ser orientado pelos valores cristãos ultraconservadores e fundamentalistas evangélicos. Ela é uma ameaça porque não tolera diversidade. Não é domínio à toa. Por que ela não tolera pluralidade, o diálogo inter-religioso, só os que se subjugam a seu domínio.” 

A antropóloga Christina Vital da Cunha afirma que “não resta dúvidas” de que a teologia do domínio como orientação espiritual animou a cúpula do poder Executivo no governo Bolsonaro e se mantém animando a prática de um conjunto de políticos no Brasil. 

“Mas não é somente essa forma teológica um desafio à democracia, à diversidade, à superação das desigualdades sociais, mas a ganância econômica e de dominação de classe de muitos poderosos, que não são somente religiosos”, disse Cunha.

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/expresso/2024/03/17/teologia-do-dominio-o-que-e?utm_medium=email&utm_campaign=Nexo%20%20Hoje%20-%2020240318&utm_content=Nexo%20%20Hoje%20-%2020240318+CID_eab7f9dca7afc7e5917fc59bfdc41e96&utm_source=Email%20CM&utm_term=O%20que%20%20teologia%20do%20domnio%20E%20como%20ela%20aparece%20no%20Brasil

A felicidade no ambiente de trabalho

 Por Natalia Beauty*

 AdobeStock

Colaboradores felizes não são apenas mais produtivos, mas também mais criativos e motivados

Num mundo empresarial onde a produtividade e a criatividade são moedas de valores incalculáveis, a felicidade dos colaboradores tem se tornado um diferencial competitivo significativo.

Recentemente, um artigo chamou minha atenção, sobre o conceito inovador de um diretor de felicidade (chief happiness officer, ou CHO), cuja missão é cultivar um ambiente de trabalho mais feliz e, consequentemente, mais produtivo. Inspirada por essa abordagem e refletindo sobre a minha trajetória e os valores da minha empresa, percebi o quanto transformador pode ser um CHO para qualquer empresa, inclusive a nossa.

A pesquisa discutida no artigo revelou que, embora a felicidade no trabalho seja um objetivo almejado, muitas vezes se encontra em níveis perigosamente baixos. Empresas como Ikea, Lidl e Adidas estão levando a sério a ideia de investir na felicidade dos colaboradores, compreendendo que colaboradores felizes não são apenas mais produtivos, mas também mais criativos e motivados. Eu sempre acreditei que o bem-estar da equipe é fundamental. Não se trata apenas de oferecer um bom salário ou benefícios tangíveis, mas, sim, de criar uma cultura que valorize cada indivíduo, suas ideias, sonhos e, claro, sua felicidade.

O cargo de CHO, inicialmente visto com ceticismo, tem se mostrado essencial para redefinir as prioridades organizacionais, se afastando das tradicionais métricas de sucesso para abraçar um ambiente de trabalho onde o bem-estar mental e físico dos colaboradores é prioritário. A ideia não é apenas proporcionar momentos de alegria efêmeros, como happy hours ou mesas de pingue-pongue, mas garantir que os colaboradores encontrem propósito, reconhecimento, realização e senso de pertencimento. Esses são os verdadeiros pilares da felicidade no trabalho.

Essa percepção, para mim, não é novidade. Sempre procurei criar um ambiente onde minha equipe se sentisse valorizada e ouvida, onde a criatividade florescesse não apenas como um meio de atingir objetivos empresariais, mas como uma expressão do ser. Contudo, a ideia de formalizar essa abordagem por meio da figura de um CHO é algo que vejo como um divisor de águas. Seria uma forma de garantir que a felicidade e o bem-estar da equipe sejam não apenas priorizados, mas continuamente avaliados e melhorados.

A implementação de "microintervenções" mencionada no artigo, como cursos introdutórios para novos colaboradores ou o envolvimento das equipes na definição de perfis para novas contratações, são estratégias que ressoam profundamente com a minha filosofia. É uma maneira de empoderar cada membro da equipe, garantindo que todos tenham voz ativa na construção da cultura empresarial.

É bom ressaltar que adotar a figura do CHO não substitui ou duplica as funções de um departamento de RH, mas agrega um foco especializado e estratégico no bem-estar dos colaboradores como um todo. Isso envolve desde a criação de programas de desenvolvimento pessoal e profissional até a garantia de um ambiente de trabalho inclusivo e acolhedor.

Eu acredito firmemente que a implementação de um Diretor da Felicidade nas empresas poderia ser um marco na jornada para, não apenas termos empresas de sucesso, mas comunidades onde cada membro se sinta verdadeiramente feliz, valorizado e parte de algo maior. A felicidade no trabalho não é apenas um ideal: é um pilar essencial para a inovação, criatividade e sucesso sustentável.

É hora de abraçarmos essa transformação.

* Multiempreendedora e fundadora do Natalia Beauty Group 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/natalia-beauty/2024/03/a-felicidade-no-ambiente-de-trabalho.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista

A eleição presidencial russa

 Por FRANCISCO FERNANDES LADEIRA*

Imagem: Lara Jameson

A cobertura da eleição na Rússia por parte dos grupos de comunicação no Brasil se caracteriza por abrir mão em fazer jornalismo e apenas replicar os interesses das grandes potências ocidentais

Desde o Repórter Esso, transmitido pela primeira vez no início dos anos 1940, os noticiários internacionais dos maiores grupos de comunicação do Brasil se caracterizam, essencialmente, por replicar os interesses das grandes potências imperialistas, sobretudo dos Estados Unidos.

Assim, ao longo das décadas, temos assistido/lido/ouvido e acessado editoriais, matérias e artigos de opinião que, sem exceção, representam positivamente Washington e aliados. Em contrapartida, qualquer ator geopolítico que contrarie minimamente os ditames imperialistas será sumariamente caluniado ou, não raro, alvo de fake news. Não há espaço para o contraditório. Trata-se da prática jornalística conhecida como double standard. Em bom português: dois pesos, duas medidas.

Este exemplo de (mau) jornalismo pôde ser constatado na repercussão midiática da eleição presidencial russa, finalizada neste domingo (17 de março), com o atual mandatário do país, Vladimir Putin, eleito para seu quinto mandato, com ampla maioria dos votos.

Independentemente das contradições de Vladimir Putin, que está muito distante de ser um político progressista, é preciso entender sua representação midiática não a partir de sua personalidade controversa, mas de sua posição no xadrez geopolítico global.

Com Vladimir Putin no poder, a Rússia alcançou o posto de potência global, capaz de fazer frente ao domínio do (decadente) Ocidente, haja vista, por exemplo, a incapacidade apresentada pelas potências imperialistas para armar o exército ucraniano na guerra por procuração contra Moscou. Não por acaso, em sua primeira aparição pública após vencer a eleição, Vladimir Putin agradeceu aos eleitores e disse que seu país não será “intimidado” nem “suprimido”.

Portanto, usando um termo que está na moda entre o jornalismo conservador, podemos dizer que o presidente russo é persona non grata nos noticiários internacionais.

De acordo com os grandes veículos de imprensa, a avassaladora vitória de Putin (quase 90% dos votos) ocorreu porque todos os concorrentes na eleição presidencial eram aliados do Kremlin e, por outro lado, os potenciais concorrentes da oposição estão presos, mortos ou foram impedidos de se candidatar.

No entanto, essa mesma mídia, “fiscal de democracia na Rússia”, no melhor estilo double standard, participou ativamente da farsa que levou Lula à prisão, para que o petista não fosse candidato (e possivelmente eleito) para a presidência da República em 2018. O resultado, como tragicamente sabemos, foram quatro anos de desgoverno de Jair Bolsonaro.

Já os potencias adversários de Vladimir Putin, mencionados nos GloboNews Internacional da vida, só são populares nos noticiários da imprensa ocidental. Na realidade concreta, não possuem a mínima capacidade de mobilização das massas.

Também foi bastante destacado nos noticiários que Vladimir Putin, caso cumpra todo o seu novo mandato, será “o líder da Rússia mais longevo desde Stalin”, com três décadas no poder. Desse modo, no jornalismo de adjetivação da imprensa, ele é rotulado como “autocrata”.

Por outro lado, nos discursos da mídia hegemônica, Angela Merkel, Chanceler da Alemanha entre 2005 e 2021, sempre foi representada positivamente, seja como “grande democrata”, “líder prática” ou “conciliadora”; jamais foi chamada de “ditadora”.

Além do mais, desde 1852, todos os presidentes da midiaticamente intitulada “maior democracia do planeta”, os Estados Unidos da América, são de apenas dois partidos, praticamente com os mesmos ideais, em defesa dos interesses orgânicos do grande capital. Ou seja, “alternância de poder” passou longe. Porém, nunca vamos ouvir/ler/assistir nos noticiários internacionais alguma menção à “ditadura americana”.

Por falar nisso, a mesma imprensa que denuncia a perseguição do “regime do Kremlin” a opositores e vozes críticas, se cala quando o assunto é a perseguição do governo estadunidense a Edward Snowden e Julian Assange, entre outros indivíduos que expuseram ao mundo alguns dos podres de Washington. Sobre essa questão, em 2013, articulistas do programa Manhattan Connection, então na GloboNews, chegaram a afirmar que a presidenta Dilma Rousseff estaria “fazendo um alarde desnecessário” ao criticar a prática de espionagem de suas conversas feita pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos. Haja viralatismo!

Como não poderia deixar de ser, alguns articulistas levantaram a clássica acusação de fraude na eleição presidencial russa. Nesse sentido, lembrando Arnaldo Cezar Coelho, nos manuais de redação da grande imprensa, a regra é clara: eleito um candidato favorável ao imperialismo, pleito democrático; vencedor um de nossos adversários; processo eleitoral fraudulento.

Evidentemente, o simples fato de se opor a dominação imperialista não significa que devemos negligenciar as idiossincrasias de Vladimir Putin, a influência ideológica em seu governo de figuras como Alexandr Dugin ou apresentar a Rússia como a nova União Soviética. Se agíssemos assim, estaríamos apenas invertendo o maniqueísmo midiático. Algumas das críticas feitas à Rússia nos discursos geopolíticos da mídia seriam até interessantes, se a mesma régua fosse aplicada a Estados Unidos e companhia. Como sabemos, não é o caso.

Enfim, não há muito o que se esperar de veículos de comunicação que apoiam genocídios, flertam com o fascismo quando necessário e, em nome da subserviência ao imperialismo, contribuem para sabotar o desenvolvimento de seu próprio país.

*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em geografia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de A ideologia dos noticiários internacionais (CRV). [https://amzn.to/49F468W]

Fonte:  https://aterraeredonda.com.br/a-eleicao-presidencial-russa/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2024-03-18

A ilha que quer viver para sempre

Ronaldo Lemos*

 Ilha está se tornando ímã para pesquisadores globais que querem acelerar projetos de longevidade.
 Ilha está se tornando ímã para pesquisadores globais que querem acelerar projetos de longevidade. - Vitalia/Divulgação

Vitalia tem uma missão: usar todos os recursos possíveis para prolongar a vida humana


Na ilha de Roatán, na costa de Honduras, há um experimento peculiar. Lá fica a sede da comunidade chamada Vitalia, formada por pessoas do mundo todo. O objetivo que une a todos é um só: viver para sempre. Seu slogan, estampado em camisetas e murais, não poderia ser mais claro: "Morrer é opcional".

Vitalia conseguiu reunir em torno de si vários dos nomes relevantes na pesquisa sobre longevidade. Sua comunidade tem uma missão: usar todos os recursos possíveis para prolongar a vida humana. Já recebeu a visita do cientista inglês Aubrey de Grey, um dos pioneiros nesse tema. E dentre seus residentes há hoje pesquisadores de várias áreas, que colaboram entre si articulando da engenharia genética às medicinas integrativas.

A ideia é produzir avanços em longevidade que possam se tornar viáveis em pouco tempo. Não por acaso há uma movimentação de fundos de investimento em torno dos participantes do projeto.

Vim parar nessa ilha hondurenha para gravar a oitava temporada do programa Expresso Futuro, que apresento no Canal Futura (a estreia será em maio). Estou neste momento vivendo entre os residentes de Vitalia e descobrindo que o projeto é mais complexo do que aparenta.

Além da locação paradisíaca, Vitalia foi criada em cima de uma zona econômica especial de Honduras chamada Próspera. Em 2013, a Constituição do país foi modificada para autorizar a criação de áreas sujeitas a regimes especiais, com autonomia administrativa e legal. Essas áreas, chamadas ZEDEs, podem adotar leis próprias e constituir seu próprio poder judiciário. Devem, no entanto, respeitar as leis criminais e de imigração de Honduras.

Foi nessa zona especial que Vitalia se instalou. A premissa é que a pesquisa em biotecnologia tornou-se excessivamente restritiva hoje. Isso ignora a tecnologia atual que permite um modelo de ciência open source (código aberto), descentralizada, que usa dados e conta com equipamentos e recursos de fácil acesso.

A primeira vez que escrevi sobre isso na Folha foi em 2010, no artigo "Saúde com as próprias mãos". Na época afirmei que essas práticas "popularizam o método científico e abrem caminho para que hipóteses sejam testadas fora dos meios tradicionais".

Vitalia é uma concretização disso. A zona econômica em que o projeto se desenvolve não possui uma legislação restritiva sobre pesquisas biotecnológicas. Com isso o lugar está se tornando um ímã para pesquisadores globais sedentos por acelerar seus projetos de longevidade. Mas não é só de tecnologia que o projeto acontece.

A comunidade que se formou segue os preceitos de uma vida saudável. A comida é feita de alimentos que promovem a longevidade. A prática de atividades físicas é comum. Também é comum dormir quando o sol se põe e acordar quando o sol se levanta, respeitando o ciclo circadiano.

Apesar de haver resistências políticas locais, Honduras pode se juntar ao clube dos lugares em que zonas econômicas especiais têm demonstrado resultados positivos, como na Ásia e no Oriente Médio. É uma agenda positiva para esse país de história milenar.

Já era – inteligência só orgânica

Já é – usar o termo Inteligência Artificial Geral (AGI)

Já vem – preferir o uso do termo AMI (Inteligência Avançada de Máquina), menos fantasioso

* Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. 

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ronaldolemos/2024/03/a-ilha-que-quer-viver-para-sempre.shtml

domingo, 17 de março de 2024

Desvendando a identidade rarefeita de Roberto Bolaño; conheça o escritor chileno e sua obra

Por Paulo Nogueira 

O escritor Roberto Bolãno, morto em 2003.  

O escritor Roberto Bolãno, morto em 2003. Foto: Anna Oswaldo-Cruz Lehner / Divulgação

 

Autor do monumental ‘2666′, e que morreu precocemente na fila por um transplante de fígado, tem o último livro que ele planejou publicar, ‘O Gaúcho Insofrível’, lançado agora no Brasil


O Gaúcho Insofrível, reunindo cinco ficções e duas conferências, é o último livro que o Roberto Bolaño (1953-2003) deixou para ser publicado. O escritor se preparava para um transplante de fígado e acreditava que este livro, quando lançado, poderia ajudá-lo financeiramente durante sua recuperação. Os textos foram entregues num disquete à sua editora, mas naquela mesma madrugada de 2003 ele foi internado. Duas semanas depois, morreu.

Hoje, pouco mais de 20 anos após a sua morte, é uma boa oportunidade para se avaliar o pedigree do autor no cânone – seja chileno, hispânico ou mesmo universal.

A vida de Bolaño é o material de que as lendas literárias são feitas. Nasceu em Santiago, filho de um caminhoneiro (pugilista nas horas vagas) e uma professora: músculos + miolos. Puxou só à mãe: magrelo, disléxico, vítima pioneira do que então ainda não se chamava bullying, um ET em qualquer parte do cosmos.

Estava no Chile quando Pinochet deu o golpe em 1973, foi detido e sobreviveu por um triz (como relata no conto Cartão de Dança). Na Cidade do México, viveu com os pais imigrantes e ainda quase imberbe pertenceu a uma confraria literária tão impertinente que interrompia as leituras públicas de Octávio Paz (Nobel de Literatura em 1990) .

Aos 24 anos, Bolaño se manda para a Europa, residindo na cidadezinha catalã de Blanes. Foi pau para toda obra (incluindo romances, contos e poemas): lavador de pratos, lixeiro, vendedor de bijuterias, empregado de um camping. O nascimento do filho tornou-o “responsável”: “O meu único país é a minha família”. Morreu em 2003, aos 50 anos, na fila para um transplante hepático num hospital de Barcelona (o fígado dele estava pior que o de Prometeu).

Ralando a maior parte da carreira numa obscuridade quase de eclipse, ganhando concursos provincianos de conto e poesia, o próprio Bolaño deve ter ficado embasbacado ao despontar como o primeiro grande fenômeno literário do século 21.

Nos últimos sete anos de vida, não só granjeou aclamação mundial como atingiu vendas de best-sellers plastificados, e não de gemas vanguardistas. Converteu em apóstolos missionários escritores badalados de vários países: Cecilia Manzoni (Argentina), Ignacio Echevarría (Chile), Jorge Volpi (México) e Enrique Vila Matas (Espanha), entre outros.

E deixou um robusto conjunto de títulos inéditos (mais de 14 mil páginas), quase como a mítica arca de Fernando Pessoa. Como ele confessou: “Passei direto de reserva na Segunda Divisão para titular na Champions League”.

Chile: país de poetas?

Será o Chile sobretudo um país de poetas, como alega Alejandro Zambra, cujo romance mais recente se intitula O Poeta Chileno? Afinal, Vicente Huidobro e Pablo Neruda (hoje em foco por eventualmente ter sido assassinado por Pinochet e por ser cancelado como porco-chauvinista) foram candidatos à presidência do Chile.

E Gabriela Mistral foi o primeiro autor latino-americano a receber o Nobel de Literatura – e até hoje a única mulher da região a realizar tal proeza. Mas também é relevante a dimensão lírica de Bolaño, como reconheceu outro grande poeta chileno, Nicanor Parra, ao saber da morte do seu par: “A humanidade ficou devendo um fígado a Bolaño”.

Talvez a identidade rarefeita de Bolaño seja mais latino-americana, ou mesmo hispânica, do que nacional. Descrevia-se não como um expatriado como Cortázar ou Vargas Llosa, porém como um “apátrida”. Em suas obras pulsam dois polos: a metanarrativa (que faz das engrenagens literárias seu assunto) e a autoficção. Com ambos abordou quer a interação do ficcionista com os meios acadêmicos e editoriais, quer as promíscuas relações entre o intelectual e o poder.Capa de 'A Literatura Nazista Na América', de Roberto Bolaño, lançado no Brasil em 2019.

Capa de 'A Literatura Nazista Na América', de Roberto Bolaño, lançado no Brasil em 2019. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

No primeiro caso avulta A Literatura Nazista na América, paródia das enciclopédias que tanto encantavam Borges. Nela, Bolaño conjuga fantasia e história latino-americana. Como a inefável poeta argentina Luz Mendiluce, que Hitler pegou no colo quando ela era criança. Momento registrado numa foto, que a poeta evocou no poema Com Hitler Fui Feliz (“sua respiração cálida e seus braços fortes”).

No âmbito autoficcional aflora o alter-ego Arturo Belano, que povoa (como o Nick Adams de Hemingway ou o Nathan Zucker de Philip Roh) vários títulos de Bolaño, inclusive o romance Detetives Selvagens, definido pelo autor como “uma carta de despedida à minha geração”. A saga de uma trupe punk-surrealista de poetas imbuídos do espírito de Rimbaud (daí Artur, e a viagem suicida de Belano à África).

O inacabado e gorgolejante 2666 (1.030 páginas, projetado como cinco romances diferentes), editado um ano depois de morte de Bolaño, também combina autoficção e metalinguagem. Esta última aplicando a verve sardônica como vacina contra o cabotinismo, como na passagem sob lapsos hilários de escritores, como o do francês Alphonse Daudet: “O duque apareceu seguido do seu séquito, que ia à frente”.Capa de '2666', de Roberto Bolaño. Lançado um ano após a morte do autor, o livro venceu o National Book Critics Circle Award nos Estados Unidos e foi eleito o livro do ano pela Time Magazine.

Capa de '2666', de Roberto Bolaño. Lançado um ano após a morte do autor, o livro venceu o National Book Critics Circle Award nos Estados Unidos e foi eleito o livro do ano pela Time Magazine. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

E no esfíngico protagonista, o escritor alemão Benno von Archimboldi, um personagem/autor em busca dos seus quatro autores/críticos – e que ao longo de 792 das 1.300 páginas ninguém nunca viu mais gordo, seja em carne e osso, seja em fotografias, entrevistas ou biografias, quase como um Thomas Pynchon europeu e ainda mais espectral. Ou seja, durante 70% da extensão do romance, o autor é apenas a sua obra.

Viúva moveu ações judiciais

Em 2008, a viúva de Bolaño, Carolina López, espantou o establishment literário de Barcelona ao transferir o patrimônio do marido da agência mais famosa em língua espanhola, a de Carmen Balcells, para a do titã global Andrew Wylie. Depois, López rompeu com a editora de Bolaño, a Anagrama. E se desentendeu com o amigo íntimo do marido, o crítico Ignacio Echevarría, que conduziu o manuscrito de 2666 à publicação.


Para alguns, a viúva assumiu um aspecto camaleônico: ora uma espécie de Maria Kodama, ora uma Yoko Ono. Carolina manteve o arquivo de Bolaño fechado e restringiu os direitos de citação de material não publicado. Justificou-se: “Esse legado não é só uma questão literária, mas um doloroso assunto de família.”

A viúva moveu ações judiciais por “violação da intimidade e da honra” aos que afirmaram que Bolaño era viciado em heroína e que mentira sobre sua presença no Chile durante o golpe de Pinochet. Um dos processados é Echevarría (as ações ainda estão tramitando no moroso sistema judiciário espanhol). Tais vicissitudes ajudam a explicar por que ainda não há - contrastando com miríades de exegeses literárias - uma biografia referencial de Roberto Bolaño.

Após o fulgor do “boom Bolaño” (especialmente com a publicação póstuma de 2666 em inglês, em 2008), nos últimos anos a visibilidade do autor cult esmoreceu um tanto – como costuma acontecer com os caprichos das modas mais mercadológicas que literárias. Certos críticos já têm o topete de resmungar que Bolaño foi superestimado.

A cornucópia de obras dele editadas depois da sua morte pode ter provocado uma saturação nos entusiastas – e confundido os leitores que chegam agora o universo literário interconectado de Bolaño, e, com tantos meandros labirínticos, não sabem bem por onde começar. Mesmo assim, seus livros continuam vendendo em 35 idiomas.

O Gaúcho Insofrido

O providencial O Gaúcho Insofrido ajuda a pôr os pingos nos is e contém uma obra-prima, precisamente o conto epônimo. O protagonista é Hector Pereda, um advogado argentino que, no ocaso solitário e amargurado da vida, se muda de Buenos Aires para o pampa.

A figura do gaúcho (ou “pampero”), ente etnográfico e tropo literário que fascinou Borges (que o entronizou como o relicário da alma portenha no conto O Sul), confirma a amplitude continental do chileno Bolaño.

E suas texturas metanarrativas: Pereda menciona explicitamente o personagem do conto icônico de Borges (“Por um instante pensou que seu destino, seu fodido destino americano, seria semelhante ao de Dalhmann”). E batiza seu cavalo de José Bianco, escritor argentino que durante 20 anos foi secretário da influente revista Sur.

'O Gaúcho Insofrível', de Roberto Bolãno. Capa por Raul Loureiro.
'O Gaúcho Insofrível', de Roberto Bolãno. Capa por Raul Loureiro. Foto: Companhia das Letras/Divulgação.

Porém, o pampa hodierno de Bolaño, ao contrário do homérico de Borges, já não tem cavalos nem sequer vacas, embora esteja infestados de coelhos – um símbolo da praga incontinente. E a fazenda que Pereda tenta resgatar da ruína – chamada Álamo Negro, versão lúgubre do Álamo texano, da expansionista gesta norte-americana – se transfigura na metáfora da Argentina eternamente em crise (“Uma casa sem centro, uma árvore enorme e ameaçadora e um celeiro onde se moviam sombras que talvez fossem ratos”) e até da América Latina, com suas quimeras obsoletas e seus autoritarismos espasmódicos.

No fundo, como o próprio Borges formulara em seu poema Os Gaúchos: “Viveram seu destino como em sonhos/Sem saber quem eram nem o que eram./Talvez o mesmo se passe conosco”.

Se na idolatria a Bolaño reinou talvez certo modismo e necrofilia, 20 anos depois da sua morte podemos avaliá-lo sem romantismos mórbidos nem a auréola de “mártir da literatura” – uma platitude kitsch que ele seria o primeiro a ridicularizar.

Quanto a continuar confiando o veredito à posteridade, pode parecer uma decisão sensata – mas Bolaño perguntaria o que é que a posteridade já fez por nós.

O melhor é lê-lo, o tributo a que os grandes autores anseiam. Mesmo que começando pelo fim, pelo Gaúcho Insofrível, que refuta a sofrência idílica que alguns quiseram impingir ao autor.

O Gaúcho Insofrível

  • Autor: Roberto Bolaño
  • Tradução: Joca Reiners Terron
  • Editora: Companhia das Letras (152 págs.; R$ 69,90/ R$ 37,90 o e-book) 
  • Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/literatura/desvendando-a-identidade-rarefeita-de-roberto-bolano-conheca-o-escritor-chileno-e-sua-obra/

sábado, 16 de março de 2024

Inteligência Artificial: O objeto e os riscos

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Transumanismo, Miguel Panão, Inteligência artificial  

 Imagem gerada no DALL-E (programa de inteligência artificial que cria imagens a partir de descrições textuais) com prompt de Miguel Panão.


A Inteligência Artificial (IA) é uma das questões fundamentais do nosso tempo e porventura aquela que mais implicações, positivas ou negativas, terá no nosso futuro. Na última semana, o Parlamento Europeu aprovou o primeiro regulamento sobre a matéria. Como tudo o que é desconhecido no sentido de escapar ao nosso controlo e racionalidade, a IA é tema controverso e assusta-nos. Este é o segundo de três textos (aqui pode ler-se o primeiro) sobre as implicações da Inteligência Artificial nos Direitos Humanos da autoria de Manuel David Masseno, professor adjunto e investigador sénior do Laboratório UbiNET – Segurança Informática e Cibercrime do Instituto Politécnico de Beja. Estes textos constituem uma pré-publicação autorizada do verbete “Inteligência Artificial” destinado ao Dicionário Global dos Direitos Humanos, uma componente nuclear do projeto “Dignipédia Global – Sistematizar, Aprofundar e Defender Direitos Humanos em Contexto de Globalização“. Os restantes textos serão publicados nos dois próximos dias. 

Nos últimos anos, a Inteligência Artificial (IA) tem vindo a ocupar uma importância crescente nas preocupações de todos enquanto ameaça não apenas para os Direitos Humanos, como até para a própria sobrevivência da Humanidade, a par da aceleração das alterações climáticas e da proliferação nuclear descontrolada. Neste exato sentido, são de salientar as reiteradas intervenções do Secretário-Geral das Nações Unidas e do Papa Francisco.

Esta situação resulta dos desenvolvimentos desregulados da própria tecnologia, com a transição de sistemas informáticos determinados por programadores, desde a IA simbólica e a aprendizagem automática, sempre com finalidades específicas e consequências suscetíveis de predeterminação, para a aprendizagem profunda, com aptidões múltiplas. Atualmente, a aproximação à IA geral, em especial por meio dos grandes modelos de linguagem, o modo como os sistemas processam os dados e a determinação das finalidades, tendem a escapar ao controle humano, exigindo precauções adicionais quanto à inserção de salvaguardas eficazes.

Aliás, esta transição é patente nas Definições de IA adotadas pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE), as quais constituem “a referência” neste domínio. Assim, se na de maio de 2019 “Um sistema de IA é um sistema baseado em máquina que pode, para um determinado conjunto de objetivos definidos pelo homem, fazer previsões, recomendações ou decisões que influenciam ambientes reais ou virtuais”, na de novembro de 2023 já temos que “Um sistema de IA é um sistema baseado em máquina que, para objetivos explícitos ou implícitos, infere, a partir das informações que recebe, como gerar resultados como previsões, conteúdos, recomendações ou decisões que podem influenciar ambientes físicos ou virtuais. Diferentes sistemas de IA variam nos seus níveis de autonomia e adaptabilidade após a implantação.”.

Em extrema síntese, na atual Definição, os objetivos passaram a poder estar apenas “implícitos”, os resultados resultarão também de “inferências” a partir dos dados acedidos e os “conteúdos” passaram a ter lugar entre os resultados, em consequência do auge da AI generativa. Adicionalmente, foi colocada uma ênfase especial na adaptabilidade aos ambientes físicos, muito para lá do Ciberespaço, assim como na maior autonomia potencial perante os criadores, os quais podem ser outros sistemas de IA e não apenas seres humanos.

Concretamente, se nos colocarmos na perspetiva da Carta das Nações Unidas, temos que a IA é suscetível de ameaçar os Valores ínsitos no Preâmbulo, por permitir interferências “nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas”, também por organizações privadas transnacionais, fora do controle efetivo dos Estados. O que coloca em questão os objetivos de “promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de um conceito mais amplo de liberdade”, inclusive pela manipulação das pessoas, enquanto consumidores e cidadãos, e mesmo o de “garantir, pela aceitação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será usada”, por passarem a ser dispensáveis decisões humanas, pondo em causa a Paz enquanto objetivo último da Carta.

O que tem implicações diretas para a efetividade da Declaração Universal dos Direitos Humanos, designadamente ao potenciar a Discriminação através da definição de perfis, pondo em causa a identidade e a igualdade, incluindo a identidade de género e orientação sexual; ao permitir o controle dos comportamentos humanos, incluindo a vigilância e a avaliação automatizadas e preditivas, ao ponto de esvaziar o direito à privacidade e a liberdade em geral, incluindo a de expressão; além de potenciar a manipulação das pessoas mais vulneráveis, como as crianças, as mulheres, as pessoas com deficiência e os refugiados, condicionando o seu direito de asilo, por ser suscetível de reforçar o racismo e a xenofobia; sem esquecer as implicações para a Democracia e o direito à informação resultantes da produção e distribuição especificamente direcionada de informações falsas, ainda que crescentemente verosímeis. Além de sucessivos estudos apontarem para uma crise iminente do direito ao trabalho, por força da substituição massiva dos seres humanos por sistemas de IA, em especial nas profissões envolvendo o tratamento e a produção de informação. Porém, o risco mais sério estará na coisificação do ser humano, com decisões definitivas afetando os Direitos Fundamentais a serem tomadas por máquinas, pondo em causa a Dignidade Humana.

Inteligência artificial. IA

Foto © Gerd Altmann / Pixabay

Manuel David Masseno é professor adjunto e investigador sénior do Laboratório UbiNET – Segurança Informática e Cibercrime do Instituto Politécnico de Beja, assim como investigador colaborador do Centro de Estudos Globais da Universidade Aberta (CEG–Uab); este texto constitui uma pré-publicação autorizada do verbete “Inteligência Artificial” destinado ao Dicionário Global dos Direitos Humanos, uma componente nuclear do projeto “Dignipédia Global – Sistematizar, Aprofundar e Defender Direitos Humanos em Contexto de Globalização“.

Fonte: https://setemargens.com/inteligencia-artificial-o-objeto-e-os-riscos/?utm_term=FEEDBLOCK%3Ahttps%3A%2F%2Fsetemargens.com%2Fefeed%3Degoi_rssfeed_xKnmS3HTbxoNOuINFEEDITEMS%3Acount%3D1FEEDITEM%3ATITLEENDFEEDITEMSENDFEEDBLOCK&utm_campaign=Sete%2BMargens&utm_source=e-goi&utm_medium=email

Ética: E os militares? A pergunta que não podemos calar

 POR    João Rafael Gualberto de Souza Morais*

08.01.23.golpe

Manifestantes na tentativa de golpe do dia 8 de janeiro de 2023 (Joedson Alves/Agência )


14 de março de 2024


Investigações da Polícia Federal revelam uma trama golpista no governo Bolsonaro envolvendo diversos militares e chamam a atenção para o mais persistente problema da história política brasileira: o intervencionismo das Forças Armadas.

À luz dos fatos descobertos, é razoável afirmar que estivemos bem perto de um golpe. A situação é preocupante, independente da recusa do então comandante do Exército, general Freire Gomes, em mobilizar as tropas para as intenções golpistas. Afinal, a essa altura, é difícil saber se a negativa foi categórica ou contingente pela impossibilidade de o golpe ser bem-sucedido, dado o contexto internacional desfavorável. E a indagação que fica é: e se o contexto fosse outro, talvez o de um governo de Donald Trump?

A angústia dessa indagação nos leva a uma indispensável pergunta: o que fazer com os militares – não os diretamente envolvidos com a trama, que devem ser processados na , mas em sentido amplo, com a instituição, que segue tão permeável a influxos antidemocráticos? A pergunta cabe, sobretudo, porque não estamos diante de um fato isolado, mas de mais um capítulo de uma conhecida e interminável novela: o protagonismo político dos militares.

Responder a essa pergunta demanda profundo debate sobre a história e o papel das Forças Armadas, cujo primeiro passo é o entendimento da arquitetura institucional entre civis e militares, central ao monopólio legítimo da estatal e desafiadora para qualquer sociedade, já que é razoável supor que entregar as armas a alguém e exigir dele obediência não é algo simples. Por isso, em sentido histórico, toda relação civil-militar é potencialmente problemática e a sociedade que desconhece os seus soldados se sujeita aos maiores riscos.

O PROBLEMA DA RELAÇÃO ENTRE CIVIS E MILITARES

Em seus primórdios, o poder político se caracteriza pela dominação pessoal direta e a figura do mandatário representa uma síntese entre as esferas política e militar. Foi o desenvolvimento da instituição armada profissional[1] e da burocracia civil que levou à separação entre as duas esferas, passando os soldados a ocuparem um espaço à parte da política, porém atavicamente ligados ao Estado, uma vez que são os responsáveis pela sua sobrevivência.

Essa responsabilidade consiste na missão precípua das Forças Armadas: a defesa do território e de seus habitantes por meio de uma preparação específica, mediante o uso de equipamentos exclusivos, para dissuadir ou enfrentar agressores externos em preservação da soberania nacional. Por ser uma atividade “essencial à sobrevivência de uma nação, e pelo poder que lhe conferem as armas, o tema das Forças Armadas não pode, portanto, desligar-se dos mecanismos de controle político sobre as instituições castrenses” (Saint-Pierre & Vitelli, 2018).

Isso posto, devemos considerar a importância do estudo da instituição militar:

“O militar, tendo ou não a exata dimensão de seu papel, interfere direta e indiretamente, de forma explícita ou encoberta, nas relações sociais, na e na cultura. O militar está presente na modelagem de instituições, na configuração e na dinâmica do poder político; é decisivo na delimitação de fronteiras territoriais e, em boa dose, responsável pelo desenho do cenário internacional. Ao longo da história, o militar formula pioneiramente variadas proposições importantes para a sociedade, nem sempre se dando conta disso; engaja-se na construção de seu país antes do surgimento do Estado nacional; antecede e alimenta a ficção literária produzida para a exaltação das nacionalidades.” (Domingos Neto, 2005, p.1)

É justo, portanto, afirmar que a história da instituição militar se confunde com a do Estado. E o problema central à relação civil-militar se resume no velho provérbio romano who watches the watchers [Quem vigia os vigias?] ou who guards the guardians [Quem guarda os guardiões?]. Nas palavras de Bruneau e Matei (2013, p.30), “qualquer força armada forte o suficiente para defender um país também é forte o suficiente para conquistá-lo”. A posse exclusiva das armas de guerra coloca os militares em posição de grande barganha política e impõe desafios complexos às instituições com relação ao seu controle.

A busca por esse controle, o “controle civil”, um dos mantras mais conhecidos entre os cientistas políticos, é imprescindível. Enquanto instrumento do Estado, as Forças Armadas precisam estar sujeitas ao comando político, responsável pela definição de uma estratégia de acordo com o interesse nacional. Não obstante, a percepção de que assuntos relacionados à Defesa e à estratégia são de âmbito exclusivo dos militares é comum no Brasil, onde as Forças Armadas se veem em posição de avaliar e determinar as necessidades nacionais no contexto mais elevado da política estatal. Isso se deve a condicionamentos políticos, sociais e históricos diversos, dentre os quais destaco três: fragilidade das instituições democráticas (quando existem), sintomático de uma cultura política autoritária; carência de uma elite civil dotada de consensos mínimos para um projeto nacional soberano; e ausência de ameaças externas capazes de mobilizar a sociedade para as questões de Defesa, o que invariavelmente resulta em uma liderança política inapta para lidar com esses temas. Disso resulta um amplo domínio militar sobre eles, uma vez que os militares são os operadores exclusivos do aparelho de Defesa.

No entanto, o papel das Forças Armadas deve ser o de instrumentos do Estado, executores das decisões políticas com o menor custo possível para a sociedade. As Forças Armadas são o ativo da Defesa, não o contrário. Então, a primeira questão que se coloca acerca do problema do controle civil é: como obter lealdade daqueles que detêm a força?

Em apreciação superficial, a relação civil-militar pode ser entendida na alegoria proposta por Adam Przeworski. Nela, um tanque de guerra e um fusca se encontram em um cruzamento. O tanque, muito mais poderoso que o fusca, tem tudo para passar por cima dele, caso seja desafiado. Para o fusca, por outro lado, não há escolha: refém de sua condição inferior, precisa ceder passagem ao tanque, sob pena de ser destruído.

Apesar do sentido didático da alegoria, e de sua verdade de fundo, ela é pobre ao reduzir o problema à correlação material de forças. Ora, fosse assim, não haveria propósito em discutir o controle civil, que seria inalcançável em qualquer medida. A relação civil-militar não repousa apenas na força bruta, mas em um jogo de poder em que os dois lados interagem em busca de ganhos relativos e condicionados a variáveis dependentes de contextos históricos, políticos e sociais que se alteram ao longo do tempo. Logo, essa relação não pode ser concebida de forma cristalizada, como na alegoria, até porque ambos estão sujeitos a influências e dissidências internas capazes de alterar a correlação de forças. Assim, por exemplo, um militar democrata pode aderir a um golpe se considerar que as chances de sucesso são altas, e, da mesma forma, um militar golpista pode agir dentro das regras democráticas se entender que as chances de sucesso de uma intervenção pela força são baixas. As duas arenas (civil e militar) não constituem blocos monolíticos e a própria relação as molda e transforma.

Isso nos remete à outra questão: são as Forças Armadas um ator político autônomo ou um instrumento de facções políticas?

Edmundo Campos Coelho, em sua obra clássica sobre o Exército brasileiro, enfatizou o aspecto organizacional para explicar as motivações para a intervenção. Segundo ele, por muito tempo predominou na literatura especializada a concepção instrumental, segundo a qual a intervenção se explicaria pela “sedução” que exercem sobre o militar as facções políticas. Ou seja, a razão das intervenções seria externa à organização militar.

Rompendo com a citada tradição, o autor toma a organização militar como objeto em si, e, nesse sentido, se destacam as diferenças entre civis e militares. Sobre isso, Carvalho (2005, p.13) observa que “a sociologia tem mostrado exaustivamente […] que organizações possuem características e vida próprias que não podem ser reduzidas a meros reflexos de influências externas. Isso vale particularmente para as organizações militares […]”.

Daí, chegamos a Finner (2002), para quem a cultura política democrática e o intervencionismo das Forças Armadas são vetores inversamente proporcionais, porque a primeira seria um requisito para a institucionalização do controle civil. No caso brasileiro, a distância entre Estado e sociedade civil resulta em baixa participação popular, levando a disputas privadas pelo poder que estruturam um sistema oligárquico no qual os militares sofrem constrangimentos circunstanciais, em vez de institucionais. É esse o contexto em que surge a “política do Exército”.

A “POLÍTICA DO EXÉRCITO”

O elemento ideológico primário para a compreensão do papel político da instituição militar é o Positivismo e sua adesão entre os militares brasileiros, que passam a considerar as Forças Armadas como modelos organizacionais para a nação. A partir da década de 1930, esse papel rapidamente foi se desenhando em uma doutrina, segundo a qual o Exército seria “um órgão essencialmente político; e a ele interessa, fundamentalmente, sob todos os aspectos, a política verdadeiramente nacional (…). Sendo o Exército um instrumento essencialmente político, a consciência coletiva deve-se criar no sentido de se fazer a política do Exército, e não a política no Exército” (General Góes Monteiro, apud Coelho, 1976, p.103-104).

Assim, seriam os modelos organizacionais militares os mais adequados à nação, por serem eles capazes de eliminar a indisciplina social.

“Só à sombra deles é que, segundo nossa capacidade de organização, poderão organizar-se as demais forças da nacionalidade. O Exército e a Marinha são, por conseguinte, os responsáveis máximos pela segurança interna e externa da Nação, precisando para este fim serem evidentemente tão fortes quanto possível, de modo que nenhum outro elemento antagônico à sua finalidade possa ameaçar os fundamentos da Pátria. Nestas condições, as forças militares têm de ser, naturalmente, forças construtoras, apoiando governos fortes, capazes de movimentar e dar nova estrutura à existência nacional, porque só com a força é que se pode construir, visto que com fraqueza só se constroem lágrimas […] e o meio mais racional de estabelecer, em bases sólidas, a segurança nacional, com o fim, sobretudo de disciplinar o povo e obter o máximo de rendimento em todos os ramos de atividade pública, é justamente adotar os princípios de organização militar…” (ibidem, p.104-105).

Ato contínuo, em meio ao início da Guerra Fria, é criada a Escola Superior de Guerra, em 1948, idealizada para estreitar a colaboração civil-militar e institucionalizar as ideias de Góes Monteiro em “um corpo coeso de doutrina e ferramentas a serem utilizadas pelos governantes em função da conquista e manutenção de um estado de segurança” (COSTA, 2008, p.70).

A ESG veio também para reforçar a tendência ao predomínio do grande capital estrangeiro. Suas bases doutrinárias são uma versão latino-americanizada do National War College, dos Estados Unidos, e emblemático disso foi a demanda estadunidense às forças armadas latino-americanas para funções alienadas de suas atividades precípuas, isto é, dissociadas da Defesa e voltadas para a repressão política interna. Essa guinada para dentro se materializou em doutrinas de segurança muito diferentes daquelas vigentes nas democracias industrializadas ocidentais. Nesse sentido, a ESG difundiu nas Forças Armadas “a predisposição a intervenções no quadro político-institucional…” (Oliveira, 1978, p.26).

Como resultado, a década de 1950 observa a escalada da insubordinação militar com tentativas de golpe em 1954 e rebeliões armadas como as de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959), que elevam as tensões e culminam no golpe de 1964. O regime instaurado após o golpe vertebrou nas Forças Armadas a arquitetura institucional necessária para atuar politicamente. Sob os moldes dessa arquitetura (a Doutrina de Segurança Nacional), a segurança nacional foi instrumentalizada para a manutenção da ordem interna a partir de uma “extraordinária simplificação do homem e dos problemas humanos”, segundo a qual “a guerra e a estratégia são a única realidade e a resposta a tudo” (COSTA, 2008, p.87).

Nessa toada, o conceito de Segurança Nacional incorporou uma noção de segurança sujeita à competência própria das Forças Armadas, orientada pela “minimização de todas as fontes de cisão e desunião dentro do país” (STEPAN, 1975, p. 132), o que implicava a necessidade de um governo forte e autoritário. Segundo Saint-Pierre e Vitelli (2018), em certas circunstâncias,

“a segurança dos cidadãos pode ser ameaçada sob o argumento da segurança estatal, muito embora o sentido último do Estado, o compromisso central do contrato social que funda o Leviatã, seja precisamente a segurança daqueles […] e constitui um sério risco para a humanidade quando os governos, sob o pretexto da segurança ou de manter a integridade do Estado, apelam a expedientes que vão da censura da imprensa ao terrorismo de Estado, da excepcionalidade institucional à detenção arbitrária, à tortura e ao genocídio”.

O GÊNIO SAIU DA LÂMPADA

As Forças Armadas são instituições indispensáveis em um mundo permanentemente sujeito ao espectro da guerra. Portanto, não há espaço para discutir a relevância delas. O que a sociedade deve discutir é o seu papel, e isso passa por problemas institucionais, muitos deles sublimados por uma transição baseada na conciliação com o inconciliável.

Com o esgotamento do regime autoritário, o processo de transição foi conduzido sob a tutela dos militares, agarrados à Lei da Anistia, de 1979. A longa duração do governo Sarney – o mais longo governo interino na história das transições – foi sintomática do interesse em protelar o processo, e a participação das Forças Armadas na elaboração da Carta de 1988 afastou a necessidade de dispositivos categóricos de controle civil.

“Em vez de tentar estabelecer o controle civil sobre os militares, José Sarney preferiu se acomodar aos interesses dos militares. Essa acomodação, aliás, não foi apenas do presidente, mas também do Congresso. A Constituição de 1988 praticamente deixou inalterado o teor das relações entre civis e militares estabelecidas pela Constituição autoritária de 1967 e sua emenda de 1969. A acomodação, que não causou maiores sobressaltos, foi obtida por um acordo tácito, definido como tutela amistosa, que pode ser explicada como o resultado de um equilíbrio local. Esse resultado favorece as Forças Armadas, pois elas preservam seu poder de veto nos assuntos relacionados à manutenção da ordem e da lei, sem carregarem o ônus de governar um país em crise. […] O presidente [Sarney] chegou a declarar que o exército era um dos mais fortes baluartes da transição para a ”. (Zaverucha, 1994, p.224)

A Constituinte, portanto, foi atravessada pelo lobby dos militares, que atuaram pela preservação do conceito de Segurança Nacional. Lideranças civis diversas defenderam a heterogeneidade das sociedades contemporâneas e o papel reservado à Constituição como salvaguarda do pacto social, a partir do respeito às diferenças e aos direitos individuais. No entanto isso não bastou para impedir que a moldura da Doutrina de Segurança Nacional, que visa neutralizar as contradições sociais (normais às sociedades complexas, mas entendidas como fraquezas pelos militares), seguisse viva na Carta de 1988. Seus impactos mais visíveis foram a militarização da segurança pública,[2] com consequências desastrosas para o país, e o artigo 142, “monstrengo jurídico incompatível com o princípio da soberania popular, (…) aviso prepotente das fileiras: entregamos o governo, não a paternidade da pátria…” (Martins Filho, 2021, p.20).

É nesse diapasão histórico que devemos analisar a atual trama golpista: como expressão de um problema crônico brasileiro, o intervencionismo militar, reeditado sob o bolsonarismo. Para além dos desvios individuais, que competem à polícia e à justiça, é preciso cuidado para não negligenciar a necessária lente política e institucional sobre o problema, o que não significa condenar a instituição, mas atentar para os seus princípios doutrinários obsoletos e perniciosos para a construção da democracia brasileira. Cumpre acentuar que esses princípios permanecem perigosamente vivos e se tornaram mais nítidos com a instauração da Comissão Nacional da Verdade, em 2011. A CNV levou a um ponto de inflexão nas relações com a caserna, resultando na ampla adesão das fileiras ao bolsonarismo (movimento golpista na essência) e em diversos episódios emblemáticos do retorno dos militares ao palco principal da política – como o tuíte do então comandante do Exército, general Villas Bôas, em 2018, quando ameaçou publicamente o STF diante do pedido de habeas corpus feito pela defesa de Lula, que era, àquela altura, líder das pesquisas para a Presidência.

À guisa de conclusão, o problema do golpismo militar é histórico, nos acompanha há muito tempo e segue como fator de grave instabilidade política no país. Agora, a sociedade brasileira está diante de uma oportunidade para afirmar categoricamente às Forças Armadas que papel devem e, principalmente, que papel não devem ter. Nesse sentido, é imprescindível punir com rigor os golpistas, civis e militares, o que deve terminar com generais presos pela primeira vez na história do país. E já passou da hora de rever o artigo 142, o currículo do ensino militar (que precisa estancar o culto a 1964) e a relação dos militares com os Poderes e o processo eleitoral. O enfrentamento à militarização da segurança pública, problema complexo, vem logo em seguida.

Em suma, é necessária uma revisão sistemática no papel das Forças Armadas, pelo bem da sociedade, do Estado e da própria instituição militar. E basta de anistia.

 [NOTA WEBSITE: A razão de publicarmos esse material do Prof. João Rafael, tem tudo a ver com o que agora aparece como ‘teologia da dominação' e a pergunta é: afinal a quem esses nossos funcionários públicos atendem e defendem? A TODOS os brasileiros ou aqueles aos quais podem ter a mesma identidade ideológico-religiosa? Fica difícil se responder pelo que se viu com as e outras ocupações devastadoras da , do e outras áreas hoje arrasadas do País como com o ].

João Rafael Gualberto de Souza Morais é historiador, doutor em Ciência Política e professor no Instituto de Estudos Estratégicos da UFF.

Referências bibliográficas

BACKES, Ana Luiza (org.). Audiências Públicas na Assembléia Nacional
Constituinte
: a sociedade na tribuna. Brasília: Edições Câmara, 2009.

BRUNEAU, Thomas C.; MATEI, Florina Cristiana. The routledge handbook of civil-military relations. Abingdon: Routledge, 2013.

CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2005.

COELHO, Edmundo Campos. Em busca de identidade: o Exército e a política na
sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 1976.

COSTA, Frederico Carlos de Sá. Doutrina de Segurança Nacional: entre o passado e o
futuro. 2008. 194 f. Tese (Doutorado) – Curso de Ciência Política, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

DOMINGOS NETO, Manuel. “O militar e a civilização”. In: Tensões Mundiais, Fortaleza, v. 1, n. 1, jul/dez. 2005.

FINNER, Samuel. The man on horseback. New Brunswick and London: Transaction Publishers, 2002.

MARTINS FILHO, José Roberto (org.). Os militares e a crise brasileira. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2021.

OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. As Forças Armadas: política e ideologia no Brasil
(1964-1969). Petrópolis: Vozes, 1978.

SAINT-PIERRE, H. L.; VITELLI, Marina Gisela (orgs.). Dicionário de segurança e
defesa
. São Paulo: Editora UNESP, 2018.

STEPAN, Alfred C. Os militares da abertura à nova república. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986.

ZAVERUCHA, Jorge. Rumor de sabres: tutela militar ou controle civil? São Paulo: Editora Ática, 1994.

[1] Sobre isso, veja também https://diplomatique.org.br/a-guerra-e-o-perigo-dos-mercenarios/.

[2] Sobre isso, veja também https://diplomatique.org.br/a-conversao-do-marginal-em-inimigo-recortes-de-uma-genealogia-da-violencia/.

Fonte:  https://nossofuturoroubado.com.br/etica-e-os-militares-a-pergunta-que-nao-podemos-calar/?utm_source=Nosso+Futuro+Roubado&utm_campaign=24a256e1aa-RSS_EMAIL_CAMPAIGN&utm_medium=email&utm_term=0_5b000b2516-24a256e1aa-43969477